quinta-feira, 30 de abril de 2020

Soneto de Maio





Suavemente Maio se insinua
Por entre os véus de Abril, o mês cruel
E lava o ar de anil, alegra a rua
Alumbra os astros e aproxima o céu.

Até a lua, a casta e branca lua
Esquecido o pudor, baixa o dossel
E em seu leito de plumas fica nua
A destilar seu luminoso mel.

Raia a aurora tão tímida e tão frágil
Que através do seu corpo transparente
Dir-se-ia poder-se ver o rosto

Carregado de inveja e de presságio
Dos irmãos Junho e Julho, friamente
Preparando as catástrofes de Agosto...

Vínicius de Moraes

(Poema escrito para a realidade do Hemisfério Sul)



quarta-feira, 29 de abril de 2020

Passeio virtual a Sintra

Havia nos idos de 60 uma melodia muito alegre interpretada por Shegundo Galarza e o seu conjunto que se chamava «Passeio a Sintra». Passava muitas vezes na rádio e até na televisão e tinha a toada dos passeios de charrete típicos daquela vila mágica, com o trote dos cavalos. Infelizmente não tem gravação no You Tube para vo-la fazer ouvir e talvez lembrar.

Mas a publicação de hoje não tem a ver com música. Hoje vou levar-vos a dar um passeio virtual (como convém à época de afastamento que vivemos) pela Vila Velha de Sintra, a minha terra do coração, com fotografias belíssimas do meu amigo MJM, grande amante de Sintra e lá nado e criado e tudo!

O espanto que nos pode causar esta visita não são propriamente as belezas da Vila, mas mais a ausência de pessoas. Visita feita em tempo de confinamento, de lojas fechadas, sem gente, sem filas de trânsito, sem  as chusmas de turistas...

A Serra - Monte da Lua - deve sentir-se rejuvenescer...


Vista do Palácio da Vila


Largo da Vila e rampa de acesso à Piriquita

Largo da Vila, a caminho do antigo Hotel Costa e dos Pisões 


Antigo Hospital 


Hotel Central, a caminho do antigo Hotel Nunes (o dos Maias)
e atual Hotel Tivoli


Volta do Duche

Escadinhas e recantos da Vila Velha











Fonte da Pipa






E, por último, mas nunca em último, assinalo a casa onde vivi tantos anos e bons!



Espero que tenham gostado!


Link para a canção. Gentileza do amigo blogger Ricardo Santos:




segunda-feira, 27 de abril de 2020

Fingir que está tudo bem






fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

(José Luís Peixoto, in ‘A Criança em Ruínas’)

domingo, 26 de abril de 2020

Corona Rhapsody

Quem como eu adora a música dos Queen e assistiu com as filhas a muitos episódios dos Marretas, não pode ficar indiferente a esta animação tão bem adaptada à atual pandemia!

Quem ainda não conhecia - como eu - bem pode deliciar-se!





quinta-feira, 23 de abril de 2020

Para (sor)rir...

No Dia Internacional do Livro - dois livros de monta! E muito sentido de humor!!!  



Fiquem bem!

quarta-feira, 22 de abril de 2020

No Dia da Terra

No Dia da Terra trago aqui alguns fragmentos de um ótimo texto que o ambientalista Viriato Soromenho-Marques escreveu para o Jornal de Letras de 8 a 21 de abril que considero muito atual e certeiro. O título é «Ambiente, pandemia e o retorno do trágico».

«Esta pandemia tem raiz na crise global do ambiente. O impacto da crise ambiental está presente nas origens desta pandemia. (…)

No que diz respeito à depleção da biodiversidade pela intrusão humana, a relação direta entre crise ambiental e a eclosão da Covid-19 é evidente. Desde 2003 tivemos várias epidemias com origem em vírus que são transmitidos de animais para o homem (zoonose): a SARS (2003), com origem também na China, e a MERS (2012), com epicentro no Médio Oriente. Ambas transmitidas também por diferentes tipos de coronavírus. Não sendo desta família, o vírus da gripe suína H1N1 (2009-2010), também é zoonótico. Foi transmitido do porco e de aves, tendo por fulcro o México. A pressão sobre as espécies e a crueldade sobre os animais, como é o caso dos hediondos mercados de animais selvagens vivos na China, ou de muitas indústrias de produção de carne são inseparáveis da terrível constatação de que 75% das novas doenças têm origem nesse perigosíssimo salto entre espécies. (…)

A principal diferença entre esta pandemia e os acontecimentos catastróficos associados à crise ambiental e climática reside na sua simetria e universalidade de distribuição do contágio e, potencialmente, dos impactos que lhe estão associados, assim como na sua quase sincronia expansiva. Pelo contrário, as consequências da maioria dos eventos extremos que já estão a ser sentidos em virtude das alterações climáticas têm características localizadas e assimétricas. O Katrina foi terrível para New Orleans. Os grandes incêndios foram terríveis para Portugal (2017) para a Califórnia (2018) e para a Austrália (2019). As ondas de calor podem atingir vastas zonas (Europa, 2003), mas nunca são globais. (…)

Esta pandemia revela com inequívoca evidência – pela sua brutalidade, rapidez, elevada mortalidade e impacto incalculável na destruição do tecido económico – a natureza coletiva das ameaças e perigos existenciais que estamos e iremos enfrentar. Estamos todos, de facto, no mesmo barco. E este já entrou num oceano cheio de tempestades. (…)

O neoliberalismo deixou a política em estado comatoso. Quase 40 anos de pandemia neoliberal, atacando as mentes, os corpos e as instituições deixaram-nos, aos povos do mundo, sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta pandemia em sentido estrito. (…)

Uma década de austeridade severa deixou os sistemas de saúde enfraquecidos. Não só em Portugal, mas também em quase toda a Europa. (…) No final de Março, o jornal britânico Telegrah revelava um explosivo exclusivo: em Outubro de 2016 realizou-se na Grã-Bretanha um teste de três dias ao Serviço Nacional de Saúde britânico (o NHS), coordenado pelo Imperial College. Essa espécie de “jogo de guerra” simulava uma epidemia gripal intensa. O resultado foi catastrófico. O NHS tinha falta de tudo, a começar por equipamento básico como máscaras e fatos de proteção. Que fazer? Nem uma libra para suprir às faltas. O Governo da senhora May meteu o relatório na gaveta com a classificação de confidencial.

Ninguém sabe quando a primeira vaga desta pandemia irá sofrer uma acalmia. (...) O que é certo e seguro é que, depois de décadas vivendo na atmosfera quase narcótica de inconsciência e irresponsabilidade dos “roaring years” de um crescimento exponencial movido pela máquina trituradora do neoliberalismo, chegámos a uma situação em que a humanidade se encontra em vertiginosa rota de colisão com o Sistema-Terra. Esta pandemia veio acordar-nos para os duros factos de uma vida onde os atos têm consequências e os erros pagam-se caro.»


(sublinhados meus)



terça-feira, 21 de abril de 2020

Histórias da minha rua (15)


O vizinho mora numa outra rua além e vinha algo incomodado com o que uma amiga, professora e diretora de turma do 2º ciclo, desabafara com ele:

Vinha ela de ter uma conversa com um encarregado de educação que muito a preocupara por não saber o que lhe responder. O senhor, quase à beira de um ataque de nervos, e face às comunicações que recebera das escolas, contou-lhe que tem dois filhos em idade escolar, cada um em seu ciclo diferente. Ele e a mulher encontram-se em casa em situação de teletrabalho e têm apenas um computador. Então o seu dia-a-dia era passado a ajudar os dois filhos com as tarefas da escola para eles conseguirem responder ao que lhes era solicitado pelos professores, orientando-os na gestão do plano de trabalho e na utilização das diferentes plataformas escolhidas pelos professores para receberem e devolverem as fichas de trabalho devidamente realizadas. E estavam nisto, ele e a mulher, desde as nove da manhã até ao fim da tarde! 

Só depois desta barafunda toda e depois de tratarem das refeições e das restantes lidas domésticas – reforçadas pelo facto de todos os elementos da família se encontrarem em casa 24 sobre 24 horas – só então, dizia, muitas vezes apenas depois do jantar, os pais se dedicavam às suas tarefas profissionais, muitas vezes até às duas e três da manhã.

Isto é de loucos, não vos parece?

O senhor estava exausto e sob uma enorme pressão.

O que se pretende provar com isto tudo?

A mim parece-me que, no fim disto tudo (ou mesmo antes) vai aumentar em muito o número de divórcios e separações e de consultas nos psiquiatras…




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ainda sobre o tempo, agora em música

Por muito que façamos e que inventemos para fazer escoar o tempo que medeia entre o nascer e o pôr do sol, para quem é e sempre foi muito ativo e para quem está confinado em casa e sozinho há seis longas semanas - sozinho e afastado do seu mundo de todos os dias - não é fácil.

Conhece bem a situação quem está na mesma.

(E depois a vergonha, o remorso por nos sentirmos neste vazio de alma, quando sabemos que há tantos milhares de pessoas que se encontram em situações mil vezes piores... mas que se há de fazer?!

Um dia destes li um cartaz que nos exortava a não nos queixarmos da solidão e do isolamento e que nos lembrássemos que Mandela aguentou isso durante 27 anos. E senti-e envergonhada. mas...)

Nestas e noutras alturas em que ando à bulha com o tempo, lembro sempre esta maravilhosa canção tão bem interpretada pelo infeliz Otis Redding e que, com a sua toada, dá mesmo a sensação da solidão e do isolamento.

Querem ouvir?




As palavras são mais ou menos estas:

«Sentado a apanhar o sol da manhã
Estarei sentado quando o entardecer vier
A ver os barcos a chegar
E depois a vê- los partir outra vez

Estou sentado sobre a baía
A ver a maré a descer
Estou sentado sobre a baía
A passar o tempo

Deixei a minha casa na Geórgia
E dirigi-me para a Baía de S. Francisco
Porque não tinha do que viver
Parece que nada me acontecerá, por isso

Estou só sentado sobre a baía
A ver a maré a baixar
Estou sentado sobre a baía
A passar o tempo

Parece que nada vai mudar
Tudo parece ficar na mesma
Não posso fazer o que os outros me dizem  
                             que faça
Por isso parece-me que vou ficar
Sentado sobre a baía (…)»


sábado, 18 de abril de 2020

Da inexorabilidade do tempo


Para refletirmos agora que a passagem do tempo se tornou um quase tormento...

                                           
«Diz-se que o tempo não para, que nada lhe detém a incessante caminhada, é por estas mesmas e sempre repetidas palavras que se vai dizendo, e contudo não falta por aí quem se impaciente com a lentidão, vinte e quatro horas para fazer um dia, imagine-se, e chegando ao fim dele descobre-se que não valeu a pena, no dia seguinte torna a ser assim, mais valia que saltássemos por cima das semanas inúteis para vivermos uma só hora plena, um fulgurante minuto, se pode o fulgor durar tanto.»

José Saramago, «O Ano da Morte de Ricardo Reis»

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Coro do Orfeão de Leiria

Neste tempo de reclusão forçada e de afastamento compulsivo à conta do tal vírus, o Coro principal do Orfeão de Leiria gravou o vídeo da cantiga medieval - Tourdion - em modo de vídeo conferência, o que eu considero uma experiência quase impossível.  (Se bem que nos tempos atuais quase não haja impossíveis...)

E porque está um trabalho tão bem conseguido e porque alguns dos/das coristas são meus amigos e meus conhecidos, não pude deixar de o trazer aqui.

São só três minutos e é tão bonito! Se puderem, vejam, oiçam... É um brinde à Vida!




«Quand je bois du vin clairet
Amis tout tourne, tourne, tourne, tourne
Aussi désormais je bois
Anjou ou Arbois

Chantons et buvons
À ce flacon faisons la guerre
Chantons et buvons
Mes amis
Buvons donc

Hey, der gute, kühle Wein
Macht alles kunterkunterbunt sich drehen
Holt die Gläser schenket ein
Anjou und Arbois…»



quinta-feira, 16 de abril de 2020

O novo naufrágio de Sepúlveda, com gato e gaivota

Morreu, vítima desta maldita peste, o escritor chileno Luís Sepúlveda, (1949-2020) autor de vários livros, mais conhecido por cá como o autor de «História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar» que é de leitura obrigatória para os alunos do 7º ou do 8º ano.

Poderia dizer aqui muitas coisas sobre o infeliz escritor, mas vou transcrever parte de um lindo e ternurento texto que o meu amigo Amadeu Homem, também escritor e professor universitário deixou no facebook(informei-o do roubo...)

Numa espécie de inter-texto que faz com o naufrágio do Sepúlveda da nossa «História Trágico-Marítima» de Bernardo Gomes de Brito, do século XVIII, tem por título «O novo naufrágio de Sepúlveda, com gato e gaivota» e insere-se num conjunto de textos que ele vai escrevendo quase diariamente subordinados ao tema «Crónicas da Peste Mansa».

E diz assim:


«A peste mansa requisitou o Sepúlveda e levou-o. Não lhe consentiu, sequer, mais uma pequena narrativa sobre bichos, beirais, voos rasantes e de médio porte, madrugadas vermelhas, planuras, cheiros de mar alto. Limitou-se a colocá-lo no rol dos finados e talvez lhe tenha dito, com voz de sargento-ajudante: - Embora, já à minha frente. Ala, que se faz tarde.

A minha apresentação ao Sepúlveda fez-se no dia em que me foi dado conhecer o gatarrão compassivo, no momento em que fui apresentado a uma gaivota menina e desajeitada que nascera sem saber voar. O resto da história é conhecida, pelo que seria uma tautologia voltar a resumi-la aqui. (…)

Mas esse tal Sepúlveda tinha descoberto uma gaivota-bébé, uma implume ave desvalida, que ainda não tinha feito a aprendizagem de voar. Seguidamente, Sepúlveda tinha topado dentro de si com um gatarrão opinioso, que iria ensinar a pequena gaivota a voar. Ficava entre uma coisa e outra a chama da cumplicidade. Depois viria o tempo de uma gaivota de curiosa asa dizer um "até breve" ao tal gato, agora comovido, e convicto de que não estava a escutar um "até breve" mas antes um definitivo "adeus".

Bem vistas as coisas, são sempre estas as balizas de todas as aprendizagens, mesmo as afetivas. Ficamos no tempo curto do "até breve" e despedimos a alma e o coração desenganado quando nos vemos forçados a dizer "adeus".

A verdade é que este Sepúlveda, escritor de bom quilate e andarilho de melhor músculo, calcorreou o vasto mundo que o foi aplaudindo no tempo em que eu fui assentando as sapatilhas por areias de desvairadas praias interiores. Numa dessas últimas praias aprendi eu a gostar de gatos, a ronronar por pitanças enlatadas e a roçar a pelagem por permissivas notas de crédito alimentar.

Quando chegou a peste mansa, foi noticiado que Sepúlveda andara pelas "Correntes de Escrita" , na Póvoa do Varzim. Nessa altura já eu lera a história do gato pomposo e da gaivota frágil. (…)

"Olha" , pensei para comigo " o Sepúlveda está por terras do Eça, o tal que dissera ter sido 'um pobre homem da Póvoa de Varzim" . (…)

A informação televisiva  veio tornar-me ciente de que Sepúlveda talvez já estivesse infetado quando andarilhou por terras de Eça. Pensei : "O tipo não é propriamente um Matusalém. Irá safar-se " e deixei de pensar nele.

Um dia, inesperadamente, vieram dizer-me que Sepúlveda falecera num hospital de Oviedo. A peste mansa liquidara-o mansamente, como quem não quer a coisa. Relembrei ter pensado, para me pacificar, que tal tipo iria escapar, por não ter exatamente a idade de Matusalém. (…)

"Lá se foi, lá se foi" e debrucei-me no meu pequeno varandim, onde, suponho, declarei uma vez mais "olha, lá se foi o Sepúlveda". 

Julguei ter avistado uma gaivota tresmalhada, vinda do "mar da palha", que fica ali mesmo à mão. Mas não o poderei dizer ajuramentadamente. Digo, isso sim, que não vislumbrei na calçada nem um só gato, nem um.»





Adeus, Luís Sepúlveda, até um dia!

terça-feira, 14 de abril de 2020

Página do Diário de uma Quarentena


O despertador toca como que por hábito porque agora não preciso de me despachar para nada. Mas eu deixo-me ficar - «o que é que vou fazer hoje?» penso ainda pouco desperta. E depois levanto-me quando as minhas gatas começam a saltar para cima da cama e para cima de mim. Uma delas senta-se confortavelmente sobre as minhas costas ou sobre a minha barriga e faz uns miadinhos fofos até me pôr da cama para fora.

Depois a rotina: casa de banho, ir para baixo, desligar o alarme, subir as persianas, abrir a porta do quintal para as gatas saírem – e entrar o amarelo, o comensal – tratar do pequeno almoço ouvindo as notícias «sempre a mesma coisa, que raiva!» Das duas, uma: ou barafusto com a televisão, ou converso com as gatas sobre o que gostam ou não gostam de comer.

Banho e tal… Escolher a roupa porque, tal como quando ia para a escola ou para a Associação Sénior, visto diariamente roupa diferente e «ton sur ton» para me sentir bem.

As manhãs são sombrias porque, se sair, é apenas até ali à pastelaria buscar pão e não é sempre. (Afugento, como posso, as lembranças de há um ano para trás de quando saíamos os dois no carro para irmos ao café e comprar o jornal e dar uma volta – agora não há mesmo volta a dar…)

Há a internet … ver as piadas da Cristina e do Luís Lobo e fazer as minhas próprias para animar as minhas facefriends…

«Ena pá!!! Já é uma hora! O que que vou almoçar?» Se houver alguma coisa feita, (umas vezes por outras, dá-me para fazer um guisado ou um assado e sobre sempre para o dia seguinte, o que é muito bom!) é só aquecer; mas se não há nada feito, grelha-se um bife ou uma costeleta e serve-se com uma laranja às rodelas e uma verdura cozida, ou assim…

E depois, vem a tarde! Longa, silenciosa, displicente… Uma voltinha pelo quintal, se não chove, uns telefonemas de circunstância e de cortesia … E agora? «Vou ler ou vou trabalhar para o computador – tenho tantas coisas para escrever!!!» O pior é que, se me ponho a ler, dá-me o sono e fico com dor de cabeça… Então talvez ir para o computador. Mas antes de me pôr a escrever – que implica consultas e leituras – vou (re)ver o que se passa no facebook… (Admirável e abençoado mundo novo!!!) Entretenho-me, demoro-me e, entretanto, há que ir lanchar (Comer é quase um vício… Hummmm, mas sabe bem… Mas depois do lanche e até à noite ainda tenho muito tempo para trabalhar!)

Se escrevo meia página ou se termino uma tarefa das que fazem parte da lista de coisas para fazer, fico contente comigo própria. Mas também são muitas as vezes que, aí pelas cinco da tarde, já me apetecia acabar o dia e oralizo, por vezes, vocifero: «Que dia tão grande!...»

O jantar é frugal e rápido, mas ainda dá para responder (quase sempre torto…) aos «noticiadeiros» que, com mais ou menos entoação, com mais ou menos piscar de olho e posição corporal de ataque, repetem as entrevistas canhestras e cinzentas feitas pelos estagiários e tecem comentários quase sempre de demérito ao que os governantes têm feito ou dito.

Por fim, vem a parte menos angustiante do dia: o momento de sentar frente à televisão, com a mantinha elétrica sobre as pernas e as gatas enroscadas, uma de cada lado, e partir para as séries da 2 ou da netflix… (Admirável mundo novo!)

Mesmo no fim de tudo, cama ! E ler, ler, ler até que o livro me caia em cima da cara…




segunda-feira, 13 de abril de 2020

Histórias da minha rua (14)


Alguns dias depois da suspensão das aulas por causa do Corona Vírus, a minha neta começou a ter febre e mais febre o que muito nos preocupou. Nem constipação, nem tosse, apenas febre e cansaço. Lá em casa, havia quem tivesse estado em contacto com um colega de trabalho infetado e então hospitalizado.

Contactada a Linha Saúde 24 e depois de várias perguntas para caracterização da situação que, de alguma forma, desdramatizaram e apaziguaram as nossas mentes, houve que marcar um teste. Difícil a marcação. Demorada. Passou uma semana até a realização do mesmo e mais quatro dias passaram para a chegada do resultado – que, felizmente, e como de alguma forma se esperava, deu negativo.

Mas o surpreendente e que em muito nos serenou – apesar de a febre ter continuado por uns dias – foi o facto de todos os dias até se saber o resultado se receber lá em casa o telefonema de um médico a saber como a menina estava a evoluir e se havia mais sintomas.

E depois venham-me dizer que o nosso Sistema Nacional de Saúde funciona mal!





sábado, 11 de abril de 2020

O Coelhinho desta Páscoa...

Este ano deixo-vos um Coelhinho da Páscoa diferente...




sexta-feira, 10 de abril de 2020

Do(s) Presidente(s) desta República

Sabem os simpáticos leitores que por aqui passam que não fui eleitora de Marcelo Rebelo de Sousa e posso avançar que dificilmente alguma vez o serei. Mas ao ouvir hoje a sua (para mim inesperada) alocução ao país sobre as medidas que recentemente foram anunciadas pelo governo, nomeadamente no que respeita ao 3º período escolar e à libertação de presos das cadeias por razões sanitárias, tive de concordar - comigo própria que é com quem mais discuto desde há algum tempo... - que, de facto, o senhor está a portar-se como um verdadeiro Presidente: com um discurso ponderado, estruturado, seguro e verdadeiramente pedagógico, como apoiante rigoroso e incontornável das pessoas, do governo, do país no seu todo. 

A seu favor tem este Presidente a educação de berço, uma cultura de gerações, grande  poder e experiência de argumentação convicta e muitos anos de pedagogia. 

Não, não penseis nem por um momento que estou a deixar-me convencer... Mas uma ideia latente se repete na minha cabeça: «E, como seria, se tivéssemos ainda o anterior presidente?!»  
  
Seria mauzito, seria bem diferente, seria bem pior...

(E desculpai esta minha mente tantas vezes perversa, mas ... quando nas televisões anunciaram as provações por que muitos idosos estão a passar num lar de Boliqueime... nem queiram saber o que fugidiamente me veio à lembrança... que vergonha...)




quinta-feira, 9 de abril de 2020

Carta de Shaan Sahota

Faz já quatro semanas que não saio de casa senão para ir, muito espaçadamente, comprar pão e fazer algumas compras necessárias. 

Não me lembro de alguma vez ter estado tanto tempo fechada em casa e sem ocupação obrigatória.

Nos primeiros dias de solitário confinamento, pensei que não ia aguentar, que iria voltar a ter ataques de pânico e sei lá o que mais… Só que, face a tantos milhares de pessoas que estão a sofrer em termos de saúde, de falta de dinheiro e de aceitáveis condições de vida, não tenho, não temos de que nos queixar e que fazê-lo é mesmo uma arrogância enorme e uma enorme falta de compaixão por quem sofre.

A propósito, passo a transcrever a carta de Shaan Sahota, médico interno a trabalhar em Londres, publicada hoje no jornal The Guardian, (trad. Ana Brett) testemunho em 1ª pessoa do horror que muitos estão a passar que possa servir-nos de exemplo, de consolo pela vida que, apesar de tudo, conseguimos manter.

Que importa estarmos sozinhos e confinados? Que importa não nos juntarmos na Páscoa? Que importa não irmos de férias? Que importa se os miúdos não têm mais aulas ou se lhes dão passagem administrativa?  Estamos de saúde e, de certa forma, sossegados nas nossas vidas...

(Apesar de ser longa, vale a pena lerem!)

«Como médico de cuidados intensivos, consigo ver a crise a desenrolar-se, mas apenas uma pessoa de cada vez. Aqui segue o que vejo. 


A “zona Covid” improvisada do meu hospital é um mundo irreal onde os doentes estão deitados em silêncio e a equipa subdimensionada completa tarefas hercúleas.

Durante o último mês, a primeira onda de admissões relacionadas com a Covid-19 chegou a Londres e ao hospital onde trabalho como médico interno. Há vinte e um dias fui transferido da Cirurgia para os Cuidados Intensivos e treinado para tratar os doentes na nossa Unidade de Cuidados Intensivos em expansão.

Falamos a toda a hora acerca do coronavírus, mas é habitualmente em termos da sua imagem global. Tenho dificuldade em compreender essa imagem a partir da linha da frente. Numa crise desta escala, quero contar-vos a história que tenho visto - a história de uma pandemia que se desenrola uma pessoa de cada vez.

A Unidade de Cuidados Intensivos expandida é um mundo surreal. Coloco camadas de EPI sufocantes para entrar nas “zonas Covid” - tendas de plástico com entradas de fecho-éclair dentro das áreas hospitalares convertidas. Entro numa enfermaria cheia de doentes inconscientes. Não há conversas, apenas monitores a apitar sob o assobio rítmico do ar pressurizado. Passo cada turno de 12 horas a cuidar de dois ou três doentes. É um trabalho humilde, muitas vezes manual. Ajusto os seus agentes anestésicos e verifico o seu débito urinário a cada hora para equilibrar os seus fluídos. Coloco almofadas por baixo de pontos de pressão para que não sofram danos duradouros durante a sua paralisia. Aspiro secreções das suas vias aéreas.

Estou a trabalhar o máximo que consigo, adiando as pausas para casa-de-banho, por um doente que nunca vi abrir os olhos, muito menos respirar por si próprio. É um ambiente difícil para trabalhar.
Vasculho os diários médicos para encontrar os meus doentes antes de terem ficado paralisados, sedados e colocados num ventilador, para vislumbrar um pouco da pessoa que são. Tento conhecê-los através das jóias que costumavam usar, agora guardadas numa bandeja ao seu lado. Idealizo-os a partir dos detalhes dos seus diários clínicos passados.

História social: vive com a esposa e três crianças. Caminhadas regulares, gosta de correr. Nunca fumou.

Observações: frequência respiratória 42 – 48 – 55 – 61 – 61 …

Estes números crescentes, escritos num gráfico do diário clínico, significam que o doente estava com dificuldade em respirar. É uma história que termina com eles inconscientes e paralisados, com máquinas a substituir os seus órgãos em falência, sob os meus cuidados.

Estou a considerar como um desafio lidar com doentes que estão tão mal, porque gostaria que isto não lhes tivesse acontecido. Quando se está a prestar cuidados individuais, é difícil pensar que existem centenas de pessoas nesta mesma posição. Falamos de curvas e picos, mas nada tem a ver com a experiência vivida. Políticos e jornalistas falam agora com a perspectiva dos deuses. Têm uma visão geral da situação que eu simplesmente não consigo ter. Como médico, sinto-me como uma formiga ao lado de um elefante: mal consigo entender o que vejo e é difícil atirar o meu pequeno peso contra ele.

E onde estou, o recurso mais limitado não são os ventiladores, é a força de trabalho básica. Até 50% da nossa equipa habitual não está a trabalhar por doença, auto-isolamento ou medo. Olho em volta e vejo os esforços hercúleos dos meus colegas e isso comove-me.

É como se alguém tivesse dado criptonite aos meus super-heróis, mas eles ainda estão a tentar levantar o carro, porque o que mais podem fazer? Vejo o especialista em doenças infevciosas que lidera a nossa equipa, que silenciosamente retirou o seu turbante e, pela primeira vez na sua vida, cortou a sua barba que mantinha pela sua fé, removidos em nome do controlo de infecção. A sua estatura pode ser inferior, mas não está de forma alguma diminuído. Vejo uma médica interna encharcada em urina laranja brilhante pela rifampicina. Tinha tentado trocar pela primeira vez um cateter urinário, porque não havia mais ninguém para o fazer. Oito anos de educação não a tinham ensinado que é fácil abrir a bolsa, mas muito mais difícil fechá-la. Todos no hospital estão a fazer todo o possível para melhorar estes doentes. Vejo cirurgiões a trabalhar como internos nos Cuidados Intensivos, enquanto dentistas e fisioterapeutas ajudam a rolar os doentes, mudando-os de posição para não sofrerem lesões por pressão. Os meus doentes desconhecem tudo o que estamos a fazer por eles, e as suas famílias não os podem visitar – logo ninguém o vê, mas não estamos a refrear nada.

O nosso tratamento de resgate para os doentes criticamente mais graves é a pronação: colocar um doente entubado de barriga para baixo. Aumentar os cuidados nos casos mais graves é um acto tão humilde e poderoso quanto o simplesmente colocá-los de barriga para baixo.

Cuidar de um doente Covid+ gravemente doente não é o que se pode pensar. Estou tão próximo deles – a colocar colírio nas pálpebras à noite, porque seus olhos que não piscam não sequem. Talvez nunca os vá conhecer, mas vigio os traços de sua respiração à procura de sinais de que precisam da minha ajuda. Troco os lençóis por baixo deles.

Todos nós estamos longe das nossas casas. Somos tão poucos e a tentar tanto e sempre aqui. O meu país passou da fase em que aguardava pela imunidade de grupo - e aceitar a mortalidade que isso poderia causar - a aplicar tudo o que pode para minimizar a perda de vida, incluindo-me a mim. E é esse um pouco do sentido que posso extrair desta situação. Não cheguei a conhecer os meus doentes, mas o que lhes quero dizer, com toda a força dos meus cuidados, é: isto é tudo para vocês, tudo o que temos. A vossa vida importa.»




 Fiquem bem Fiquem em casa!

terça-feira, 7 de abril de 2020

Da efemeridade da vida

Floriu ontem, certamente para me desejar os parabéns, a primeira rosa do jardim.

Linda, amarela e com picos - como convém aqui ao blog...




Hoje, pobrezinha, está já desfolhada e à beira da morte.




Como não recordar o poeta?


As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
        Que em o dia em que nascem,
        Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o Sol, e acabam
        Antes que Apolo deixe
        O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
        Que há noite antes e após
        O pouco que duramos.

11-7-1914
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa


«A vida é o ai que mal soa...» (João de Deus)

domingo, 5 de abril de 2020

Histórias da minha rua (13)

A rapariga já ultrapassou os 20 anos e mora ali mais abaixo. Conheço-a desde garotinha, superprotegida sempre, de família endinheirada, mas com pouco capital cultural.

Com bastantes dificuldades de aprendizagem, lá foi percorrendo o seu percurso escolar até ao 12º ano, tendo eu sido chamada muitas vezes a fazer com ela algum «estudo acompanhado».

No decurso de um qualquer ensino superior, entrou num estágio curricular numa instituição que acolhe idosos, o qual, mercê desta incrível pandemia que estamos a viver, foi interrompido, sabe-se lá até quando. Esta demora e esta incerteza de quando as coisas retomarão o seu rumo normal incomoda-a sobremaneira, aliás como a todos nós.

Um dia destes, telefonou-me e, a propósito das notícias que vão passando nas televisões – mas que ela pouco vê – dizia-me ela: «Só falam da doença e da economia, da economia e da doença e nada de dizerem quando os estágios recomeçam!»

Apesar de a conhecer bem, eu não queria acreditar no que estava a ouvir! Como pude lá lhe dei uma reprimenda, mas duvido que ela tivesse entendido o que eu queria dizer.

É gente desta que temos muita e… votam!




sábado, 4 de abril de 2020

Da purificação




O sociólogo Boaventura de Sousa Santos escreveu um excelente texto no Jornal de Letras de 11 a 24 de março intitulado «Ensaio contra a purificação».

E diz ele: «A distinção entre o puro e o impuro parece ser uma constante de todas as culturas e de todos os tempos. (…) O puro é, em geral, concebido como o estado ideal, superior, tanto no domínio do profano como no domínio do sagrado, enquanto o impuro é concebido como o estado inferior ou a inclinação normal ou vulgar. (…)

O que designamos por cultura ocidental, cuja origem se atribui convencionalmente, sobretudo desde meados do século XIX, à Grécia antiga, segue dominantemente a ideia da separação absoluta entre o puro e o impuro. (…) todas as versões [filosóficas] convergem na ideia de que a purificação é essencial para o estabelecimento da ordem. A purificação permite diferenciar e hierarquizar entre o superior e o inferior, entre o normal e o excessivo, entre o governante e o governado, entre o que pertence e o que não pertence. (…)

O colonialismo histórico foi o campo privilegiado para a consolidação deste senso comum. Os conquistadores e os colonizadores depararam-se com um mundo novo (para eles), tão vasto e tão diferente que a magnitude das diferenças exigia um exercício contínuo de purificação. Os povos originários eram definitivamente inferiores, primitivos, selvagens, em suma, impuros. A sua purificação exigia uma separação particularmente violenta que podia ser exercida por extermínio ou desidentificação via evangelização e, mais tarde, educação. (…) Este senso comum foi um instrumento tão eficaz na violenta dominação colonial, do extermínio à evangelização e à escravatura, da ocupação territorial à expropriação e saque das riquezas naturais dos povos colonizados.

Esse senso comum prevalece até hoje, permanece vivo e está entre nós em múltiplas formas: racismo, extrema concentração de terra, expulsão violenta de camponeses e povos indígenas dos seus territórios, exploração sem precedentes dos recursos naturais, extermínio migratório do Mediterrâneo à fronteira sul dos EUA, persistência e mesmo incremento de trabalho escravo, zonas de sacrifício onde populações descartáveis são envenenadas pela poluição causada pelos complexos industriais, colonialismo tóxico quando as periferias pobres do sul global são convertidas em depósitos do lixo, muitas vezes tóxico, produzido no Norte global (afinal, a impureza é normal entre os impuros, lixo com lixo). (…)

A purificação é sempre a imposição da ordem contra um caos perigoso a ponto e a destruir ou desacreditar; a purificação por separação foi a mãe de todos os despotismos modernos.

Se em vez da conceção da natureza como uma entidade desprovida de dignidade vivente e inteiramente ao dispor dos humanos fosse adotada a conceção espinosista da natureza como principio vital, centro da vida da qual dependemos, certamente a respeitaríamos como a respeitaram sempre os povos originários. E se isso sucedesse, talvez não estivéssemos hoje mergulhados numa situação de catástrofe ecológica. (…)»

……..

E a mim, ninguém me tira da cabeça que – mesmo que tenha sido maldosamente encomendado a um qualquer laboratório chinês ou norte-americano – este Vírus que ora se abateu sobre o mundo (como se estivéssemos a viver dentro de um asfixiante filme de ficção científica) mais não é que um processo de purificação da Natureza contra nós, humanos, que estávamos/estamos a destruí-la.