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terça-feira, 7 de julho de 2020

A maldição da formiga e da cigarra




Que fique desde já muito claro que eu sempre fui pela cigarra e que a sonsa da formiga sempre me enervou... 

Trouxe a ideia do blog do Centro Nacional de Cultura que tem sempre textos muito bons e depois lembrei-me que o poema do nosso excelente surrealista Alexandre O'Neill foi cantado pela Amália, cujo centenário de nascimento está a celebrar-se.

Por isso, aí vai:


MINUCIOSAS FORMIGAS, CIGARRAS GAITEIRAS

«Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer».


E agora a Amália  (sem fado...)




O poema de Alexandre O’Neill merece atenção especial, sobretudo neste momento em que o debate lusitano sobre a pandemia Covid-19 se torna uma grande encenação de passa-culpas. Como é hábito antigo, passamos rapidamente dos melhores do mundo para os piores. Do milagre para a maldição… Ora formigas, ora cigarras – e esquecemo-nos que somos, sempre fomos, as duas realidades como toda a gente. Felizmente! E razão tem o Alexandre O’Neill – “Assim devera eu ser / se não fora não querer”. (...)

Temos de cuidar dos exemplos das minuciosas formigas e das gaiteiras cigarras. Ou seja, temos de saber ser formigas gaiteiras e cigarras minuciosas. Que é a arte senão o sentimento e o cuidado?  (...)

Esopo ensina-nos sim que a vida não pode esquecer o outro lado das coisas. Daí as representações pedagógicas do mundo às avessas. Poderia a formiga viver sem a música das cigarras? Poderia a cigarra viver sem o trabalho das formigas? Claro que não. Uma fábula é um paradoxo ilustrado. Temos sempre de a ver o direito e o avesso… (...)

[com o Covid] Tudo pode ser mais simples – se redobrarmos as cautelas e se soubermos ser boas formigas e melhores cigarras…



quarta-feira, 22 de abril de 2020

No Dia da Terra

No Dia da Terra trago aqui alguns fragmentos de um ótimo texto que o ambientalista Viriato Soromenho-Marques escreveu para o Jornal de Letras de 8 a 21 de abril que considero muito atual e certeiro. O título é «Ambiente, pandemia e o retorno do trágico».

«Esta pandemia tem raiz na crise global do ambiente. O impacto da crise ambiental está presente nas origens desta pandemia. (…)

No que diz respeito à depleção da biodiversidade pela intrusão humana, a relação direta entre crise ambiental e a eclosão da Covid-19 é evidente. Desde 2003 tivemos várias epidemias com origem em vírus que são transmitidos de animais para o homem (zoonose): a SARS (2003), com origem também na China, e a MERS (2012), com epicentro no Médio Oriente. Ambas transmitidas também por diferentes tipos de coronavírus. Não sendo desta família, o vírus da gripe suína H1N1 (2009-2010), também é zoonótico. Foi transmitido do porco e de aves, tendo por fulcro o México. A pressão sobre as espécies e a crueldade sobre os animais, como é o caso dos hediondos mercados de animais selvagens vivos na China, ou de muitas indústrias de produção de carne são inseparáveis da terrível constatação de que 75% das novas doenças têm origem nesse perigosíssimo salto entre espécies. (…)

A principal diferença entre esta pandemia e os acontecimentos catastróficos associados à crise ambiental e climática reside na sua simetria e universalidade de distribuição do contágio e, potencialmente, dos impactos que lhe estão associados, assim como na sua quase sincronia expansiva. Pelo contrário, as consequências da maioria dos eventos extremos que já estão a ser sentidos em virtude das alterações climáticas têm características localizadas e assimétricas. O Katrina foi terrível para New Orleans. Os grandes incêndios foram terríveis para Portugal (2017) para a Califórnia (2018) e para a Austrália (2019). As ondas de calor podem atingir vastas zonas (Europa, 2003), mas nunca são globais. (…)

Esta pandemia revela com inequívoca evidência – pela sua brutalidade, rapidez, elevada mortalidade e impacto incalculável na destruição do tecido económico – a natureza coletiva das ameaças e perigos existenciais que estamos e iremos enfrentar. Estamos todos, de facto, no mesmo barco. E este já entrou num oceano cheio de tempestades. (…)

O neoliberalismo deixou a política em estado comatoso. Quase 40 anos de pandemia neoliberal, atacando as mentes, os corpos e as instituições deixaram-nos, aos povos do mundo, sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta pandemia em sentido estrito. (…)

Uma década de austeridade severa deixou os sistemas de saúde enfraquecidos. Não só em Portugal, mas também em quase toda a Europa. (…) No final de Março, o jornal britânico Telegrah revelava um explosivo exclusivo: em Outubro de 2016 realizou-se na Grã-Bretanha um teste de três dias ao Serviço Nacional de Saúde britânico (o NHS), coordenado pelo Imperial College. Essa espécie de “jogo de guerra” simulava uma epidemia gripal intensa. O resultado foi catastrófico. O NHS tinha falta de tudo, a começar por equipamento básico como máscaras e fatos de proteção. Que fazer? Nem uma libra para suprir às faltas. O Governo da senhora May meteu o relatório na gaveta com a classificação de confidencial.

Ninguém sabe quando a primeira vaga desta pandemia irá sofrer uma acalmia. (...) O que é certo e seguro é que, depois de décadas vivendo na atmosfera quase narcótica de inconsciência e irresponsabilidade dos “roaring years” de um crescimento exponencial movido pela máquina trituradora do neoliberalismo, chegámos a uma situação em que a humanidade se encontra em vertiginosa rota de colisão com o Sistema-Terra. Esta pandemia veio acordar-nos para os duros factos de uma vida onde os atos têm consequências e os erros pagam-se caro.»


(sublinhados meus)



terça-feira, 21 de abril de 2020

Histórias da minha rua (15)


O vizinho mora numa outra rua além e vinha algo incomodado com o que uma amiga, professora e diretora de turma do 2º ciclo, desabafara com ele:

Vinha ela de ter uma conversa com um encarregado de educação que muito a preocupara por não saber o que lhe responder. O senhor, quase à beira de um ataque de nervos, e face às comunicações que recebera das escolas, contou-lhe que tem dois filhos em idade escolar, cada um em seu ciclo diferente. Ele e a mulher encontram-se em casa em situação de teletrabalho e têm apenas um computador. Então o seu dia-a-dia era passado a ajudar os dois filhos com as tarefas da escola para eles conseguirem responder ao que lhes era solicitado pelos professores, orientando-os na gestão do plano de trabalho e na utilização das diferentes plataformas escolhidas pelos professores para receberem e devolverem as fichas de trabalho devidamente realizadas. E estavam nisto, ele e a mulher, desde as nove da manhã até ao fim da tarde! 

Só depois desta barafunda toda e depois de tratarem das refeições e das restantes lidas domésticas – reforçadas pelo facto de todos os elementos da família se encontrarem em casa 24 sobre 24 horas – só então, dizia, muitas vezes apenas depois do jantar, os pais se dedicavam às suas tarefas profissionais, muitas vezes até às duas e três da manhã.

Isto é de loucos, não vos parece?

O senhor estava exausto e sob uma enorme pressão.

O que se pretende provar com isto tudo?

A mim parece-me que, no fim disto tudo (ou mesmo antes) vai aumentar em muito o número de divórcios e separações e de consultas nos psiquiatras…




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ainda sobre o tempo, agora em música

Por muito que façamos e que inventemos para fazer escoar o tempo que medeia entre o nascer e o pôr do sol, para quem é e sempre foi muito ativo e para quem está confinado em casa e sozinho há seis longas semanas - sozinho e afastado do seu mundo de todos os dias - não é fácil.

Conhece bem a situação quem está na mesma.

(E depois a vergonha, o remorso por nos sentirmos neste vazio de alma, quando sabemos que há tantos milhares de pessoas que se encontram em situações mil vezes piores... mas que se há de fazer?!

Um dia destes li um cartaz que nos exortava a não nos queixarmos da solidão e do isolamento e que nos lembrássemos que Mandela aguentou isso durante 27 anos. E senti-e envergonhada. mas...)

Nestas e noutras alturas em que ando à bulha com o tempo, lembro sempre esta maravilhosa canção tão bem interpretada pelo infeliz Otis Redding e que, com a sua toada, dá mesmo a sensação da solidão e do isolamento.

Querem ouvir?




As palavras são mais ou menos estas:

«Sentado a apanhar o sol da manhã
Estarei sentado quando o entardecer vier
A ver os barcos a chegar
E depois a vê- los partir outra vez

Estou sentado sobre a baía
A ver a maré a descer
Estou sentado sobre a baía
A passar o tempo

Deixei a minha casa na Geórgia
E dirigi-me para a Baía de S. Francisco
Porque não tinha do que viver
Parece que nada me acontecerá, por isso

Estou só sentado sobre a baía
A ver a maré a baixar
Estou sentado sobre a baía
A passar o tempo

Parece que nada vai mudar
Tudo parece ficar na mesma
Não posso fazer o que os outros me dizem  
                             que faça
Por isso parece-me que vou ficar
Sentado sobre a baía (…)»


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Do(s) Presidente(s) desta República

Sabem os simpáticos leitores que por aqui passam que não fui eleitora de Marcelo Rebelo de Sousa e posso avançar que dificilmente alguma vez o serei. Mas ao ouvir hoje a sua (para mim inesperada) alocução ao país sobre as medidas que recentemente foram anunciadas pelo governo, nomeadamente no que respeita ao 3º período escolar e à libertação de presos das cadeias por razões sanitárias, tive de concordar - comigo própria que é com quem mais discuto desde há algum tempo... - que, de facto, o senhor está a portar-se como um verdadeiro Presidente: com um discurso ponderado, estruturado, seguro e verdadeiramente pedagógico, como apoiante rigoroso e incontornável das pessoas, do governo, do país no seu todo. 

A seu favor tem este Presidente a educação de berço, uma cultura de gerações, grande  poder e experiência de argumentação convicta e muitos anos de pedagogia. 

Não, não penseis nem por um momento que estou a deixar-me convencer... Mas uma ideia latente se repete na minha cabeça: «E, como seria, se tivéssemos ainda o anterior presidente?!»  
  
Seria mauzito, seria bem diferente, seria bem pior...

(E desculpai esta minha mente tantas vezes perversa, mas ... quando nas televisões anunciaram as provações por que muitos idosos estão a passar num lar de Boliqueime... nem queiram saber o que fugidiamente me veio à lembrança... que vergonha...)




quinta-feira, 9 de abril de 2020

Carta de Shaan Sahota

Faz já quatro semanas que não saio de casa senão para ir, muito espaçadamente, comprar pão e fazer algumas compras necessárias. 

Não me lembro de alguma vez ter estado tanto tempo fechada em casa e sem ocupação obrigatória.

Nos primeiros dias de solitário confinamento, pensei que não ia aguentar, que iria voltar a ter ataques de pânico e sei lá o que mais… Só que, face a tantos milhares de pessoas que estão a sofrer em termos de saúde, de falta de dinheiro e de aceitáveis condições de vida, não tenho, não temos de que nos queixar e que fazê-lo é mesmo uma arrogância enorme e uma enorme falta de compaixão por quem sofre.

A propósito, passo a transcrever a carta de Shaan Sahota, médico interno a trabalhar em Londres, publicada hoje no jornal The Guardian, (trad. Ana Brett) testemunho em 1ª pessoa do horror que muitos estão a passar que possa servir-nos de exemplo, de consolo pela vida que, apesar de tudo, conseguimos manter.

Que importa estarmos sozinhos e confinados? Que importa não nos juntarmos na Páscoa? Que importa não irmos de férias? Que importa se os miúdos não têm mais aulas ou se lhes dão passagem administrativa?  Estamos de saúde e, de certa forma, sossegados nas nossas vidas...

(Apesar de ser longa, vale a pena lerem!)

«Como médico de cuidados intensivos, consigo ver a crise a desenrolar-se, mas apenas uma pessoa de cada vez. Aqui segue o que vejo. 


A “zona Covid” improvisada do meu hospital é um mundo irreal onde os doentes estão deitados em silêncio e a equipa subdimensionada completa tarefas hercúleas.

Durante o último mês, a primeira onda de admissões relacionadas com a Covid-19 chegou a Londres e ao hospital onde trabalho como médico interno. Há vinte e um dias fui transferido da Cirurgia para os Cuidados Intensivos e treinado para tratar os doentes na nossa Unidade de Cuidados Intensivos em expansão.

Falamos a toda a hora acerca do coronavírus, mas é habitualmente em termos da sua imagem global. Tenho dificuldade em compreender essa imagem a partir da linha da frente. Numa crise desta escala, quero contar-vos a história que tenho visto - a história de uma pandemia que se desenrola uma pessoa de cada vez.

A Unidade de Cuidados Intensivos expandida é um mundo surreal. Coloco camadas de EPI sufocantes para entrar nas “zonas Covid” - tendas de plástico com entradas de fecho-éclair dentro das áreas hospitalares convertidas. Entro numa enfermaria cheia de doentes inconscientes. Não há conversas, apenas monitores a apitar sob o assobio rítmico do ar pressurizado. Passo cada turno de 12 horas a cuidar de dois ou três doentes. É um trabalho humilde, muitas vezes manual. Ajusto os seus agentes anestésicos e verifico o seu débito urinário a cada hora para equilibrar os seus fluídos. Coloco almofadas por baixo de pontos de pressão para que não sofram danos duradouros durante a sua paralisia. Aspiro secreções das suas vias aéreas.

Estou a trabalhar o máximo que consigo, adiando as pausas para casa-de-banho, por um doente que nunca vi abrir os olhos, muito menos respirar por si próprio. É um ambiente difícil para trabalhar.
Vasculho os diários médicos para encontrar os meus doentes antes de terem ficado paralisados, sedados e colocados num ventilador, para vislumbrar um pouco da pessoa que são. Tento conhecê-los através das jóias que costumavam usar, agora guardadas numa bandeja ao seu lado. Idealizo-os a partir dos detalhes dos seus diários clínicos passados.

História social: vive com a esposa e três crianças. Caminhadas regulares, gosta de correr. Nunca fumou.

Observações: frequência respiratória 42 – 48 – 55 – 61 – 61 …

Estes números crescentes, escritos num gráfico do diário clínico, significam que o doente estava com dificuldade em respirar. É uma história que termina com eles inconscientes e paralisados, com máquinas a substituir os seus órgãos em falência, sob os meus cuidados.

Estou a considerar como um desafio lidar com doentes que estão tão mal, porque gostaria que isto não lhes tivesse acontecido. Quando se está a prestar cuidados individuais, é difícil pensar que existem centenas de pessoas nesta mesma posição. Falamos de curvas e picos, mas nada tem a ver com a experiência vivida. Políticos e jornalistas falam agora com a perspectiva dos deuses. Têm uma visão geral da situação que eu simplesmente não consigo ter. Como médico, sinto-me como uma formiga ao lado de um elefante: mal consigo entender o que vejo e é difícil atirar o meu pequeno peso contra ele.

E onde estou, o recurso mais limitado não são os ventiladores, é a força de trabalho básica. Até 50% da nossa equipa habitual não está a trabalhar por doença, auto-isolamento ou medo. Olho em volta e vejo os esforços hercúleos dos meus colegas e isso comove-me.

É como se alguém tivesse dado criptonite aos meus super-heróis, mas eles ainda estão a tentar levantar o carro, porque o que mais podem fazer? Vejo o especialista em doenças infevciosas que lidera a nossa equipa, que silenciosamente retirou o seu turbante e, pela primeira vez na sua vida, cortou a sua barba que mantinha pela sua fé, removidos em nome do controlo de infecção. A sua estatura pode ser inferior, mas não está de forma alguma diminuído. Vejo uma médica interna encharcada em urina laranja brilhante pela rifampicina. Tinha tentado trocar pela primeira vez um cateter urinário, porque não havia mais ninguém para o fazer. Oito anos de educação não a tinham ensinado que é fácil abrir a bolsa, mas muito mais difícil fechá-la. Todos no hospital estão a fazer todo o possível para melhorar estes doentes. Vejo cirurgiões a trabalhar como internos nos Cuidados Intensivos, enquanto dentistas e fisioterapeutas ajudam a rolar os doentes, mudando-os de posição para não sofrerem lesões por pressão. Os meus doentes desconhecem tudo o que estamos a fazer por eles, e as suas famílias não os podem visitar – logo ninguém o vê, mas não estamos a refrear nada.

O nosso tratamento de resgate para os doentes criticamente mais graves é a pronação: colocar um doente entubado de barriga para baixo. Aumentar os cuidados nos casos mais graves é um acto tão humilde e poderoso quanto o simplesmente colocá-los de barriga para baixo.

Cuidar de um doente Covid+ gravemente doente não é o que se pode pensar. Estou tão próximo deles – a colocar colírio nas pálpebras à noite, porque seus olhos que não piscam não sequem. Talvez nunca os vá conhecer, mas vigio os traços de sua respiração à procura de sinais de que precisam da minha ajuda. Troco os lençóis por baixo deles.

Todos nós estamos longe das nossas casas. Somos tão poucos e a tentar tanto e sempre aqui. O meu país passou da fase em que aguardava pela imunidade de grupo - e aceitar a mortalidade que isso poderia causar - a aplicar tudo o que pode para minimizar a perda de vida, incluindo-me a mim. E é esse um pouco do sentido que posso extrair desta situação. Não cheguei a conhecer os meus doentes, mas o que lhes quero dizer, com toda a força dos meus cuidados, é: isto é tudo para vocês, tudo o que temos. A vossa vida importa.»




 Fiquem bem Fiquem em casa!

sábado, 4 de abril de 2020

Da purificação




O sociólogo Boaventura de Sousa Santos escreveu um excelente texto no Jornal de Letras de 11 a 24 de março intitulado «Ensaio contra a purificação».

E diz ele: «A distinção entre o puro e o impuro parece ser uma constante de todas as culturas e de todos os tempos. (…) O puro é, em geral, concebido como o estado ideal, superior, tanto no domínio do profano como no domínio do sagrado, enquanto o impuro é concebido como o estado inferior ou a inclinação normal ou vulgar. (…)

O que designamos por cultura ocidental, cuja origem se atribui convencionalmente, sobretudo desde meados do século XIX, à Grécia antiga, segue dominantemente a ideia da separação absoluta entre o puro e o impuro. (…) todas as versões [filosóficas] convergem na ideia de que a purificação é essencial para o estabelecimento da ordem. A purificação permite diferenciar e hierarquizar entre o superior e o inferior, entre o normal e o excessivo, entre o governante e o governado, entre o que pertence e o que não pertence. (…)

O colonialismo histórico foi o campo privilegiado para a consolidação deste senso comum. Os conquistadores e os colonizadores depararam-se com um mundo novo (para eles), tão vasto e tão diferente que a magnitude das diferenças exigia um exercício contínuo de purificação. Os povos originários eram definitivamente inferiores, primitivos, selvagens, em suma, impuros. A sua purificação exigia uma separação particularmente violenta que podia ser exercida por extermínio ou desidentificação via evangelização e, mais tarde, educação. (…) Este senso comum foi um instrumento tão eficaz na violenta dominação colonial, do extermínio à evangelização e à escravatura, da ocupação territorial à expropriação e saque das riquezas naturais dos povos colonizados.

Esse senso comum prevalece até hoje, permanece vivo e está entre nós em múltiplas formas: racismo, extrema concentração de terra, expulsão violenta de camponeses e povos indígenas dos seus territórios, exploração sem precedentes dos recursos naturais, extermínio migratório do Mediterrâneo à fronteira sul dos EUA, persistência e mesmo incremento de trabalho escravo, zonas de sacrifício onde populações descartáveis são envenenadas pela poluição causada pelos complexos industriais, colonialismo tóxico quando as periferias pobres do sul global são convertidas em depósitos do lixo, muitas vezes tóxico, produzido no Norte global (afinal, a impureza é normal entre os impuros, lixo com lixo). (…)

A purificação é sempre a imposição da ordem contra um caos perigoso a ponto e a destruir ou desacreditar; a purificação por separação foi a mãe de todos os despotismos modernos.

Se em vez da conceção da natureza como uma entidade desprovida de dignidade vivente e inteiramente ao dispor dos humanos fosse adotada a conceção espinosista da natureza como principio vital, centro da vida da qual dependemos, certamente a respeitaríamos como a respeitaram sempre os povos originários. E se isso sucedesse, talvez não estivéssemos hoje mergulhados numa situação de catástrofe ecológica. (…)»

……..

E a mim, ninguém me tira da cabeça que – mesmo que tenha sido maldosamente encomendado a um qualquer laboratório chinês ou norte-americano – este Vírus que ora se abateu sobre o mundo (como se estivéssemos a viver dentro de um asfixiante filme de ficção científica) mais não é que um processo de purificação da Natureza contra nós, humanos, que estávamos/estamos a destruí-la.


quarta-feira, 5 de junho de 2019

Você é estrebaria...

Hoje tive de ir a uma agência bancária que não é a minha de sempre e, depois de alguma espera – e era eu a única cliente presente – os três funcionários à vista azafamavam-se muito frente aos monitores dos seus computadores – lá fui atendida por um jovem daqueles de fatinho muito justo e de sorriso estampado no rosto imberbe.

Depois de um cumprimento daqueles de mão morta – que não vai bater àquela nem a nenhuma outra porta – fez sinal para que me sentasse e perguntou em que me poderia ajudar.

Pus a minha questão que de imediato foi desfeita pela sua resposta pronta. E, para tal, toca de me tratar e destratar por você – você para cá, você para lá e aquele sorrisinho condescendente de garoto que está ciente de toda a informação perante a idosa que é capaz de nem entender o que ele está a dizer...

Desenhei também o meu sorrisinho condescendente e disse-lhe: «Não diga você. É feio e fica-lhe mal.» Ele manteve aquele sorrisinho que trazia estampado na carinha deslavada e, orelhas moucas, lá continuou o horrível tratamento por você…


De há uns tempos para cá, tudo quanto é vendedor, promotor de operadoras e empresas de eletricidade e gás de porta em porta, meninos com o secundário feito e até mais acima, tudo usa o tratamento por você!

Fazem parte da gramática do português as formas de tratamento bem como os níveis de língua. Será que os professores TODOS se têm esquecido de abordar essas áreas?
E, se assim foi, o que fazem nos programas de formação destes jovens (e até menos jovens) profissionais?

Devia ser-lhes dito que o tratamento por você está reservado a certas castas da aristocracia seja ela de que tipo for, dos namorados nos tempos de fervilhante apaixonamento e a pessoas que se conhecem bem.

De resto, você é estrebaria…




terça-feira, 21 de maio de 2019

Que exagero!

Nada contra a equipa ganhadora do campeonato de futebol. Foi esta, ainda bem para os seus jogadores e para o seu jovem e esforçado treinador. 

Foi esta, mas até podia ter sido o Estrela da Amadora, ou o Esperança de Lagos ou o Sporting da Covilhã - os exageros teriam sido os mesmos, digo eu... Os exageros dos festejos, aquela alegria esfuziante e louca a que os adeptos de obrigam  - parece que lhes calhou o Euromilhões ou sei lá o quê...

Mas o pior, o piorzinho mesmo, é o exagero das televisões! Desde domino até hoje, os telejornais repetem a todas as horas e até à exaustão os golos, as declarações dos mandantes, a festa, a receção pelo Município e sei lá o que mais!

Não é exagero da minha parte, mas no domingo, na segunda-feira e ontem, à hora do almoço e ao jantar o mesmo, passei os canais todos até ao 8 e todos, sem exceção, estavam a passar e a repetir a grande vitória do clube de futebol! 

Nada contra o futebol. Nada contra as equipas ganhadoras, mas o que é demais enjoa. Não haverá nada de mais importante para transmitir?

Se calhar não... ou não convém...




É o que me ocorre...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Aviltamento


Enquanto portuguesa, cidadã, professora de Português e grande apreciadora do poeta dos vilancetes cem glosados, das cantigas de filigrana, dos sonetos perfeitos e da grande, enorme, luminosa epopeia portuguesa, sinto-me dececionada (não com o presidente que esse nunca nem por um dia me criou ilusões), humilhada, aviltada pela escolha que o atual presidente fez para presidir à celebração do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades. 

Camões deve estar "aos saltos na tumba"! E qual é o português, quais são as comunidades que se reveem em alguém que nunca deu provas em nenhum campo da ciência, da escrita ou do conhecimento em geral, alguém sem qualquer tipo daquela grandeza necessária para nos representar, num simples fazedor de palhaçadas de mau comediante (sem ofensa para os palhaços nem  para os comediantes de profissão, naturalmente!)?



Recolhendo as sempre bem escolhidas palavras do escritor Mário de Carvalho, transcrevo a sua opinião expressa na sua página de facebook, com a qual não podia concordar mais.

«Admitindo que o actual Presidente da República visse conveniência em nomear para o 10 de Junho, Dia de Portugal, Camões e das Comunidades Portuguesas, uma personalidade de direita, não lhe faltariam, em alto nível, cientistas, médicos, professores, arquitectos, artistas, escritores dessa tendência... Assim evitaria o desprestígio do acto. O achincalho. O desconforto do popularucho.»

Tenho para mim que, numa febre de popularidade, Marcelo está a perder o auto controlo...


sábado, 19 de janeiro de 2019

Exposição de Eça e Os Maias na Gulbenkian

Ontem foi dia de "visita de estudo" com os alunos seniores. Foi tempo de visitar a exposição de «Eça e Os Maias - tudo o que tenho no saco» organizada pela Fundação Gulbenkian.

Mais uma exposição com a qualidade a que a Gulbenkian nos habituou: muito bonita, muito sóbria, muito bem fundamentada, muito ampla naquele espaço amplo e muito bem apresentada pela guia que nos recebeu e acompanhou. 

Nem só de «Os Maias» trata a exposição. A primeira sala dedica-se à «Vasta Máquina» de 1888 que foi o ano da publicação da obra em dois volumes. 

Em carta ao seu amigo Oliveira Martins, Eça dirá : 

«Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te o começo, as primeiras 100 páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena no jornal A Tarde; e sobretudo o sarau literário. Basta ler isso, e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquela imensa massa de prosa.» 





A segunda sala mostra o percurso de vida do autor antes de escrever a sua obra prima., nomeadamente as viagens pelo Oriente e que tanto influenciaram toda a sua obra.








Depois falam-nos da «guerra» que Eça e os seus amigos da Geração de 70 declararam ao Romantismo. 






Noutra sala,subordinado ao tema Norma e Desejo, grande destaque para «O Crime do Padre Amaro» com quadros da pintora Paula Rego.





Na Cela
Entre as Mulheres
E muitos outros aspetos do multifacetado e multi viajado escritor.


O dandismo



Os vencidos da vida





A crítica e a ironia

E alguns objetos pertencentes ao escritor.












Vale bem a pena visitar!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Habemus PR Bolsonaro, Consummatum est...

Deus e os meus amigos sabem que não sou seguidora de igrejas; aprecio, porém, a filosofia de vida e a forma sensata como aborda os graves problemas do mundo. Refiro-me a Francisco, o Papa. E foi ele que, na sua sapientíssima mensagem de Ano Novo, nos exortou, a todos, a interessarmo-nos pela política, pela forma como se governa a cidade (perspetiva da Grécia Antiga). 

É nesta linha que eu me interesso pela política, seguindo a orientação de Francisco, o Papa.  

Assim sendo, não me eximi de trazer aqui a bem concebida crónica que Carlos Esperança publicou ontem no facebook.


Brasil – Habemus PR Bolsonaro. Consummatum est

«A tomada de posse de Jair Messias Bolsonaro foi o ato final de legitimação do golpe de Estado contra Dilma. Lá foi Michel Temer, que a traiu, a devolver a faixa presidencial, à espera da prisão, pois, ao contrário de Lula, há gravações que provam a sua corrupção.

Da conspiração das Igrejas evangélicas, com homilias, órgãos de comunicação e crentes destacados nas redes sociais, sai mais poderoso o bispo Edir Macedo e mais próximo do Paraíso quem paga o dízimo, em suaves prestações, na compra de uma assoalhada junto a Deus, mas foram os grandes interesses económico-financeiros que aprontaram o golpe e o conduziram.

Nos políticos conluiados com o poder judicial, para afastar o previsível vencedor, Lula da Silva, estava o juiz Sérgio Moro, cuja ambição dispensou um período de nojo entre a prisão, investigação e julgamento do adversário político e a entrada imediata no governo do fascista assumido, machista, homofóbico, racista, xenófobo e violento.

Bolsonaro, depois de uma carreira militar que terminou em capitão, de onde foi afastado por críticas públicas a baixos salários dos militares e a um alegado plano para dinamitar os sanitários da sua Academia Militar, foi para a política, onde se distinguiu mais pela boçalidade do que pela atividade legislativa, nos 27 anos de Congresso Federal, em que percorreu 8 partidos, sendo o último, PSL, que o indigitou para candidato à Presidência.

Convidou pessoalmente para a posse os primeiros-ministros de Israel e da Hungria e o chefe da diplomacia dos EUA. O pudor ou calculismo afastou figuras de primeiro-plano internacional do pungente espetáculo que contou com fortes medidas de segurança.

Em Portugal, a política externa é competência exclusiva do Governo e o PR não define relações bilaterais, mas representa o País em qualquer lugar. Apreciando os espetáculos mórbidos, mesmo assim, parecia um erro de casting no cenário e não se percebe, depois da posse, a obsessão por uma audiência, o desejo de ser figurante junto de tal figurão.

A enigmática afirmação, após o breve encontro do homem de cultura, civilizado, com o troglodita tropical, deixa um sentimento pungente a quem apreciava o discernimento de Marcelo: “Como eu disse e como disse o Presidente Bolsonaro, era uma reunião entre irmãos e entre irmãos o que há a dizer se diz rápido, como se diz em família”.

Não sei que interesses moveram Marcelo na deslocação, podia ter enviado Cavaco, em sua representação, como fizera no funeral de Bush-pai. Era a pessoa adequada ao papel e poupava-lhe a participação no primeiro ato do funeral da democracia brasileira.

A presença do PR em Brasília foi humilhante para ele e para o País. Numa atitude sem precedentes, só as televisões portuguesas fizeram pior. Deram desmedido relevo ao ato, cúmplices da vergonhosa promoção de Bolsonaro e da divulgação do seu ideário.

Para a posteridade ficaram também as alarvidades bolçadas pelo gen. Hamilton Mourão, o vice-presidente, com sequazes em delírio, como metáfora de uma ditadura de coronéis com a cultura de cabos quarteleiros, capazes de transformar a presidência em caserna.»

Carlos Esperança. Facebook, 3/Jan/2019      (sublinhados meus)

A mim parece-me que o presidente Marcelo não tinha de ter tido este comportamento quase subserviente face a um proto-ditador, apaparicando-o, tratando-o de irmão, convidando-o a visitar oficialmente o país... Como diz o povo: «Não se pode estar bem com Deus e com o Diabo ao mesmo tempo».



sábado, 14 de julho de 2018

Duas ou três coisas sobre os exames




Começou o “circo” dos resultados dos exames nacionais. E eu (sabe quem já me conhece) começo logo a borbulhar com as análises que a nossa (triste) comunicação social começa a deitar cá para fora.

O pior é que, no que toca aos exames nacionais, cá no burgo, não é apenas a comunicação social que é triste e pobrezinha. A começar no IAVE (que já se chamou GAVE, e as pessoas liam «gueive» como se fosse uma palavra inglesa) onde os exames são elaborados, até aos professores, aos pais e, especialmente, à opinião pública são todos muito tristes e muito pobrezinhos.

A esta hora já os meus queridos amigos estão a pensar: «Olha-me esta armada em boa!» E posso até parecer estar. O certo é que tive a sorte de estudar Ciências da Educação com bons professores na Universidade de Aveiro que me/nos fizeram ver a educação e a pedagogia de diferentes prismas.

Antes de mais, duvido da necessidade, da justeza e até do rigor dos exames. Os de final do 12º ano, enfim talvez embora nunca nos moldes em que são elaborados. Aqueles que ainda se fazem e os que o anterior ministro quis “repor”, nem pensar!! Para quê?

“Deliro” quando oiço tantas pessoas – algumas/muitas das quais professores – defender que, se antigamente havia exames em todos os ciclos, porque não hão de continuar a ser aplicados? (Aquele senhor ex ministro da Educação também achava…) esquecem-se, ou não sabem, (e o senhor ex ministro também se esqueceu ou não sabia…) que antigamente, no tempo da “bendita” ditadura, o ensino era só para alguns e por isso o objetivo dos exames era o de fazer a seleção dos alunos…

Mas se querem falar dos exames de “antigamente” – e eu fi-los todos desde o da 3ª classe – sempre vos digo que eram bem mais honestos do que são os que os illuminati do IAVE produzem atualmente. É que naquele tempo já sabíamos que se estudássemos que nem loucos, estaríamos em condições de responder mais ou menos acertadamente às questões. Atualmente, em nome de um pseudo desenvolvimento do pensamento lógico e da “bendita” obstaculização à memorização e aplicação de conhecimento, elaboram provas de exames com questões altamente complexas e dúbias que levam que tempos a descodificar completando-as com os “moderníssimos” e “americaníssimos” exercícios de escolha múltipla com quatro hipóteses de resposta muitas das quais altamente rasteirentas.
Digo, e garanto-vos que sei do que estou a falar, que as atuais provas de exame não são honestas, são manhosas, cheias de ardis e artimanhas que em pouco ou nada testam os conhecimentos ou sequer as capacidades dos alunos.  (Costumo dizer aos meus explicandos de Português do 12º ano que, se o Fernando Pessoa tivesse de fazer uma prova de exame sobre um dos seus poemas, havia de se ver bem aflito…)

Por isso, os professores vêem-se forçados, na sua maioria, a treinar os seus alunos para desmontar os possíveis artifícios constantes das provas de exame em detrimento, muitas vezes, de neles produzirem verdadeiras aprendizagens. Os alunos precisam disso, os pais querem isso e as escolas pressionam-nos nesse sentido em nome dos “benditos” rankings que a triste comunicação social inventou e com os quais o público em geral delira!

Depois os nossos “cérebros” queixam-se muito das elevadas taxas de insucesso, do abandono escolar, do ainda baixo número de licenciados e por aí fora. Pois se os exames finais do secundário são mais … como direi? Difíceis, exigentes, maquiavélicos talvez… do que os do superior! Sei de jovens que, como alunos externos, têm já parte das disciplinas de alguns cursos superiores que não podem continuar porque não conseguem nota positiva nos exames finais do 12º ano.  

E outra coisa: o ensino secundário já faz parte da escolaridade obrigatória! Não é mais seletivo, nem devia contar para o acesso ao superior…

Pois é… os “nossos” exames nacionais têm muito que se lhe diga…