sábado, 17 de janeiro de 2015

A Leiria de Miguel Torga

Fiquei a saber pelo amigo as-nunes que passam hoje 20 anos sobre a morte de Miguel Torga. E pensei que poderia fazer lembrar que o poeta/médico viveu em Leiria, onde teve consultório, entre 1939 e 1943.

Diz Carlos Alberto Silva, no Guia da Cidade «A Leiria de Miguel Torga» (2010) que “nesta terra, que o autor considerou uma encruzilhada do destino», viveu Torga um dos períodos mais intensos da sua vida: aqui iniciou a prática da especialidade de «otorrino», fez amigos para a vida, foi preso por motivos políticos, decidiu casar, viveu, conviveu e escreveu.”




O consultório (que abriu a 6 de Julho de 1939)



As instalações [do consultório] servir-lhe-ão, pelo menos provisoriamente, de local de trabalho e de residência, até casar, no ano seguinte. Sobre o seu dia-a-dia, diz o escritor, em O Quinto Dia da Criação do Mundo:

«E ali passava parte das manhãs e das tardes, sonolento, a atender os raros doentes que a notícia da minha chegada num jornal da terra ia trazendo, a ler e a escrever nos longos intervalos das consultas, enquanto os quartos caíam monotonamente da torre da Sé e a senhora Glória [funcionária do consultório] fazia renda ou ponteava na sala de espera.»

Nas proximidades do consultório, logo a seguir ao Largo Marechal Gomes da Costa, em direcção ao rio, ficava a antiga Rua de Santana, onde gravitavam os amigos mais íntimos que em Leiria arranjou, que o haviam de apoiar nos seus momentos mais difíceis, o Dr. Alfredo Baptista, a D. Gena e o marido, António Moreira. O primeiro era o advogado Alfredo Batista, que tinha escritório perto do arco que rematava a rua. A D. Gena morava com o marido, António Moreira, por ali perto.



Nas traseiras da Sé, existia outro dos espaços de que Torga era assíduo frequentador: a Biblioteca Erudita e Arquivo Distrital, sobre a qual Torga diz em A Criação do Mundo.

«Foi o que me valeu, encontrar aqui uma biblioteca assim. Nunca supus. Boa de verdade! O fundo de clássicos portugueses, então, é notável. Excepcional, mesmo. E de literatura francesa moderna tem também muita coisa...- Sem falar na obra-prima da bibliotecária…
- Ah, seu malandro! Eu na minha inocência, e você com segundas intenções! [...] 
- Bonita a valer, o raio da rapariga! Mas fico-me pela admiração...»


Torga com a mulher, Andrée Crabbé, na antiga Rua de Santana.


A publicação de O Quarto Dia da Criação do Mundo, que saiu em Abril de 1939, haveria de trazer a Miguel Torga os maiores dissabores: a 30 de Novembro desse ano, a PSP deteve-o, sob orientação da PVDE e por ordem do Ministro do Interior. O médico foi conduzido para a esquadra, a caminho do castelo, interrogado e encarcerado, em regime de incomunicabilidade.





Casa onde viveu depois de casar, em 1940. (Local onde atualmente se ergue o Hotel Eurosol).





Poema que o seu amigo Dr Alfredo Baptista descreveu Miguel Torga.



(Informação e fotografias retiradas do Guia da Cidade «A Leiria de Miguel Torga» de Carlos Alberto Silva, Textiverso, Leiria, 2010)


18 comentários:

  1. Bom trabalho. Leiria, para que se veja, tem de lançar mão a figuras que por aqui passaram, como Eça. Torga personificou o homem austero e justo português, com raízes profundas na realidade rural que poderia hoje dar uma varridela aos pavões do poder.

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  2. Um momento de excelentes recordações.
    Parabéns pelo trabalho.
    Que nunca morram pelo esquecimento da nossa cidade tão ilustres escritores.

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  3. .
    ~ ~ Sem dúvida, uma honra para a cidade ter sido vivida e apreciada pelo brilhante pensador e exímio literato, portador dum caráter impoluto e deveras especial. ~ ~
    ~

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    1. Uma honra mesmo! E, apesar do seu ar sisudo e fechado, deu-se com os intelectuais da época que por aqui viviam encontrando-se com eles em tertúlias no atelier do artista desenhador/pintor Narciso Costa (certamente para conspirarem - também...)

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  4. Nas minhas recordações, sempre associei Miguel Torga às suas origens de Trás-os-Montes e a Coimbra. Fiquei satisfeito por agora saber que viveu e teve consultório em Leiria, cidade capital do meu distrito. Curiosa a sua descrição: "deteve-o sob orientação da PVDE". Para os que não sabem,este foi o primeiro nome que Salazar deu à sinistra polícia; seguiu-se o outro,PIDE, Em 1969, com uma invenção de Marcelo Caetano, DGS. Três nomes, um só objetivo...
    Os meus cumprimentos, Graça,

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  5. Muito interessante. Fiquei a conhecer melhor o poeta e a cidade. Obrigada:-)

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  6. Adorei tudo, Graça. Sou torguista de coração. Li tudo dele e sobre ele. Há dias revi um programa sobre ele na RTP Memória e fiquei de alma lavada.
    Um beijo.

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    1. Uma prosa arrebatadora, uma poesia de hidromel...Lembro-me de, ter lido A Criação do Mundo de enfiada - uma maravilha!

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  7. De edifícios, tijolos, cimentos,
    largos, praças e arruamentos
    placas da história
    também se constrói a memória

    dela,
    prefiro-lhe a palavra
    essa
    é eterna

    (claro que é só para "pegar" consigo)

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    1. Não "pega" nada que não há maior apaixonada do que eu pela palavra! É de facto a maior realização humana!

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  8. Bonita homenagem ao grande dramaturgo, médico, poeta e escritor, que foi Miguel Torga.
    Tenho publicados muitos dos seus contos e poemas. Sabia que nasceu em S. Martinho de Anta e viveu em Coimbra, mas desconhecia que também aí viveu.
    Obrigada, por mais esta informação, Graça! Sobretudo, pelas fotos históricas e respectiva descrição!

    Beijinhos e bom resto de Domingo.

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  9. Que diferente era este Homem dos pavões que por aí se passeiam..
    M.A.A.

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  10. E daqui, do meu cantinho eu teria que lembrar o que ele escreveu sobre esta região:
    "O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria.(...) passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros.
    Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa!"

    Muito interessante saber da vida de Torga, em Leiria. :)

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