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domingo, 24 de maio de 2020

Maria Velho da Costa




A escritora portuguesa Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2002, morreu ontem, repentinamente, aos 81 anos.

Nascida em Lisboa, em 1938, Maria Velho da Costa faria 82 anos no próximo dia 26 de junho.

Considerada uma das vozes renovadoras da literatura portuguesa desde a década de 1960, Maria Velho da Costa é autora de conto, teatro, mas sobretudo do romance tendo obras como "Maina Mendes" (1969), "Casas Pardas" (1977) e "Myra" (2008).

Maria Velho da Costa foi  ainda uma das coautoras, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, de "Novas Cartas Portuguesas" (1972), uma obra literária que denunciava a repressão e a censura do regime do Estado Novo, que exaltava a condição feminina e a liberdade de valores para as mulheres, e que valeu às três autoras um processo judicial, suspenso depois da revolução de 25 de Abril de 1974.

As três Marias

Em singela homenagem, deixo aqui o seu emblemático e bem conhecido poema Revolução e Mulheres.


Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de verem o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aí os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.

(In Cravo, Dom Quixote, 1976) 


terça-feira, 12 de maio de 2020

A caminho de Fátima

Na falta de quem nos descreva hoje os caminhos para Fátima vazios de peregrinos, ficam aqui uns fragmentos da excelente descrição saramaguiana. Vale a pena ler.

[Era o 12 de Maio de 1936. O Dr. Ricardo Reis resolve ir a Fátima «por curiosidade» - diz ele a Lídia. O certo é que ia ver se encontrava Marcenda.]

«Na estação de Fátima o comboio despejou-se. Houve empurrões de peregrinos a quem já dera no rosto o perfume do sagrado, clamores de famílias subitamente divididas, o largo fronteiro parecia um arraial militar em preparativos de combate. A maior parte destas pessoas farão a pé a caminhada de vinte quilómetros até à Cova de Iria, outras correm para as bichas das camionetas de carreira, são as de perna trôpega e fôlego curto, que neste esforço acabam de estafar-se. O céu está limpo, o sol está forte e quente. Ricardo Reis foi à procura de um lugar onde pudesse almoçar. Não faltavam ambulantes a vender regueifas, queijadas, cavacas das Caldas, figos secos, bilhas de água, frutas da época, e colares de pinhões, e amendoins, e tremoços, mas de restaurantes nem um que merecesse tal nome, casas de pasto poucas e a deitar por fora, tabernas onde nem entrar se pode, precisará de muita paciência antes que alcance garfo, faca e prato cheio. (…)´

Uma camioneta buzinava roucamente a chamar para os últimos lugares, Ricardo Reis deu uma corrida, conseguiu atingir o assento, alçando a perna por cima dos cestos e dos atados de esteiras e mantas, excessivo esforço para quem está em processo de digestão e afracado do calor. Sacolejando muito, a camioneta arrancou, levantando nuvens de poeira da castigada estrada de macadame. O motorista buzinava sem descanso para afastar os grupos de peregrinos para as bermas, fazia molinetes com o volante para evitar as covas da estrada, e de três em três minutos, cuspia fragosamente pela janela aberta. O caminho era um formigueiro de gente, uma longa coluna de pedestres mas também carroças e carros de bois, cada um com seu andamento, algumas vezes passava roncando um automóvel de luxo com chauffeur fardado. (…)

A maior parte desta gente vai descalça, algumas levam guarda-chuvas abertos para se defenderem do sol, são pessoas delicadas da cabeça, que também as há no povo, sujeitas a esvaimentos e delíquios. (…)  as mulheres transportam à cabeça cestos de comida, uma que outra dá de mamar ao filho enquanto vai caminhando. (…) com o calor, os rostos ficam negros, mas as mulheres não tiram os lenços da cabeça, nem os homens despem as jaquetas, os casacões de pano grosso, não se desafogam as blusas, não se desapertam os colarinhos, este povo ainda tem na memória inconsciente os costumes do deserto, continua a acreditar que o que defende do frio defende do calor, por isso se cobre todo como se se escondesse.

Este é o lugar. A camioneta para, o escape dá os últimos estoiros, ferve o radiador como um caldeirão no inferno, enquanto os passageiros descem. (…) Ricardo Reis junta-se ao fluxo dos peregrinos. (…)

É um mar de gente. Ao redor da grande esplanada côncava vêem-se centenas de toldos de lona, debaixo deles acampam milhares de pessoas, há panelas ao lume, cães a guardar os haveres, crianças que choram, moscas que tudo aproveitam. Ricardo Reis circula por entre os toldos, fascinado por este pátio dos milagres que no tamanho parece uma cidade, isto é, um acampamento de ciganos, nem faltam as carroças e as mulas, e os burros cobertos de mataduras para consolo dos moscardos. (…)

(José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1985)








quarta-feira, 24 de julho de 2019

Pedaço de boa literatura II


O trecho é retirado de um dos contos da coletânea «O Amor em Lobito Bay» de Lídia Jorge, publicada pela D. Quixote, em abril de 2016.

O conto chama-se «Imitação do Êxodo» e começa assim:

«Devemos levar as crianças ao encontro da Natureza, de outra forma elas ficam entaipadas entre casas e cercas, e julgarão que o mundo é finito. Pobres delas, e pobres das mulheres e dos homens que já vivem por antecipação no interior das suas recentes vidas, se não souberem desde cedo que a Humanidade não se conta por números, que a Terra faz parte do Cosmos, que o amor é um texto sem limites.

Pobres delas se não souberem que algumas das estrelas que vemos no céu já desapareceram na noite dos tempos, mas a sua luz ainda brilha no firmamento, e assim, sabendo-o, se descubram pequenas. Pobres delas, também, se não compreenderem que a efémera, a frágil prima da libélula, só vive durante um dia, e logo morre, e é bom que o entendam para que se sintam grandes. Sim, devemos coloca-las tanto diante das realidades limitadas quanto das paisagens livres, para que se sintam grandes. Sim, devemos coloca-las tanto diante das realidades limitadas quanto das paisagens livres, para que se apercebam, desde cedo, que a vida dos homens é uma agulha oscilante entre extremos. Só assim, colocando as crianças entre os grandes espaços e os seres pequenos, elas saberão dizer quem são, quando lhes couber a si mesmas construírem o futuro do mundo.»

Mas desengane-se o leitor se espera que esta seja a introdução para uma daquelas histórias lamechentas em que as maravilhosas criancinhas transfiguram a inocência dos anjos…

Até porque, a contracapa do livro diz sobre estes contos que “parecem chegar até nós com a finalidade de inquietar porque subvertem uma ordem” ...



(Pintura da minha amiga Paula Pereira)


quinta-feira, 18 de julho de 2019

Pedaço de boa literatura!

Acabei de ler um excelente livro de uma autora portuguesa. E, como de costume, quando chego à última página de um bom romance, volto ás primeiras páginas para relembrar como começou a narrativa. 

Esta começou assim:

«O rio Douro não teve cantores. Teve-os os Mondego e o Tejo também. Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as suas margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada. Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas e não ardentes.»








(imagens retiradas do Google)

Não sou nada destas coisas, mas serão capazes de descobrir quem escreveu este belo trecho?

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Lobo Antunes na Pléiade

Fiquei feliz quando, esta manhã, ouvi a notícia de que António Lobo Antunes – o nosso melhor escritor vivo (digo eu) – vai ter a sua obra editada pela Biblioteca Pléiade incluída na coleção que desde 1931 reúne a obra de uma selecionada lista de grandes autores mundiais.

De referir que o único autor português que até hoje teve a sua obra publicada por aquela Biblioteca de referência foi o poeta Fernando Pessoa, em 2001.

O escritor afirma que este “é o maior reconhecimento que algum escritor pode ter". A escolha da Pléiade é dedicada pelo escritor "aos meus amigos, aos meus leitores e ao meu irmão José Cardoso Pires, que esteja onde estiver estará muito feliz". (daqui)




Parabéns ao escolhido pelo seu talento, pela sua entrega, pelo seu valor!

E para falar de Lobo Antunes, chamo aqui o poeta Manuel Alegre que escreveu assim:

«António Lobo Antunes é um dos que sabe, como o poeta René Char, que certas guerras não acabam nunca. Devemos-lhe as páginas que sobre ela escreveu. Mas devemos-lhe sobretudo a revolução literária em que ele trouxe para a escrita a continuação, as consequências, o rasto e o rosto dessa guerra cá dentro. Está nas docas, nos contentores. E nas personagens que trazem dos arrabaldes para o centro uma fala nova. cada uma delas é à sua maneira o regresso das caravelas. Não só os que partiram, mas os que nunca mais terão oportunidade de o fazer.

Do Esplendor de Portugal ao Manual dos Inquisidores ou ao Sôbolos Rios Que Vão às vezes eu não sei se é o António que escreve ou um coro que fala por ele naquela estranha forma de partitura em que se vão transformando os seus romances. Como uma sinfonia de muitas vozes. Dizem alguns que não há história. São os que não percebem que pela pena do António todas as vozes estão a contar a nossa História, ainda que por vezes pareça uma história dos subúrbios que são afinal os arredores da História. Sinais, ecos, rastos de um império e de uma guerra que acabou e não acaba. Se repararmos bem, nós estamos nessas frases, somos essa paródia, falamos nessas falas. E somos esse texto.»

Manuel Alegre, in “Uma outra memória”, 2016



quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Aquilino Ribeiro (1885-1963)

E porque passam hoje, 13 de setembro, 133 anos sobre o nascimento do grande autor de O Malhadinhas, deixo aqui o excerto de um texto de Baptista-Bastos sobre o grande Homem que foi Aquilino.



«Para Aquilino Ribeiro, a questão essencial do homem sempre foi a questão da liberdade. E a relação do grande escritor com Portugal teve em constante cuidado a ausência dessa dimensão e a exigência de um compromisso moral em combater essa ausência. E, também, na defesa da razão, na crença no progresso e no poder da palavra. A obra vasta, poderosa e singular do autor de A Casa grande de Romarigães constitui o mais fascinante quadro poliédrico da realidade portuguesa. Na História, nas fontes medievais, nas ficções, nos ensaios, nas polémicas ele procurou uma espécie de «modernidade» sem deslocação temporal que identificasse a passagem do catecismo religioso para as diversas outras formas de autoritarismo concebido como a mais atroz forma de atraso.

É um momento sem par na cultura portuguesa, em que a ética do empenhamento se associa à estética funcional do trabalho literário. A vastíssima galeria d personagens aquilinianas é uma avaliação do que somos e do que fomos. E o que impõe a distinção desta obra a todas as outras, suas contemporâneas ou precedentes, é a poderosa persuasão de cada um seguir a sua consciência e de não desistir de conquistar a sua própria liberdade. (…)

O grande autor desta biografia-crítica [O Galante Século XVIII – Textos do Cavaleiro de Oliveira] passou a vida a correr riscos, a afrontar os poderes, a denunciar a mentira, a fustigar a hipocrisia. Desprezava os escreventes de vários matizes que desonravam a Imprensa e a literatura. Quando foi imperioso, colocou de lado a pena e empunhou o trabuco. (…) As relações de domínio tão bem expressas por Aquilino, podem ajudar-nos a refletir acerca da natureza do poder e da tendência do poder (qualquer que ele seja) para o autoritarismo. É preciso, pois, não temer o tirano. É preciso protestar contra a servidão. É preciso resistir: resistir é uma forma superior de sobrevivência, e sobreviver é permanecer enfrentar as contínuas tentativas de degradação da condição humana.

Aquilino Ribeiro ensinou-nos a liberdade.»

Baptista-Bastos, Julho 2008

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Quando em Abril os doces aguaceiros caem...


The Canterbury Tales (Os Contos de Cantuária) de Geoffrey Chaucer, escritos em finais do século XIV, a partir de 1380, não são propriamente fáceis de ler, embora sejam de uma riqueza poética que toca o maravilhoso.

Em cada Abril rico em aguaceiros – como é o de este ano – vem-me sempre à memória o início do prólogo pela doce melodia que transporta: “When in April the sweet showers fall”… 

Hoje deixo-vos aqui a Introdução ao grande prólogo do Contos na língua original e numa tradução que retirei da extraordinária coletânea «Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro»

Espero que gostem.



When in April the sweet showers fall
That pierce March's drought to the root and all
And bathed every vein in liquor that has power
To generate therein and sire the flower;
When Zephyr also has with his sweet breath,
Filled again, in every holt and heath,
The tender shoots and leaves, and the young sun
His half-course in the sign of the Ram has run,
And many little birds make melody
That sleep through all the night with open eye
(So Nature pricks them on to ramp and rage)
Then folk do long to go on pilgrimage,
And palmers to go seeking out strange strands,
To distant shrines well known in distant lands.
And specially from every shire's end
Of England they to Canterbury went,
The holy blessed martyr there to seek
Who helped them when they lay so ill and weak. (…)

(Geoffrey Chaucer
Canterbury Tales
The Great Prologue – introduction)
Quando em Abril os doces aguaceiros caem
E até às raízes secas de Março penetram,
E todas as veias são banhadas por um licor
Tão poderoso que até produz a flor,
Quando também Zéfiro que docemente respira
Exala em cada arvoredo e urze uma brisa
Sobre os rebentos delicados, e o sol de tenra idade
Do signo de Carneiro já percorreu metade,
E as pequenas aves fazem concertos
Passando as noites de olhos abertos
(Assim a Natureza as incita e a tal compromete os seus corações)
Então as gentes anseiam por sair em peregrinações
E os romeiros por encontrar os lugares remotos
De santos distantes, que em muitas terras encontram devotos,
E especialmente dos confins de cada condado
Da Inglaterra, até à Cantuária têm chegado
Para procurarem o mártir e bem-aventurado santo, tão diligente
A prestar-lhes auxílio quando estiveram doentes.

(Tradução de Cecília Rego Pinheiro
Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro)









terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Morreu Natália Nunes



Sua filha escreveu hoje de manhã na sua página do facebook:

AOS AMIGOS: A MINHA MÃE MORREU HOJE

Sua filha é a escritora Cristina Carvalho. Natália Nunes foi a mulher do professor e cientista Rómulo de Carvalho, o poeta António Gedeão que nos deixou em fevereiro de 1997.

Natália Nunes (1921 – 2018) ela própria escritora – algo desconhecida e muito esquecida.  

«Ninguém conhece esta escritora, tradutora, ensaísta. Alguns conhecerão vagamente. É assim a vida.» - Escrevia sua filha, Cristina Carvalho, em 18 de novembro último, dia em que sua mãe fez 96 anos.



De forma muito sintética e desassombrada, mas muito completa, o escritor Eduardo Pitta escreveu hoje no  seu blog o que eu aqui transcrevo:

«Natália Nunes morreu hoje. Tinha 96 anos. Romancista, memorialista, dramaturga, ensaísta e tradutora, Natália Nunes estreou-se em 1952, com o livro de memórias Horas Vivas. Próxima do existencialismo, destacaria da sua vasta obra ficcional Autobiografia de uma Mulher Romântica (1955), Regresso ao Caos (1960), Assembleia de Mulheres (1965), O Caso de Zulmira L. (1967), A Nuvem (1970), Da Natureza das Coisas (1985), As Velhas Senhoras e Outros Contos (1992) e Vénus Turbulenta (1997). A peça de teatro Cabeça de Abóbora (1970) é uma farsa demolidora da burocracia dos Estados totalitários. Na área do ensaio, As Batalhas Que Nós Perdemos (1973) colige estudos sobre Augusto Abelaira, Cardoso Pires e Raul Brandão. Um extenso ensaio sobre Finisterra, de Carlos de Oliveira, foi publicado em 1997: A Ressurreição das Florestas. Num tempo em que o feminismo não era uma profissão, Natália Nunes antecipou-se ao seu tempo, defendendo com desassombro a real emancipação das mulheres. Não o fez em comícios: a Obra responde por si.

Depois de traduzir Dostoievski, Tolstoi, Simonov e Elsa Triolet, Natália Nunes conseguiu a proeza de, em pleno salazarismo, traduzir La Bâtarde, o livro maldito de Violette Leduc, que assim chegou de forma admirável à língua portuguesa. Em 1945 casou com o cientista, pedagogo e professor Rómulo de Carvalho, mais conhecido pelo pseudónimo de António Gedeão. Durante quarenta anos, Natália Nunes colaborou com regularidade nos títulos mais relevantes da imprensa. Foi conservadora da Torre do Tombo (1957-68) e fez parte da última direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores, extinta pelo Estado Novo em Maio de 1965. É mãe da escritora Cristina Carvalho.»




quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O Conquistador

Foi por acaso (sou grande entusiasta dos acasos) que me veio ter às mãos a recente edição do livro «O Conquistador» que o escritor Almeida Faria lançou em 1990.

Deste autor sabia quase apenas que escrevera «Rumor Branco» quando tinha ainda 19 anos (1962) que, quando saiu, fora uma enorme pedrada no charco da nossa literatura, imediatamente adotado por Vergílio Ferreira (o que não era fácil…)

Este pequeno romance – chamar-lhe-ia novela até! – tem o seu encanto e a sua magia. É um verdadeiro pícaro: sonhador, divertido, imaginoso. Trata-se das aventuras de um rapaz que nasce na zona do Cabo da Roca, no dia do mês em que o rei D. Sebastião nascera, quatro séculos exatos depois do nascimento do rei virgem. Também se vai chamar Sebastião, o pai e a mãe também se chamavam respetivamente João e Joana e também tem seis dedos num dos pés.  Só que… ao contrário de D. Sebastião, este é um libertino, doido por mulheres.

O encanto de que falo acima vem da história da novela, da forma como nos é contada e das singularidades de muitas das personagens que fazem a ação evoluir, nomeadamente a avó Catarina.
A magia vem do ambiente em que se passa, desde a chegada do protagonista até à sua última aparição – a Serra de Sintra em todo o seu feitiço. De facto, Sebastião nasce e vive toda a sua infância e adolescência na casa do Farol, conhece e percorre as praias da Adraga, da Ursa, das Maçãs, toda a costa e todas as veredas da serra como ninguém, acabando por se recolher na Peninha.

As descrições são sublimes e de uma imagética exata e poética que, de imediato, nos lançam no meio das neblinas de Sintra.

«Vindas do mar, [no dia do seu nascimento] lufadas de névoa avançavam em direção à serra, como um exército desordenado recuando em debandada. Este espetáculo criou nos presentes, e ignoro se em meu pai, a convicção de que não seria casual a coincidência de el-rei e eu termos vindo ao mundo a vinte de janeiro, dia do santo do mesmo nome. Quando cresci e percebi que algo se esperava de mim, preferi, por instinto, fingir que não era nada comigo. Só muito mais tarde comecei a interrogar-me, como agora, quando olho aqui de cima, da Peninha, este mar hoje coberto de tiras de neblina.» (…)

«A nevoaça veio de manhã esvoaçando rente ao mar e agarra-se agora às rochas da costa, à orla das praias e ao cimo da serra donde não se dispõe a largar. O céu limpo e as temperaturas altas, anunciadas pela rádio, devem referir-se a outro país. Aqui, neste isolamento, envolto nesta espécie de manto de bruma encharcado em água, é inverno cerrado, embora haja sol a meia dúzia de quilómetros. Sintra é assim: um microcosmo e um microclima. Mas a bruma não me incomoda nada, condiz com a minha clausura e o meu cansaço.»

Foram descrições como estas que me devolveram a imagem das húmidas brumas que se esvaíam pelas encostas da serra e encantaram os primórdios da minha vida.

E que eram assim…
















(fotografias da página do facebook de Emília Reis)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Estilo Polémica

Sabemos o quanto nos agrada uma boa polémica. Para tomarmos partido, para teimarmos defendendo o nosso ponto de vista, para nos irritarmos com o parceiro, etc. etc.

A polémica que hoje aqui trago é uma polemicazinha, até porque não deve ser conhecida do público em geral. Por isso lhe chamei «estilo polémica»; se fosse a malta nova diria «tipo polémica». Enfim.

Então houve um concurso de literatura que decorreu no Brasil que foi o «Prémio Oceanos» (antigo Prémio Telecom de Literatura de Língua Portuguesa) de que tive notícia em meados de outubro num tímido retangulozinho do jornal que informava que, da lista de 51 semifinalistas de autores, tinham sido escolhidos dez finalistas dos quais quatro eram portugueses, a saber: Ana Margarida de Carvalho, Ana Teresa Pereira, Hélder Moura Pereira e Maria Teresa Horta. Apesar do meu encantamento pela poeta Maria Teresa Horta e a sua obra de arte «As Luzes de Leonor», comecei imediatamente a “torcer” pela Ana Margarida de Carvalho de quem li os dois romances verdadeiramente alucinantes no passado verão. Confesso que dos seis finalistas brasileiros nada sei, “desculpe ignorância de macaco” – estou citando Jô Soares no seu extraordinário programa «Planeta dos Homens» dos incríveis anos 70/80.

Na semana passada li que a escritora Maria Teresa Horta repudiava o 4º lugar ex-aequo que lhe tinha sido atribuído juntamente com o escritor Bernardo Carvalho, bem como o respetivo prémio pecuniário (cerca de quatro mil euros). Numa carta endereçada ao júri, Maria Teresa Horta afirma: "Faço-o por respeito pela Literatura, por respeito pelas minhas leitoras e os meus leitores, e sobretudo pelo respeito que devo a mim própria e à minha já longa obra (…). Assim sendo, caros senhores, sois livres de dar a aplicação que vos aprouver aos 15 mil reais que me caberiam, não fosse esta inultrapassável questão que se me coloca e dá pelo nome de dignidade".

Entretanto, na sua página do facebook, a prestigiada crítica de literatura, a professora doutora Maria Alzira Seixo, no seu estilo frontal de sempre, escrevia que os dois portugueses que faziam parte do júri, o crítico literário António Guerreiro e a poetisa Ana Mafalda Leite, tinham sido alunos dela, fracos alunos, que estiveram quase para reprovar e que não entendia como pessoas dessas eram convidadas para integrarem júris de concursos literários.

Só depois li que a vencedora do prémio tinha sido Ana Teresa Pereira – de quem nunca ouvira falar – com o romance Karen. Fiquei também a saber que a autora premiada, nada e criada na Madeira, já não é uma jovem (nasceu em 1958) e publica desde 1989, sendo-lhe conhecidas cerca e duas dezenas de obras.

«Nos últimos dezoito anos, Ana Teresa Pereira construiu uma das obras mais coerentes e sólidas da ficção nacional. De facto, sem que quase déssemos por isso, os mais de vinte romances que publicou, oscilando entre os fairy tales, o fantástico, o policial e o western, não necessariamente por esta ordem, fizeram do seu nome uma referência incontornável.» Eduardo Pitta; Público.

Ignorância minha (outra vez…) Que diria de mim a Professora Maria Alzira Seixo? Não lhe passei pelas aulas lá em Letras porque ela estava mais dedicada às Românicas… 

De qualquer modo, sei que tenho de ler o tal romance Karen.


(Ana Teresa Pereira)


domingo, 10 de setembro de 2017

Que terá A Amiga Genial de tão genial?

A ler freneticamente «A Amiga Genial» da misteriosa autora italiana Elena Ferrante. Provavelmente muitos de vós passaram já por isso, já que a primeiro volume da tetralogia saiu em 2015 e teve muita publicidade. Também sei que tem sido um verdadeiro sucesso de vendas. Mas eu comecei a lê-lo há um mês e já vou a meio do 4º e último volume – eu que não sou uma leitora voraz.



Trata-se de um romance, romance e mais nada! Na verdadeira aceção da palavra, ou seja: «uma obra literária que apresenta narrativa em prosa, normalmente longa, com factos criados ou relacionados com personagens que vivem diferentes conflitos ou situações dramáticas, numa sequência de tempo relativamente ampla.»

Então o que é que «A Amiga Genial» tem de genial?

Será talvez pelo simples facto de se tratar de uma história extremamente bem contada em que o leitor está constantemente a ser convocado para novos acontecimentos, novas intrigas, novos conflitos que ora dão sentido à ação que está a ser descrita explicando-a, desenrodilhando-a, ora criam teias que nos atiram para outras situações aparentemente díspares daquela em que estamos enfronhados. Toda a ação parece desenrolar-se sobre rodas, sem sobressaltos aparentes, numa naturalidade da água a correr ou de movimento diário do planeta. Só que o leitor sente-se tão preso ao fluir da narrativa que não tem como se despegar desse enleio. E a coisa está tão bem urdida que, quando se chega à última palavra de cada volume, há não sei o quê que nos empurra insanamente para o volume seguinte, como se alguma frase tivesse ficado a meio.

A história é de uma simplicidade extrema: conta-nos a vida de duas raparigas nascidas num bairro muito pobre de Nápoles nos meados do século passado, que se conhecem desde sempre, vão para a mesma escola, tornam-se amigas e nunca mais conseguem separar-se, nem que seja mentalmente, até à velhice. A narradora é uma delas e pretende-se que a amiga genial seja a outra de quem ela fala. Mas, pelo menos aos meus olhos, essa genialidade parece passar constantemente de uma para a outra, até nos fazer crer que vivem ambas na mente uma da outra e que, por isso, são inseparáveis.

A genialidade da obra constata-se na cerrada urdidura da história; no perfil firmemente traçado de cada personagem (e são muitas); na descrição intensa e apaixonada embora com o desassombradamente que evita as lamechices da realidade brutal vivida no bairro, em Nápoles e no país em geral; nos comentários históricos, políticos, sociais, culturais de uma Itália que passava, em clima de grande violência e agitação, os tempos mais difíceis da sua história recente, os chamados Anos de Chumbo, que vão sendo entrelaçados com o decorrer da ação, ela sim, cheia de sobressaltos. Um desassossego, um imenso desassossego que nos prende, nos enleia, nos apanha os pensamentos e as emoções de forma indelével.


Muito bom. Recomenda-se vivamente.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Não se pode morar nos olhos de um gato


Leitura de início de férias. Que, diga-se de passagem, nunca fiz distinção nenhuma entre os livros de leitura de férias dos outros lidos em período de não férias.

Segundo romance da jovem autora Ana Margarida de Carvalho, publicado em 2016, depois de ter recebido o Grande Prémio de Romance e Novela da APE pelo seu primeiro romance «Que Importa a Fúria do Mar» em 2013.

Eduardo Pitta deixa no ar a questão sobre será este seu segundo romance a marcar o início da distropia na literatura portuguesa. Eu, simples leitora, não vou saber dizer.

Só sei que tão embrenhada andei na leitura deste livro que passou quase uma semana sobre a vinda para estes “mares do sul” e nem tenho ligado o computador… Tem mesmo sido espreguiçalhar na cadeira da piscina, ir ao banho para esticar bem as pernas e os braços e depois naufragar naquela imaginária praia intermitente nas costas do Brasil juntamente com aquele grupo de sobreviventes do barco tumbeiro clandestino: o capataz negreiro e o seu mísero criado, a fidalga brasileira e a sua frágil filha, o padre que teve as suas origens nas fragas na companhia das alcateias transmontanas, o jovem passageiro estudante, o escravo que deu à costa montado num cavalo mutilado e o bebé pretinho salvo do porão do barco negreiro.

Não vou contar mais nada. Se tiver conseguido despertar alguma curiosidade em algum de vós, deixo abaixo alguns links que poderão contar algo mais.

Só vou dizer que se trata de verdadeira literatura. Desde Saramago, Lobo Antunes, Vergílio Ferreira não lia nada tão surpreendente, tão profundamente inquietante, e tão filosoficamente vivido – por esta ordem respetivamente.




E porque o título do romance retoma um verso de O´Neill, aqui fica o respetivo poema.

Poema do Desamor

Desmama-te desanca-te desbunda-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Beija embainha grunhe geme
Não se pode morar nos olhos de um gato

Serve-te serve sorve lambe trinca
Não se pode morar nos olhos de um gato

Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arfa arqueja moleja aleija
Não se pode morar nos olhos de um gato

Ferra marca dispara enodoa
Não se pode morar nos olhos de um gato

Faz festa protesta desembesta
Não se pode morar nos olhos de um gato

Arranha arrepanha apanha espanca
Não se pode morar nos olhos de um gato

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Prémio Camões




Só que ainda não tive tempo de falar aqui do Prémio Camões deste ano (29ª edição) atribuído, no passado dia 8, ao poeta Manuel Alegre. E muito justamente.

Ao lado de poetas e escritores portugueses de alto nível como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Saramago, Eduardo Lourenço, Agustina, Lobo Antunes, Sophia e de muitos outros grandes cultores da Língua Portuguesa do Brasil, de Moçambique, de Cabo-Verde, Manuel Alegre entra para esta galeria aos 81 anos de idade e mais de 50 de escrita publicada.

O que mais me encanta nesta atribuição é o cruzamento constante da sua poesia – tantas vezes épica – com a do nosso poeta maior. Como Camões, também Alegre foi um poeta exilado.


Lusíada Exilado

(…)
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.

Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.

Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.

Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.

(…)
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)

Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.

Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.

Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão.)
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.

Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.

In 30 Anos de Poesia, 1996


E sobre Luís de Camões, escreveu assim:

Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.

Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.

Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.

Só ele Príncipe.

(…)

De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.

E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.

(…)
E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.

Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.

In  “A Praça da Canção” , 1967

"Estendida nesta linha de influências e modelos, a poesia de Manuel Alegre faz ressurgir a voz de Camões numa espécie de canto geral da condição lusíada. Épica naquilo que tem de exaltar, lírica na voz sofrida daquele que busca e não encontra o sentido dessa condição; eis uma poesia que pesquisa a raiz ancestral do ser, a origem da grandeza ética." (João de Melo, 1989)