Conforme anunciei, ontem, aqui deixo um excerto de um texto de Maria Velho da Costa, com a sua linguagem vivíssima sobre o cerco da Assembleia Constituinte no tempo de PREC.
"(...) E Sophia era deputada à Assembleia da República, o que a maçava de morte. Nenhuma de nós suffered fools gladly, e era o que havia mais, fools, histeria de massas e descontentamento. Ruía a Poesia está na rua do seu cartaz com Maria Helena Vieira da Silva. A terra estava em cena de ódio e de fogo posto. (...)
Pois um dia, nas calendas de Novembro, a Assembleia da República foi cercada por uma horda exasperada. Desci para ver, eram poucos metros. Na rua, no hemiciclo formado cá fora , uma multidão, poucos amigos, poucos camaradas. Um camião cisterna enviado pelo COPCON de Otelo Saraiva de Carvalho distribuía sopa quente a idosos em hipotermia. Nesse tempo eu não tinha a possante cadela que depois tive. Nem me teria servido de nada, a não ser de irrisão e malquerença do povo desunido. Mas tinha o meu cartão de Imprensa das crónicas do jornal. E estavam lá dentro fechados a Sophia e o Manuel Gusmão. Bati à porta, entrei, fiquei na soleira dos Passos Perdidos, o povo ululando de fascistas para baixo. A Sophia e o Manuel apareceram juntos, estranhamente risonhos.
Tinham comido? Tinham sim.
A Sophia partilhara com o Manuel um pão com chouriço da sala dos comunistas. E ria aquele riso de um só travo.
A Sophia partilhara com o Manuel um pão com chouriço da sala dos comunistas. E ria aquele riso de um só travo.
- Não deixe entrar o Francisco, Maria, ainda se põe em cima de qualquer coisa, um daqueles leões de pedra feiíssimos, a fazer mais aranzel.
E lá foram, ridentes, quase de braço dado, a imensa estatura.
Poetas é uma gente muito perigosa. E o Sagitário e o Escorpião não se domam ao medo nem à bruteza facilmente.
A noite caía e fazia muito frio. Felizmente não chovia. Pela calçada acima ouvia os brados esmorecidos, uma maré em refluxo. Há muitas horas que não dormia, mas pela madrugada não pude deixar de voltar. Um a um, em cadeia, os deputados eram deixados sair. Os apupos da multidão reacordada do relento, sem arredar pé, recrudesciam. Só era poupado quem erguia o punho direito, e mesmo assim.
Então vi sair Sophia. Estava de preto, ou assim a lembro. Avançou no seu tiquetear ligeiro, sem olhar, como quem vai atrasada a uma tarefa, a uma costureira, à Baixa. Como sempre. Não se lhe viam gravidade no semblante, nem susto. Apenas os sinais de um contratempo, uma maçada, nem sequer o puf, puf do nervosismo, Nem altivez. Saía dali, de um sequestro de horas, como quem tem mais que fazer.
Eu estava perto, mas não me viu, a compactez dos corpos a injuriar era impossível de atravessar.
- Fascista, fascista!
E então aconteceu uma coisa que me pareceu miraculosa de tão arcaica, uma coisa do fundo dos tempos, quando os anfiteatros pungiam de dor, horror e pasmo diante das máscaras terríveis que apresentava o rosto mais que o rosto.
A Sophia parou. Os que iam adiante continuaram, os que a seguiam juntaram-se a uns metros. Também devem ter sentido a aura de antiquíssimo pundonor das palavras naquela mente e naquele coração. As palavras naquele corpo frágil ocupado por uma herança comum e inatingível. As palavras viscerais de uma cultura denegada, mas imorredoiras.
Podiam tê-la apedrejado.
Sophia parou e virou-se para a turbamulta. Nem indignação, nem cólera. E disse uma só palavra e teve um só gesto, parado. Cruzou as duas mãos sobre o peito, como quem leva as sagradas espécies a um moribundo, e disse
- Fascista? Eu?
Os que estavam mais perto recuaram e calaram. Formou-se, ondulante em reverbero, um semicírculo de silêncio e respeito.
Sophia seguiu. O mesmo passo, a mesma ligeireza sem pressa. Parecia um pouco mais alta. (...)”
A inatingível Sophia!
ResponderEliminarGostei de ler e recordar aquelas manifestações e contra-manifestações.
ResponderEliminarTempos e lutas que foram de todos nós.
Uma escrita muito bela e limpa como gosto de ler.
Vou seguir este espaço.
Obrigada, Luís, pela visita e por ter gostado do que leu.
ResponderEliminar