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domingo, 30 de agosto de 2020

As Cigarras - um texto de J. Tolentino de Mendonça

Deixamo-nos / deixo-me encantar pelos textos do poeta-cardeal. Alguns mais filosóficos, outros mais poéticos, mas sempre belos e justos.

A este não resisti: tive de o trazer para aqui de tão belo, de tão culto, de simples, de tão franciscano…

Chama-se As Cigarras

«Em Portugal, que eu saiba, o melhor lugar para ouvir as cigarras é a poesia de Eugénio de Andrade. Ao menos para mim representou o sítio onde verdadeiramente as escutei pela primeira vez. Mas nesta época em qualquer recanto, por onde quer que se vá, elas tornam audível o verão. Basta um jardim, um matagal humilde, um esconso ao aberto, um atalho mesmo que urbano, umas traseiras, um metro quadrado de calor e silêncio. Ou basta simplesmente um ouvido disponível. Coisa que depois, percebemos, não é afinal tão simples. Já Alberto Caeiro recordava:

“Não basta abrir a janela/

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada...”

Ideias, caves e janelas fechadas são um arsenal mais comum do que pensamos. E é fácil deslocarmo-nos para um sítio distante do nosso mundo habitual, chegarmos a uma estação diferente e continuar aprisionados às mesmas visões ou dentro do mesmo campo acústico. Para ouvir temos, de facto, de arriscar abrir a janela, praticando uma hospitalidade para com a vida que nos surpreende com novos vozeios, nos obriga a contactar com múltiplas linguagens e a acolher outras formas de conhecimento. O verão, por exemplo, como se conhece? Num dos seus poemas, Eugénio escreve:

“Conhecias o verão pelo cheiro,

o silêncio antiquíssimo

do muro, o furor das cigarras”.

O verão tem cheiros, tem cores, come-se à mesa, espera que o escutemos. Na verdade, o mundo torna-se para nós cada vez mais desconhecido se apenas giramos com a nossa portátil filosofia e deixamos de aplicar à realidade os nossos sentidos, indispensáveis para construir aquilo que significa uma experiência.

O fascínio pelas cigarras tem raízes antigas. Em “Fedro”, de Platão, cabe a Sócrates recuperar o seu mito de origem, explicando que elas, antes de terem sido cigarras, eram homens, com uma existência em tudo igual à nossa. E que isso vigorou até ao nascimento das musas. Depois aconteceu que o obsidiante canto das musas provocou neles tal transtorno que aqueles homens não voltaram a comer ou a beber, acabando por se transformar naquilo que escutavam. Nem o estômago vazio nem a secura da garganta interromperam mais neles a dedicação à arte de cantar.

É verdade que a fábula da cigarra e da formiga arrasa com o prestígio das cigarras. Enquanto a primeira canta despreocupada, a incansável formiga acumula provisões. Quando avança o inverno, a cigarra desprovida bate à porta da formiga a mendigar um pouco de grão, mas nada obtém. Pobre cigarra que tem então de compreender, através da penúria, o preço de viver só a cantar. A fábula narra obviamente o triunfo de uma visão utilitarista do mundo, que rapidamente se disseminou por todas as dimensões da vida. O século XVII de La Fontaine afastou-se (e afastou-nos) daquela sabedoria que o medieval Francisco de Assis recomendava aos seus frades. Francisco pedia que reservassem na horta um espaço livre, não cultivado, para que pudessem brotar flores, e, desse modo, o zelo pelo útil não excluísse o perfume que lhe acrescenta o inútil. São Francisco de Assis não podia, por isso, criticar as cigarras. Pelo contrário dizia-lhes: “Vem cá, minha irmã cigarra... canta minha irmã cigarra o Deus que te criou.” A tradição monástica vai pegar nesta imagem e os monges serão chamados cigarras, pois a sua vida contemplativa não procura outra função que o louvor. Ensinam-nos tanto as cigarras. Boa escuta. 

[In Expresso - 4/7/20]



domingo, 16 de agosto de 2020

Poema roubado a um amigo

 Desengane-se quem pensa que o facebook é só maledicência e vouyeurismo... 

Tudo depende dos amigos (facefriends, chamo-lhes eu...) que escolhemos e que, escolhendo-nos, aceitamos.

Este lindo poema foi mesmo roubado a um facefriend... 

Vejam se não é belo!






quarta-feira, 12 de agosto de 2020

No aniversário de Miguel Torga

Miguel Torga, poeta da força, da fúria, da rebeldia transmontana, da natureza, da vida, do Homem e do seu poder criador, o Orfeu Rebelde, nasceu em 12 de Agosto de 1907 em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes. 

Para recordá-lo, deixo aqui este belo poema. Triste, mas belo.



sexta-feira, 31 de julho de 2020

E agora o oposto: «o que importa é não ter medo»


Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que

importa não é bem o negócio

nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que

importa não é ser novo e galante

- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que

importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício

Não

é verdade rapaz? E amanhã há bola

antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal

o que importa não é haver gente com fome

porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal

o que importa é não ter medo

de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:

Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal

o que importa é pôr ao alto a gola do peludo

à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora!

– rir de tudo

No riso admirável

de quem sabe e gosta

ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


Mário Cesariny


(De uma tremenda ironia!!! Mas muito bom!)


                                                                 (daqui)
 

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas


Carlos Drummond de Andrade




(Da próxima vez, trarei um outro poema de um outro excelente poeta que diz completamente o contrário...

É que, como costumava dizer aos meus alunos, em poesia (e na linguagem poética) tudo é possível, tudo se aceita...)

quinta-feira, 23 de julho de 2020

terça-feira, 7 de julho de 2020

A maldição da formiga e da cigarra




Que fique desde já muito claro que eu sempre fui pela cigarra e que a sonsa da formiga sempre me enervou... 

Trouxe a ideia do blog do Centro Nacional de Cultura que tem sempre textos muito bons e depois lembrei-me que o poema do nosso excelente surrealista Alexandre O'Neill foi cantado pela Amália, cujo centenário de nascimento está a celebrar-se.

Por isso, aí vai:


MINUCIOSAS FORMIGAS, CIGARRAS GAITEIRAS

«Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer».


E agora a Amália  (sem fado...)




O poema de Alexandre O’Neill merece atenção especial, sobretudo neste momento em que o debate lusitano sobre a pandemia Covid-19 se torna uma grande encenação de passa-culpas. Como é hábito antigo, passamos rapidamente dos melhores do mundo para os piores. Do milagre para a maldição… Ora formigas, ora cigarras – e esquecemo-nos que somos, sempre fomos, as duas realidades como toda a gente. Felizmente! E razão tem o Alexandre O’Neill – “Assim devera eu ser / se não fora não querer”. (...)

Temos de cuidar dos exemplos das minuciosas formigas e das gaiteiras cigarras. Ou seja, temos de saber ser formigas gaiteiras e cigarras minuciosas. Que é a arte senão o sentimento e o cuidado?  (...)

Esopo ensina-nos sim que a vida não pode esquecer o outro lado das coisas. Daí as representações pedagógicas do mundo às avessas. Poderia a formiga viver sem a música das cigarras? Poderia a cigarra viver sem o trabalho das formigas? Claro que não. Uma fábula é um paradoxo ilustrado. Temos sempre de a ver o direito e o avesso… (...)

[com o Covid] Tudo pode ser mais simples – se redobrarmos as cautelas e se soubermos ser boas formigas e melhores cigarras…



domingo, 28 de junho de 2020

Recado aos amigos distantes


Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.

Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

(Cecília Meireles)




sábado, 20 de junho de 2020

É Verão

Celebremos o Verão 

  • Com a bela imagem do solstício no monumento megalítico




  • Com Sophia
Primeiro vem Janeiro
Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas

A praia onde o vento
Desfralda as barracas
E vira os guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarde
Como uma cantiga

O verão onde hoje moro
É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do verão adolescente

Aqui onde estou
Entre cal e sal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada.

In O nome das Coisas, 1977

***

PRINCÍPIO DE VERÃO

Largos longos doces horizontes
A desdobrada luz ao fim da tarde
Um ar de praia nas ruas da cidade
Secreto sabor a rosa e nardo arde

 in| "Ilhas",1989


  • Com música
 A clássica...




... e a louca...






Nem sei o que vão preferir...
                                    ... talvez isto...





quarta-feira, 3 de junho de 2020

Rancho das Flores

Ando tão vazia de ideias - e de vontade e de tudo, enfim! - que hoje trago aqui imagens do meu nano-mini-micro-jardim que, esse sim, está bem cheio de beleza!

E assim ajudo a embelezar este pedacinho de blogosfera...
























E, a propósito, deixo-vos com um poema de Vinicius sobre as flores.

Rancho das Flores

Entre as prendas com que a natureza
Alegrou este mundo onde há tanta tristeza
A beleza das flores realça em primeiro lugar
É um milagre do aroma florido
Mais lindo que todas as graças do céu
E até mesmo do mar
Olhem bem para a rosa
Não há mais formosa
É flor dos amantes
É rosa-mulher
Que em perfume e em nobreza
Vem antes do cravo
E do lírio e da Hortência
E da dália e do bom crisântemo
E até mesmo do puro e gentil malmequer
E reparem no cravo o escravo da rosa
Que é flor mais cheirosa
De enfeite sutil
E no lírio que causa o delírio da rosa
O martírio da alma da rosa
Que é a flor mais vaidosa e mais prosa
Entre as flores do nosso Brasil
Abram alas p'ra dália garbosa
Da cor mais vistosa
Do grande jardim da existência das flores
Tão cheias de cores gentis
E também para a Hortência inocente
A flor mais contente
No azul do seu corpo macio e feliz

Satisfeita da vida
Vem a margarida
Que é a flor preferida dos que têm paixão
E agora é a vez da papoula vermelha
A que dá tanto mel p'ras abelhas
E alegra este mundo tão triste
No amor que é o meu coração
E agora que temos o bom crisântemo
Seu nome cantemos em verso e em prosa

Porém que não tem a beleza da rosa
Que uma rosa não é só uma flor
Uma rosa é uma rosa, é uma rosa
É a mulher rescendendo de amor

Vinicius de Moraes


domingo, 24 de maio de 2020

Maria Velho da Costa




A escritora portuguesa Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2002, morreu ontem, repentinamente, aos 81 anos.

Nascida em Lisboa, em 1938, Maria Velho da Costa faria 82 anos no próximo dia 26 de junho.

Considerada uma das vozes renovadoras da literatura portuguesa desde a década de 1960, Maria Velho da Costa é autora de conto, teatro, mas sobretudo do romance tendo obras como "Maina Mendes" (1969), "Casas Pardas" (1977) e "Myra" (2008).

Maria Velho da Costa foi  ainda uma das coautoras, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, de "Novas Cartas Portuguesas" (1972), uma obra literária que denunciava a repressão e a censura do regime do Estado Novo, que exaltava a condição feminina e a liberdade de valores para as mulheres, e que valeu às três autoras um processo judicial, suspenso depois da revolução de 25 de Abril de 1974.

As três Marias

Em singela homenagem, deixo aqui o seu emblemático e bem conhecido poema Revolução e Mulheres.


Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de verem o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aí os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.

(In Cravo, Dom Quixote, 1976) 


sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dia do Autor Português

(daqui)


O Dia do Autor Português, instituído em 1982, é comemorado no dia 22 de maio (este dia assinala igualmente o aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores) e pretende homenagear os autores portugueses nas mais diversas áreas artísticas como a pintura, a literatura, a poesia, a música ou o cinema que têm contribuído para o enriquecimento da cultura portuguesa com as suas criações e distinguir aqueles que se destacaram na defesa e promoção dos direitos de autor.



E porque eu leio essencialmente autores portugueses e porque gosto muito de poesia e porque ontem foi Dia da Espiga, dia de ir apanhar a espiga e papoilas, as rubras papoilas, das quais eu também muito gosto, aqui fica, em homenagem aos autores portugueses, este belo poema de Cesário Verde - autor que em muito influenciou a poesia dos modernistas Fernando Pessoa e outros.


DE TARDE

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.

(segunda metade do século XIX)

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Meados de Maio

Este Maio «deu em chuvoso». Chuva que traz um halo de tristeza, de indignação. A madorra, a apatia em que esta «nova normalidade» nos faz cair...

Há que ir à Poesia buscar as palavras que nos reponham a beleza da chuva. Desta chuva de meados de Maio)

Meados de Maio

Chuvoso maio!

Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda

que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!

Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...   

Irene Lisboa, in 'Antologia Poética'



(daqui)

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Palavras de esperança

Em tempos de pandemia, de angústia e de grandes incertezas sobre o que virá amanhã, vamos buscar forças e esperança às palavras do Poeta.


O Futuro   

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.
  
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.
                                                

José Carlos Ary dos Santos





domingo, 3 de maio de 2020

Mãe!

(Maternidade - Almada Negreiros)



Confidências

Mãe! eu não sei nada! Eu não me lembro de nada!
Ah! lembro-me!
Lembro-me de ter ajudado a levar pedras para as pyramides do Egypto!
Tambem me lembro de me ter chamado José, antigamente, com meus irmãos
e uma mulher!

Mãe!
Estou a lembrar-me! Tu já fôste a menina loira! Eu já fui o menino
verdadeiro a quem tu davas de mamar! Eu já estive comtigo na terceira
oleografia!
Lembro-me exactamente! Quando tu me beijavas, o sol não doía tanto
na minha pelle!

Mãe!
Estou a lembrar-me!
E as tardes quando iamos todos juntos soltar palavras no caes e vêr
chegar mais laranjas!

Outras vezes juntavamo-nos na praia para nadar melhor do que os
outros e deixar o sol queimar quem mais merecêsse. Já as laranjas
estavam contentes com o que chegasse primeiro! O melhor jovem ganhava
a melhor rapariga. Os outros sabiam aquella que tinham ganhado. Eu
tinha ganho a minha!

(…)

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar historias ricas que ainda não
viageie. Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta
côr de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de
viagens! Eu vou viajar. Tenho sêde! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu
vou aprender de cór os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me
a teu lado. Tu a cosêres e eu a contar-te as minhas viagens, aquellas
que eu viagei, tão parecidas com as que não viagei, escritas ambas
com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a meza. Eu tambem
quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa
casa, como a meza.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

(in Invenção do Dia Claro, Almada Negreiros, 1921)


(daqui)    Almada Negreiros ao colo da mãe, Elvira Sobral de Almada Negreiros, 1894 

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Soneto de Maio





Suavemente Maio se insinua
Por entre os véus de Abril, o mês cruel
E lava o ar de anil, alegra a rua
Alumbra os astros e aproxima o céu.

Até a lua, a casta e branca lua
Esquecido o pudor, baixa o dossel
E em seu leito de plumas fica nua
A destilar seu luminoso mel.

Raia a aurora tão tímida e tão frágil
Que através do seu corpo transparente
Dir-se-ia poder-se ver o rosto

Carregado de inveja e de presságio
Dos irmãos Junho e Julho, friamente
Preparando as catástrofes de Agosto...

Vínicius de Moraes

(Poema escrito para a realidade do Hemisfério Sul)