quinta-feira, 1 de julho de 2010

Correspondência de Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena

Terminei a leitura da correspondência trocada, de 1959 a 1978 (ano da morte de J. Sena), entre estes dois grandes poetas da segunda metade do século XX só tenho a dizer que gostei muito.


Primeiro, porque gosto muito de saber notícias em primeira pessoa do que se passou nos tempos idos do século passado no nosso país. Depois escritos por quem sabe mexer com a nossa língua com uma simplicidade extrema. E ainda por cima dando-nos a conhecer um pouco que é muito do dia a dia, em tempo de franca ditadura, de duas figuras tão sonantes da nossa poesia de quem pouco ou nada sei/sabemos.

Não se entende como continua a não ser conhecida e divulgada a vastíssima obra de Jorge de Sena. Será que a “lítero-cambada” portuguesa que o desprezou nos anos 50 continua a desprezá-lo actualmente?

Em 1961, Sophia agradecia ao seu amigo Jorge de Sena o envio do livro “Poesia - I” sobre o qual diz: “O livro deu-me uma extraordinária impressão de grandeza. Uma grandeza que é estilo, precisão, exactidão, força, construção e mais ainda testemunho, olhar olhando em frente, inteireza, coragem.” Ao que ele responde: “Eu não sei, Sophia, aí (em Portugal) quase tudo não me merece. Mas o que lhe garanto é que, aqui (no Brasil), também nos não merecem. Temos por cá o mesmo carreirismo torpe, cuja virtude é ser representado em descarado makebelieve.” (pág. 42)

Será que o país ainda não lhe perdoou o desprezo e o sarcasmo com que respondeu ao exílio a que a própria nação o forçou?

Exemplo desse sarcasmo é “o violento poema de Lisboa” (como o próprio poeta diz) (pág. 126) que ele oferece a Sophia “em paga da leitura dos teus esplêndidos poemas novos” e que deixo aqui:


Que esperar daqui? O que esta gente

não espera porque espera sem esperar?
0 que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam ?
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.


Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.


Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
— mas com que há-de pagar-se quem se agacha e
                                                               [mente?


Chatins engravatados, pelenguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas — e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.


Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.


Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.


(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).

                        (Jorge de Sena)

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