É sabido que me agrada muito ler
Lídia Jorge. Desde que tomei conhecimento do seu nome pela «Conta Corrente» do
admirável Vergílio Ferreira. Li vários dos seus romances todos atinentes a
temas marcantes da vida e da história do país. Todos muito bons. Todos muito
bem arquitetados, todos muito bem escritos. Não posso dizer qual o que achei
melhor no seu todo, mas aquele de que mais gostei foi «O Vale da Paixão» que
pinta a saga de uma família no Algarve rural.
Nestas últimas semanas detive-me
a ler «Os Memoráveis» e adorei! É, de longe, o mais conseguido dos seus
romances – talvez depois de «A Costa dos Murmúrios», mas mais maduro que este
em termos da arquitetura do romance e, mais importante ainda (pelo menos na
minha ótica) na maestria da palavra.
Não adianta deixar aqui
apontamento sobre a trama do romance porque isso encontra-se facilmente na mais
básica pesquisa na net ou lendo a contracapa
do livro. Além de que é sabido que se trata de uma revisitação ao que aconteceu
na noite de 24 para 25 de Abril de 74 contada por uns tantos dos responsáveis
pelo golpe e por dois poeta, passados trinta anos. E aí é que está a ficção, a originalidade
e a perfeição de um romance de qualidade.
Dois aspectos de grande interesse
e novidade no plano da narrativa – na minha simples opinião: primeiro, as
alcunhas escolhidas para cada um dos «memoráveis» que a narradora decide entrevistar
para dar o seu testemunho sobre as circunstâncias do golpe e que, tirando duas
ou três exceções, dificilmente serão identificadas pelo leitor; e depois as
máscaras de anti-herói (com as suas decepções, as suas fragilidades, os seus
dilemas) com que cada um dos «memoráveis» nos é apresentado trinta anos depois
daquele feito heróico por eles perpetrado naquela noite de Abril de 74.
No plano da abordagem à realidade,
de notar a quase colagem à sequência dos acontecimentos hora a hora que levaram
à realização cabal do golpe, embora em modalidade de puzzle que se ia
completando à medida que a narrativa avança e, por outro lado, a impressão
digital da autora no desenvolvimento da entrevista à viúva de Charlie 8 e a
forma quase violenta e sarcástica como é tratado o facto de lhe ter sido negada
uma pensão por serviços distintos enquanto uma idêntica foi atribuída, nesse
mesmo prazo, a dois pides. Outro aspeto bem repisado ao longo da obra é a noção
de que, quer na preparação, quer na operacionalização do golpe, nenhum dos
intervenientes queria ser reconhecido acima dos outros, que «todos somos
capitães» - dizia Charlie 8 e que cada um mais não era do que um entre os cinco
mil que estiveram envolvidos no «milagre», no dizer do “Oficial de Bronze”-
«porque havia cinco mil efectivos dispersos no terreno, mas unidos pela
amizade».
A trama, que entrecruza o plano
histórico com o plano familiar da narradora, está por de mais bem urdida mas há
episódios tão fortes, tão intensos, tão complexos apesar de nos serem
apresentados simplesmente, que senti, por vezes necessidade de voltar atrás e
reler alguns trechos para sentir o pulsar dos acontecimentos e ligar o puzzle
da teia.
Muito, muito mais haveria a dizer
sobre esta obra tão emblemática mas escrita com o coração, mas não quero nem
devo alongar-me. E, apenas para deixar a marca de esperança que este livro
pretende deixar no ar e para os vindouros, transcrevo o poema “Um Dia” que o
poeta Francisco Pontais – que, curiosamente, tem uma perspetiva bem crítica do
que realmente foi aquele dia de Abril – sobre o mesmo compôs:
«Um dia os rapazes serão louvados
Hão-de passar entre multidões
floridas.
Levarão riso na boca e os braços
levantados.
Um dia os rapazes hão-de ser
punidos
Pelos males que hão-de vir dos
quatros pontos cardeais.
Terão latrinas derramadas nos
portais.
Um dia esses heróis serão
esquecidos
Os seus nomes alinhados entre conchas
e espinhas.
Hão-de constar de uns livros
nunca lidos.
Mas um dia, esse dia será o dia
do idílio.
Os rapazes ainda não desistiram de
soltar os braços dos escravos.
E os escravos ainda não renegaram
a cor dos cravos.
Ainda estamos no princípio desse
dia.»