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quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Aquilino Ribeiro (1885-1963)

E porque passam hoje, 13 de setembro, 133 anos sobre o nascimento do grande autor de O Malhadinhas, deixo aqui o excerto de um texto de Baptista-Bastos sobre o grande Homem que foi Aquilino.



«Para Aquilino Ribeiro, a questão essencial do homem sempre foi a questão da liberdade. E a relação do grande escritor com Portugal teve em constante cuidado a ausência dessa dimensão e a exigência de um compromisso moral em combater essa ausência. E, também, na defesa da razão, na crença no progresso e no poder da palavra. A obra vasta, poderosa e singular do autor de A Casa grande de Romarigães constitui o mais fascinante quadro poliédrico da realidade portuguesa. Na História, nas fontes medievais, nas ficções, nos ensaios, nas polémicas ele procurou uma espécie de «modernidade» sem deslocação temporal que identificasse a passagem do catecismo religioso para as diversas outras formas de autoritarismo concebido como a mais atroz forma de atraso.

É um momento sem par na cultura portuguesa, em que a ética do empenhamento se associa à estética funcional do trabalho literário. A vastíssima galeria d personagens aquilinianas é uma avaliação do que somos e do que fomos. E o que impõe a distinção desta obra a todas as outras, suas contemporâneas ou precedentes, é a poderosa persuasão de cada um seguir a sua consciência e de não desistir de conquistar a sua própria liberdade. (…)

O grande autor desta biografia-crítica [O Galante Século XVIII – Textos do Cavaleiro de Oliveira] passou a vida a correr riscos, a afrontar os poderes, a denunciar a mentira, a fustigar a hipocrisia. Desprezava os escreventes de vários matizes que desonravam a Imprensa e a literatura. Quando foi imperioso, colocou de lado a pena e empunhou o trabuco. (…) As relações de domínio tão bem expressas por Aquilino, podem ajudar-nos a refletir acerca da natureza do poder e da tendência do poder (qualquer que ele seja) para o autoritarismo. É preciso, pois, não temer o tirano. É preciso protestar contra a servidão. É preciso resistir: resistir é uma forma superior de sobrevivência, e sobreviver é permanecer enfrentar as contínuas tentativas de degradação da condição humana.

Aquilino Ribeiro ensinou-nos a liberdade.»

Baptista-Bastos, Julho 2008

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O Avejão

O saudoso Baptista-Bastos é que o definiu bem! E eu lembrei-me hoje deste texto vá-se lá saber porquê...

"O avejão ensombra, há tempo de mais, a sociedade portuguesa. 

O avejão, sobre ser (diz o dicionário) uma ave agoirenta, é homem alto e feio.

O avejão tem gosto particular pela necrofilia.

O avejão é um pouco tonto, burro e desajeitado.

O avejão odeia os outros, pessoas ou aves.

O avejão é esquisito, todos o desprezam e detestam.

O avejão só sabe adejar numa atmosfera sombria e lúgubre.

O avejão paira sobre as coisas, nunca se aproxima muito, por receio de represálias.

O avejão é produto típico do monturo.

O avejão voa só, nenhum pássaro tem por ele afecto.

O avejão é assolado por doenças perdidas e morre de barriga para baixo.

O avejão é nojento, sobretudo a rir ou a debicar bolo-rei.

O avejão tem inveja deste mundo e do outro.

O avejão, ao abrir a boca, exala cheiro fétido.

O avejão nunca leu um livro até ao fim.

O avejão permitiu que, em seu nome, fosse publicado, num inquérito, títulos de livros que não frequentou.

O avejão gosta muito do programa cultural ‘A Quinta’.

O avejão, como o carcará, pega, mata e come.

O avejão, convém repetir, é um ser fedorento.

O avejão, sobre ressonar a dormir, e dorme muito, no palácio, tem flatulência.

O avejão tem dificuldades com a tabuada.

O avejão tem dificuldades com a língua portuguesa.

O avejão não sabe fazer o nó da gravata.

O avejão baba-se a comer.

O avejão baba-se se contrariado.

O avejão baba-se sem motivo aparente; baba-se.

O avejão, que tem dificuldades com o português, o idioma e o propriamente dito, não sabe onde pôr as mãos quando fala, ou diz que fala.

O avejão não parece um espeque: é um espeque.

O avejão é amaldiçoado pelos deuses que assim o configuraram, coitado!

O avejão está no estertor, e no estrebuchar ainda se julga alguém e comete pequenas perfídias.

O avejão desconhece que circunstâncias fortuitas lhe têm permitido que voe alto.

O avejão é a vergonha de todos os pássaros: todos são belos, menos ele, repelente.

O avejão não é apenas aquilo de que se sabe, nem, somente, as definições que vêm no dicionário.

O avejão há muito que morreu e não sabe que está morto.

O avejão foi abatido pelo Raul Brandão, que, diz-se, se inspirou numa noite de pesadelo. *

O avejão tem sido o pesadelo de nós todos, mesmo daqueles que o lisonjeiam.

O avejão está prestes a ser escorraçado, sem ter edificado um trémulo instante de grandeza.

Abaixo o avejão, abaixo!"


25 de novembro de 2015


                                                    * 

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Morreu o BB

Foi com grande espanto e alguma consternação que ontem recebi a notícia do desaparecimento do grande jornalista, cronista e também escritor Baptista-Bastos.

Sabe, quem generosamente frequenta este meu espaço, que para aqui transcrevi muitas das suas crónicas que ele escreveu enquanto não foi ignominiosamente despedido do Diário de Notícias.

Como gostava da sua forma elegantemente escancarada com que ele desferia as suas setas certeiras contra quem, durante os últimos anos, comprimiu e quase quis açaimar este nosso país, este nosso povo ainda e sempre tão necessitado de quem lhe mostre o caminho.

Fazia-o de forma desassombrada mas algo pedagógica, usando o seu estilo fluente mas preciso, chamando as referências históricas, literárias e políticas mais penetrantes e mais esclarecidas, num vocabulário rico, elaborado mas bem truculento, e com a sintaxe de quem estudou (ou não) latim.

Que era assaz duro e que tinha mau feitio. Se calhar assim era. Mas defeitos todos temos, desenganem-se aqueles que assim não se julgam.

Sobre si próprio (e de mais um punhado de outros jornalistas dessa era que fundaram o semanário O Ponto) escreve BB que se tratava de «um singelo sonho de liberdade acalentado por um grupo de jornalistas que de seu só possuía a honra jamais hipotecada e a ingénua convicção de que as palavras (sempre de recusa, sempre de protesto, sempre exaltantes) poderiam ser integradas na grande voz colectiva e aceites pelas minorias sem voz.» E acrescenta que a escrita, a sua e a de outros jornalistas como ele, «é um tributo ao sonho e à esperança. Sonho e esperança de que o homem está sempre em questão, é sempre questionável, deve ser questionado, e que legitima, devido às suas constantes dúvidas, todas as questões. E também porque o homem em questão coloca como ponto prévio, antes de tudo e se necessário contra todos, a questão da liberdade.» (in “Um Homem em Ponto – Entrevistas por Baptista-Bastos, 1984)

É assim que eu penso. E (também) por isso, lamento tanto a perda.





quarta-feira, 25 de março de 2015

Os cofres cheios



Muito se tem dito e escrito acerca desta (e de outras) bacorada(s) que a ministra (esta sim) sinistra lançou boca fora para os jotinhas do partido, mas ninguém de uma forma (quase) literária como só BB sabe fazê-lo! A crónica chama-se «O Insulto» e vale a pena lê-la.

É sempre um prazer lê-lo! Só lamento que tenha de ser naquele jornaleco de baixo nível.

«Num conclave do PSD, Passos Coelho apareceu na defesa da ministra Maria Luís, a qual, dias antes, trémula de orgulho, afirmara, à puridade, que o Governo tinha os cofres cheios de dinheiro.

E Passos, muito feliz, acrescentou: ao contrário do que sucedia com o Governo anterior. Como o têm dito economistas de todas as cores, a verdade não é esta, e a teoria da bancarrota só faz sentido para quem é mentiroso, e usa o imbróglio como lança para alcançar ou permanecer no mando.

Infelizmente, este Governo, com as práticas demonstradas ao longo de quatro anos pavorosos, repletos de escândalos, de confrontos com a própria noção de república, tem sido, é, o maior aborto democrático e o mais grave insulto a todos nós. (...)

Talvez estejamos no turbilhão de uma profunda mudança, cujas conveniências escapam ao modelo de humanismo no qual, mal ou bem, temos vivido.

Inclino-me a admitir o facto. Mas também não conjecturo um grupo de serventuários tão inepto e iletrado como este a servir essa transformação.

Se o faz, desobedecendo ou ignorando as leis da convivência social e da cordialidade mais rudimentares, dá como resultado a frase execranda de Maria Luís e o apoio despudorado de Pedro Passos Coelho.

Portugal estrebucha na miséria, com fome, sem esperança e sem norte, e aqueles dois bolçam em nós o critério do cofre cheio, como no tempo do Salazar.

Com, entre outras, uma diferença: o Salazar era um conhecedor da língua, por frequentador diurno e nocturno do Padre Vieira, e aqueles que tais nem sabem quem este foi.

A pátria está dividida, mas o desvio de vida e de consciência acabará, talvez mais cedo do que se pensa, e o episódio Passos Coelho e os seus, não serão mais do que isso mesmo: um episódio. Nefasto, bem entendido, mas episódio, circunscrito a um tempo em que a mentira vicejou."

(Baptista-Bastos, in CM, 25/03/2015)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Não há machado que corte...

Depois de ter sido mandado calar no DN, Baptista-Bastos escreveu na semana passada, no Jornal de Negócios, a crónica que aqui transcrevo hoje e que devemos ler com atenção.



A voracidade destrutiva do grupo de Passos Coelho é a maior tragédia que tombou em todos nós, os que trabalham, desde o 25 de Abril.

A sociedade portuguesa está cada vez mais pesada e trágica. A entender o que diz, ou sussurra, ou omite o Orçamento do Estado, a miséria vai aumentar para os mais desprotegidos, e a reposição de 20% dos cortes aos funcionários não passa de uma decisão ultrajante. O Governo está a cair aos pedaços fétidos e não pára de ferir fundo aqueles de nós, como eu, com perdão da palavra, que têm de continuar a trabalhar ou a biscatar para sobreviver.

A voracidade destrutiva do grupo de Passos Coelho é a maior tragédia que tombou em todos nós, os que trabalham, desde o 25 de Abril. Temos de repetir esta evidência até que a voz nos doa. Agora, alguns dos patrões que enriqueceram com as benesses e as facilidades propiciadas por este Executivo, já começam a recalcitrar. A própria direita, corporizada em Paulo Portas, percebe que o chão lhe está a fugir, mas metem nojo, por exemplo, as declarações de Lobo Xavier, um dos homens de mão do Belmiro de Azevedo, ou as patetices de Nuno Melo (parece ser assim o nome do desenvolto) quando proclama a melhoria de vida dos portugueses. O Governo está em estilhaços, as malfeitorias que pratica não cessam, e o Orçamento do Estado constitui um ultraje ignominioso, a crer nos economistas e em toda a oposição. O próprio António Saraiva, patrão dos patrões, começa a não poder esconder o mal-estar que se lhe apossou, independentemente de estar visivelmente doente.

Mas a questão central continua a mesma: e depois de Passos, que decisões tomará o novo Governo, ante este caos económico, moral, social e cultural?

Às vezes, muitas vezes, penso quais serão as conversas que o primeiro-ministro terá em família? E a família ficará infensa à gritaria, aos protestos, ao caudal de desemprego, de fome de miséria que se estende pelo País?

Claro que o futuro de Passos estará sempre garantido, e o espectro do desemprego não tocará nunca no batente da sua porta. Deixa, atrás de si, um país que destruiu, e cujos escombros são a trágica afirmação de uma prática governamental pautada pela mais atroz incompetência. Os seus amigos serão a senhora Merkel, o senhor Juncker e o sinistro dono das finanças alemão, cujo nome me causa engulhos, e que foi o grande patrocinador desta macabra experiência político-económica. O ministro Gaspar já está arranjadinho, e só não passa à história como biltre porque os portugueses são esquecidos, fazem-nos esquecer ou negligenciam a sua pessoal sobrevivência.

A preguiça mental e social e a cobardia nascida da indiferença são as causas gerais da nossa decadência. Há restos de dignidade e de decência, como a que corresponde a atitude de Maria Teresa Horta, grande poetisa e grande carácter, que recusou receber, das mãos de Pedro Passos Coelho, o prémio da Casa de Mateus, enquanto um "escritor" inexistente, arfante de alegria, foi medalhado pelo dr. Cavaco, com esfuziante entusiasmo e pouca-vergonha a condizer, servindo de berloque à direita mais sórdida.

António Costa, presumível primeiro-ministro, vai estar em terreno armadilhado. Só o apoio das forças de esquerda poderá impedir o que se prevê. A imprensa está a mudar de donos, e criaturas estipendiadas são colocadas em lugares-chave da comunicação social, perante a impávida disposição das Redacções.

Apesar deste caos moral e social, e das minhas apreensões ante o panorama, continuo a acreditar que possuímos forças suficientes para enfrentar a avalanche. Não podemos é desistir. Desistir, nunca, e em circunstância alguma.



NOTA A TEMPO - Aproveito para agradecer aos leitores que se interessaram pela minha saúde, na semana passada. E, também, a todos aqueles, às centenas, indignados com um percalço de que fui protagonista. A saúde foi um transtorno passageiro. No outro caso, recorro a Carlos de Oliveira: "Não há machado que corte / a raiz ao pensamento."




quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Revivescências de um dia

  1. Baptista-Bastos, o intrépido comentador da realidade do país às 4ªs feiras no DN, foi, ao fim de sete anos de belas e intensas crónicas semanais, mandado calar. «Fui posto fora» - escreveu ele hoje. «Mas não posso calar o que me parece um acto absurdo, somente justificado pelas ascensões de novos poderes. Porém, esses novos poderes são, eles próprios, transitórios pela natureza das suas mediocridades e pelo oportunismo das suas evidências.»
  2. Mas entretanto, os «juízes são os primeiros a ter aumentos no pós-troika» - porque será? Serão os trabalhadores (recuso-me a usar o neologismo laboral de “colaboradores”) mais mal pagos do país, ou haverá outra razão um pouco mais profunda?!
  3. A ministra-sinistra das Finanças e o super-competente  governador do Banco de Portugal (que hoje também reviu em baixa o crescimento da economia previsto pelo governo) depois de jurarem a pés juntos, desde Agosto, que os contribuintes não poriam um cêntimo do seu bolso no desastre do BES, vieram agora dizer que, se calhar, não poderá ser bem assim… Enganaram-se, pois então! Mas estes nem pedem desculpa.
  4. A ministra da Justiça, essa pediu desculpa, mas foi sempre dizendo que não houve caos nos tribunais. Hoje, em entrevista informal a alguns repórteres em que deu conta que os tribunais vão, aos poucos, recuperando a plataforma e tal, pediu-lhes, tão humilde (!!) «Não me façam mentir…»
  5. Quem não se enganou, nem mentiu, nem nada, foi o inefável ministro (C)rato que, na semana passada,  afirmou no Parlamento que «nenhum professor seria prejudicado» por causa do erro nas colocações, vem agora dar o dito por não dito, declarando que não prometeu aos professores a manutenção no lugar. Ele disse tão-somente «mantêm-se» e não «manter-se-ão»! «Todas as minhas afirmações na altura têm de ser lidas com atenção e interpretadas dentro do quadro legal. Os professores mantêm-se, disse. Mantêm-se até às novas listas de colocação corrigidas, que tacitamente revogam a anterior. É a lei», declarou. – o senhor ministro sabe gramática…
  6. A comissão de inquérito aprovou no Parlamento o encerramento do caso dos submarinos com os votos favoráveis da maioria PSD/CDS e com os votos contra de toda a oposição que apresentou uma declaração conjunta Relatório viciado, inquérito inacabado.” Nesse documento, PS, PCP e BE acusam o relatório de Mónica Ferro de “branqueamento”, “vontade de abafar o debate”, “selecção tendenciosa de depoimentos”, “tentativas de encobrimento” e “dúvidas graves”. Apesar de tudo isto, os senhores Durão Barroso e Paulo Portas podem continuar a dormir descansados...
  7. Frase do dia encontrada no facebook:
    «Este desgoverno é versado em cobardês, desavergonhês, e passa-culpês. Obviamente, prefiro o eduquês!!»
  8. Mais revivescências haveria a registar, mas fico-me por estas – que não são nada poucas, nem boas – não sem antes referir a última:
    Faz hoje quarenta anos que vim viver para Leiria.  E esta não comento...




quarta-feira, 5 de março de 2014

A nossa vil tristeza

(Camões por Júlio Pomar)

Mais uma das certeiras crónicas de Baptista-Bastos! Docemente violenta, suavemente crua, assertivamente crítica e sempre, sempre extraordinariamente culta. De quem sabe do que fala, de quem vivamente conhece a nossa história, a nossa cultura, a nossa literatura. Nos antípodas «desta súcia trepada ao poder»… Referências a Camões, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Alexandre Herculano e conversas com Alice Vieira para lamentar o estado a que este triste povo chegou mercê da «estratégia de embuste» levada a cabo pela dita «súcia» sem decência e sem vergonha com a cobertura de um presidente que no estrangeiro «diz coisas absurdas e abstrusas» mostrando a sua «tenaz mediocridade» é de mestre!

Não é novidade para ninguém que não perco uma crónica de BB (e até já comprei o seu último livro “Tempo de Combate”) mas aquele final da crónica de hoje «"Isto dá vontade de morrer", para lembrar o grito d"alma de Herculano, em hora de desânimo como a de agora» bateu forte.

É que minutos antes, ao ouvir as notícias da hora do almoço, eu tinha tido o seguinte desabafo: «como compreendo a atitude de Antero de Quental, num país destes!»

Nota: o título da crónica de hoje é decalcada num verso de «Os Lusíadas», desabafo do poeta que, por acaso – ou não por acaso – continua muito, muito actual.

 «O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
D'uma austera, apagada e vil tristeza»


(Lusíadas, X,145)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Chove mais uma vez




Porque hoje foi mais um dia de chuva, recolhi um poema de 2011 escrito por um poeta e artista de várias outras artes contemporâneo – José Carlos Barros.

chove mais uma vez
oiço lá fora o barulho da água a correr nas caleiras
a espalhar-se nos passeios de cimento
estou na sala da casa da
minha avó
passo a ponta dos dedos pela gravura
japonesa da tampa da
caixa de costura
há um único livro
a velhice do padre eterno
os versos do meu pai em folhas quase
transparentes

chove mais uma vez
a infância é um pássaro aceso nos ramos das árvores
um território de meteoros incendiados
numa bacia de plástico
com água
da chuva

(in «Rumor», 2011)

E, a propósito da sua referência ao livro «A Velhice do Padre Eterno» de Junqueiro, lembrei a excelente (e arrasadora) crónica de Baptista-Bastos ontem no DN, que zurzindo a imagem angelicamente pungente e a prestação hipócrita do pequenino ministro Mota Soares nas celebrações dos 500 anos das Misericórdias, recita de cor e em paralelo, parte do tremendo poema recolhido no livro de Junqueiro, «Os Parasitas», que também aqui deixo.


«No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.»

(Guerra Junqueiro)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ramalho Eanes

Nunca foi daquelas figuras da política que, à partida, me agradou. Não votei nele em 76 aquando da sua primeira eleição e, da segunda vez, foi uma antiga colega, mulher de um militar que o conhecia bem que me "convenceu" a votar nele. A criação do PRD, à saída de Belém, desiludiu-me de todo e, de então para cá, a figura do General desvaneceu-se-me completamente.

Daí que fosse surpreendida por esta homenagem repentina que nem entendi muito bem. Mais moderada do que penso que sou, fiquei, no entanto, um pouco chocada com o "verdete" que algumas pessoas da esquerda de que se pensam donos absolutos tentaram destilar sobre a dita homenagem chegando a afirmar que a ação do general, à época tenente-coronel, no chamado golpe do 25 de Novembro (de 1975) marcou o início do descalabro.

Não encontrei as palavras exatas nem o tempo necessário para, de alguma forma, aqui responder a esse tipo de provocação, mas que bom que há quem tenha as ditas palavras exatas para o fazer com a necessária elegância e subtileza, ainda por cima homem de esquerda. E é esse texto de Baptista-Bastos - uma vez mais (que não há de ser a última) - que deixo aqui como contestação de muitas opiniões, ou melhor, certezas absolutas que uma certa esquerda hermética e empedernida pretende sobrepor a tudo e a todos.


«Uma firmeza de carácter que poderia ser entendida com juízos contraditórios, tanto mais que ele raramente sorria. Conheci-o em 1977, durante o 11 de Junho, na Guarda. Fora enviado à cidade alta, para relatar, em uma página do Diário Popular, o que se me afigurava fastidiosamente desinteressante. Não o foi. E, em vez da página combinada, a qualidade comovente dos acontecimentos impeliram-me a escrever um suplemento de dezasseis. A acompanhar-me, Rocha Pato, correspondente do jornal em Coimbra, estimado camarada e jornalista fora do comum. O homem aparentemente distante, recém-eleito Presidente da República, foi à sala da imprensa. Quando lhe disse o meu nome, ele respondeu: "Sei muito bem quem o senhor é." E apertou-me a mão com firmeza e calor. António Ramalho Eanes. Ficámos amigos até hoje. Com ele viajei por Portugal e ao estrangeiro. Aprendi que ele dispunha de um sentido de ironia por vezes devastador, e que, apenas com uma frase era bem capaz de definir um homem e o seu cunho. Em épocas menos airosas da minha vida, havia sempre umas palavras, pelo telefone ou em carta. Certa vez, estava eu a passar pelos atropelos de uma insídia, ele telefonou e disse-me: "Não se esqueça de que só apedrejam as árvores que dão fruto." Não esqueci.

Um homem como este, que desperta a estima em pessoas tão diferentes como Miguel Torga, Jorge de Sena, Vasco da Gama Fernandes ou Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira, terá de possuir algo de distinto e até de oposto aos hábitos e vícios da época. Num tempo desvairado, onde a mentira e a omissão se sobrepõem aos valores da integridade, da honra e da decência, Ramalho Eanes é peça quase única. Eu, pelo menos, conheço poucos ou nenhum que se lhe equipare. Ele é um homem com a respeitabilidade antiga, daqueles para quem o aperto de mão constituía um compromisso irrefragável; um desses raros cavalheiros da velha fidalguia de província que jamais quebra o pacto de decoro e de brio estabelecido consigo mesmo. De contrário, seria "uma vergonha."

A homenagem que lhe fizeram vem na hora própria porque abre um parêntesis de memória virtuosa no lamaçal em que se pretende afogar-nos. O Marcelo, como lhe é costume, tentou confundir a reunião da Aula Magna com o tributo a Eanes, demarcando uma como de Esquerda e outra de Direita. Astúcias frequentes no comentador, tal o velho palhaço Chacrinha, na televisão brasileira, que dizia: "Estou aqui para complicar; não para explicar." A verdade é que tanto Soares como Eanes, se não obtêm unanimidades, conquistaram o afecto de muita gente de Direita e de Esquerda, indiscriminadamente. Viu-se, aliás, nos dois acontecimentos aludidos. E se esse afecto não é determinado pelos mesmos motivos e razões, outros há, de certeza, que aclaram e justificam a sua peculiar natureza. Uma certeza: nenhum destes dois está no outro lado da História.»

BB, DN, 27/11/2013

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A baderna

«... Os funcionários para aqui mandados são fiscais de contas, sem poder decisório porque esse pertence ao FMI, ao Banco Central Europeu e à Comissão Europeia. (...) os burocratas que nos visitam, a fim de verificar se obedecemos às regras impostas, são paus-mandados, e eles próprios atendem ao que lhes impõem os directores daquelas três instituições, as quais são coordenadas friamente pela Alemanha.

Ignoram a História, a cultura, as características, as idiossincrasias dos povos por onde passam, em curto ou ampliado tempo. Pouco se importam se humilham ou desdenham das nações em que foram encarregados de proceder aos seus varejos. Os vexames a que têm sujeitado o povo grego são das situações mais ignóbeis verificadas no nosso tempo, e possuem as distintivas particulares de um sórdido ajuste de contas. O que a Alemanha não conseguiu, com duas guerras mundiais, está a obtê-lo agora, com a mediocridade ultrajante, a cumplicidade servil e a sevandijice nojenta dos dirigentes políticos europeus.»

Baptista-Bastos

A baderna a que o escritor-jornalista se refere na crónica da passada 4ª feira, inclui, para além dos funcionários da troika, o chefe deste "governo", todo o executivo, «o dr. Cavaco, dito Presidente da República» a, acrescento-lhe eu agora a senhora Merkel depois da retumbante vitória nas eleições de ontem no seu país. 




quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O mentiroso compulsivo

Eu bem sei que muitos dos meus queridos seguidores não falham a leitura das crónicas das 4ªs feiras do jornalista/escritor Baptista-Bastos pelo que se torna repetitivo transcrevê-las para aqui. Mas a crónica de hoje é por de mais relevante e atual - e por de mais bem escrita - para não a reproduzir.

Não posso deixar de chamar a vossa atenção para o vocabulário meticulosamente escolhido para que o efeito nos leitores tenha a força contundente tão grande e tão contundente como é a atuação do visado sobre o povo. Muito bom!

O mentiroso

«Pouco há a fazer senão demonstrarmos a nossa indignada repulsa. O homem é um mentiroso compulsivo. Há dois anos ameaçou-nos com o empobrecimento, "única alternativa", dizia, à soberba que de nós se apossara para vivermos "acima das nossas possibilidades." Íamos, pois ficar mais pobres do que temos sido. Depois, como a Fénix que renasce das cinzas, gozaríamos de um cintilante futuro. O rol de miséria que se seguiu causou-nos infortúnios e desditas sem nome. Agora, o mesmo homem, possuído de amnésia contumaz, veio afirmar que nenhum político seria capaz de afirmar tal destino. A SIC, pressurosa e cheia de zelo informativo, foi aos arquivos e retransmitiu a primeira e a segunda mensagens. Acaso para avivar a lembrança do desmemoriado ou, simplesmente, para reforçar o que dele sabemos: transformou a mentira numa banalidade.

O pior de tudo é que não nos podemos esconder nem fugir deste homem. Ele está em todo o lado, com rostos diversos e múltiplos, a mesma voz enfática, a mesma mentira travestida, as mesmas maneiras afáveis e frias. Mentir a nós, que temos cama, mesa e roupa lavada asseguradas, é o menos. Mentir aos desempregados, aos velhos, aos miúdos famintos nas escolas, aos moços e moças que não sabem o que fazer porque lhes foi tirada a mais ínfima parcela de sonho - essa, sim, é uma mentira monstruosa, a merecer todas as maldições, os maiores dos desprezos, a mais vil de todas as execrações.

Como é possível que haja gente, presuntivamente de bem, a apoiar este mentiroso que não só nos empobreceu materialmente como nos enfraqueceu a alma, nos amolgou o espírito com perseverança infame, e continua a impelir-nos para uma perdição tão maldosa que, ela própria, nos escapa; como é possível?

A mentira multiplicada quebrou a coesão e colocou portugueses contra portugueses, numa endemia moral que irá prolongar-se. Com extrema dificuldade, os governos que se seguirão conseguirão repor o que nos indicava como o povo mais lógico, por mais unido, da Europa. O mentiroso conseguiu o que mais ninguém obteve, com repressão ou com o montante. Levou-nos até ao desgosto da palavra, porque houve quem acreditasse na voz de tenor, falsamente casta, e na insistência maviosa dos temas.


Redignificar a função, reabilitar a grandeza do falar verdade, é tarefa de resgate incomum; e não vejo quem disponha da elevação necessária e urgente para tal empreitada. Os políticos entenderam a facilidade como norma de uma vitória sobre o tempo, e abandonaram, por incúria e ignorância, as convicções e a consciência de missão. O seu combate é outro. E no caso português muito mais evidente, pelas debilidades culturais dos intervenientes. O mentiroso comum é desprezível; o mentiroso político, abominável: pertence a uma época estimulada pela incerteza, e incapaz de se opor às estruturas ideológicas que tomaram conta da Europa.»




quarta-feira, 1 de maio de 2013

Duas ou três coisas no 1º de Maio




1. Como é costume neste dia, vestimos uma peça de roupa vermelha e hoje lá saímos os dois de pullover encarnado para relembrar a luta quase sangrenta dos trabalhadores de há mais de cem anos pelos seus direitos face a uma classe de patrões que os explorava e oprimia.

Chegados ao café onde todas as manhãs vamos beber a bica, diz a simpática jovem – ainda na casa dos vinte – que diariamente nos atende com um sorriso nos lábios: «Que bonitos! Hoje vêm a condizer; os dois de vermelho!» E eu: «O 1º de Maio é vermelho!» E ela, sempre simpática: «Ai é? Não sabia! Mas porquê? Hoje é o Dia do Trabalhador; isso eu sei.» E lá lhe expliquei com toda a simplicidade sobre a luta dos trabalhadores e de como não se podia celebrar este dia no tempo da ditadura e assim… É que estes jovens até têm o 12º ano, mas falta-lhes ouvir falar das coisas que sucederam ainda há tão pouco tempo.

2 . Como espantado ficou o meu marido quando, num lar de idosos, leu, em cartazes afixados nas paredes, as opiniões de alguns deles sobre o que foi o 25 de Abril! Que nada lhe deviam, que nada tinham ganho, que nada fora feito. Espanto? Como? Porquê? Sabemos como este povo era (é!) fechado, ignorante e inculto, grato aos céus e aos governantes (que graças a Deus eram muito sérios e zelavam por nós) por manterem assegurado o pão-nosso de cada dia, mesmo que este fosse duro e bolorento; por viverem escorados numa hierarquia em que se obedecia ao que o senhor prior – representante natural de Deus na Terra – dizia, devendo a mulher obediência cega ao marido – mesmo que fosse emborrachar-se todos os dias para a taberna e lhe batesse e aos filhos no seu ziguezagueante regresso a casa – devendo os filhos, quantos mais melhor, tudo se cria, ser postos a trabalhar aos sete anos para ganharem para os pais comprarem terras e mais terras e assim se vivia. Tão bem! E depois veio o 25 de Abril e estilhaçou essa realidade podre mas tão segura! Veio o 25 de Abril e agitou as mentes das pessoas! Veio o 25 de Abril e obrigou as crianças a irem para a escola! Como poderão estas velhas iletradas e estes velhos esdrúxulos dizer bem daquela onda gigante que lhes submergiu a santa vidinha de lodo parado?

3 .  É de gentinha com esta mentalidade ignara, atada e minúscula que descende o atual presidente (o pior de todos desde Abril!) que ascendeu a Belém mediante o voto de muitos seus iguais e que o inigualável BB tão bem define na sua habitual crónica das quartas-feiras, hoje, 1º de Maio. Diz ele: «É a criatura que há, o Presidente que se arranja, irremissível e sombrio. Medíocre, ressentido, mau-carácter, incapaz de compreender a natureza e a magnitude histórica da revolução. E sempre agiu e se comportou consoante a estreita concepção de mundo com que foi educado. A defesa da direita mais estratificada está-lhe no sangue e na alma, além de manter, redondo e inamovível, um verdete avassalador pela cultura.»


quinta-feira, 28 de março de 2013

O homem está em grande forma!



Não fui eu quem o disse! Se bem que ache que ele arrasou. Se bem que ache que, desde a exibição da novela Gabriela nos idos de 77, nunca o país esteve tão suspenso de uma transmissão televisiva como ontem para assistir à entrevista feita por aqueles tristes jornalistas mal preparados ao ex primeiro-ministro.

Mas, de facto, goste-se ou não dele, o homem está em grande forma - o que não constitui grande surpresa para quem o conhece. E quem o diz é o (neste caso) isento Baptista-Bastos no seu estilo inconfundível. Senão, vejam.


«Notoriamente, os dois jornalistas destacados para entrevistar José Sócrates estavam impreparados, ou não tomaram em consideração a aptidão dialéctica do ex-primeiro-ministro, ou, pior, não estavam ali para esclarecer, sim, acaso, para baralhar e entrar em chicana, colocando-se como protagonistas, quando deviam ser mediadores. Chegou a ser pungente a evidência com que o entrevistado repôs a natureza dos factos, perante a turva propriedade das enunciações. O esclarecimento das manobras e das conspiratas com origem em Belém, e as inclinações ideológicas do dr. Cavaco, que põem em causa a sua tão apregoada "independência", foram pontos fulcrais da entrevista. Ficou-se a saber o que se suspeitava: o manobrismo unilateral de quem começa a ser cúmplice consciente do desastre para que nos encaminham. Um a um, ponto a ponto, Sócrates rebateu as alegações de "desincorporação" que ambos os jornalistas se aplicavam em expor, recorrendo às instâncias que estabeleciam as relações marcantes na época. Aí, a sua intervenção foi arrasadora. Claro que Sócrates e o seu governo não podem ser responsáveis de todas as malfeitorias, apesar das estruturas de contra-informação utilizadas, da negligência propositada de alguma comunicação social, e que ele denunciou com denodo. A entrevista foi extremamente interessante porque o reconhecido talento de José Sócrates voltou a impor-se em grande estilo. Ficámos esclarecidos? Não; porque os entrevistadores, além das deficiências apontadas, foram intimidados pelo "animal feroz". O homem está em grande forma.»

(Esta deve ter sido a fúria que o PR apanhou ontem à noite...)