domingo, 14 de setembro de 2014

António Mega Ferreira


Fui ouvi-lo ontem ao fim da tarde à Biblioteca Municipal aonde se deslocou para fazer a apresentação do seu último livro «Viagem pela Literatura Europeia» que decorre de uma série de palestras que El Corte Inglês o convidou a fazer no passado inverno. (Já vai fazer a terceira série de palestras…)

Essa viagem é feita a partir de dez (porque, explicou, tudo para ele tem a ver com o número dez) obras de referência da literatura europeia e por si escolhidas. A primeira jornada e a da Odisseia, aurora da civilização e a última é a do Livro do Desassossego, o grande poema de Lisboa, no seu entender, passando pelo D. Quixote, o Werther de Goethe, as Ligações Perigosas de Laclos, século XVIII, Ilusões Perdidas de Balzac, Guerra e Paz, naturalmente, A Ilha do Tesouro, Em busca do tempo perdido, Proust, claro, e A Montanha Mágica, a maravilha de Thomas Mann.

A escolha recaiu sobre estas narrativas – Mega Ferreira escolheu a narrativa, deixando de fora a poesia e o teatro – mas poderia ter recaído sobre outras. Lamentou não ter incluído A Divina Comédia, mas não teve condições para a reler atentamente e estudar profundamente para isso, como lamentou não ter incluído Shakespeare – The Tempest – mas, disse, para estudar Shakespeare precisa-se de anos de estudo…

Conhecia, como conhecemos muitos de nós, o seu mirabolante percurso de vida com todas as coisas que foi e que já fez. Conhecia alguns dos seus livros de ensaios, romances, antologias, estudo sobre Pessoa, o seu gosto pelo erotismo na literatura, etc. mas nunca o tinha ouvido ao vivo. Um espanto!

De facto, o meu conhecimento de Mega Ferreira remonta ao nosso tempo de Faculdade. Posso dizer, como aliás lhe disse ontem, que éramos companheiros de comboio. Apanhávamos o comboio das 7.04 para Lisboa para podermos estar na Faculdade, eu em Letras e ele em Direito, a tempo das aulas das nove. Eu apanhava o comboio em Sintra e sentava-me sempre no compartimento do fundo para poder ler e estudar sossegada e ele entrava no Algueirão e sentava-se na minha frente, sempre muito sério, muito contido – como éramos quase todos naquele tempo dos idos de 60 – e lia e estudava também. Nunca trocámos uma palavra, mas eu conhecia alguns segredos do seu coração… Foi também mais por isso que eu teimei em ir vê-lo ontem.

Mas o homem – como eu, aliás, com as devidas distâncias, naturalmente – nada tem a ver com o que era nesses tempos de juventude. Falou todo o tempo com uma jovialidade, um à vontade e um conhecimento das coisas da literatura que foi de uma pessoa sair de queixo caído! É uma daquelas pessoas que parece que leu os livros todos e conhece alguns de que quase ninguém ouviu falar – passe o exagero… e depois com uma facilidade comunicativa extraordinária da forma mais simples que é a grande qualidade dos grandes sabedores.

Das muitas coisas que disse e que gostei de ouvir, vou deixar aqui apenas algumas frases soltas: 

«Sou um humanista: gosto da Natureza descrita pelo poeta [e aqui, naturalmente, referiu Alberto Caeiro] pelo romancista, pelo pintor, pelo músico…»

«Desejo e prazer é a minha relação com a leitura

«A leitura literária é uma leitura de fôlego e não de corrida.»

«Não vale a pena obrigar os miúdos a ler – isso pode ter o efeito contrário. Se eles tiverem de gostar de ler, a seu tempo isso acontecerá. Ler, como muitas outras coisas na vida, é uma inclinação. Não vale a pena forçar

«Fiz o liceu no Pedro Nunes, um liceu de referência. Quando entrei, em 1959, havia em Portugal 14 mil alunos inscritos nos liceus. Em 40 anos conseguimos chegar aos 170 mil! Claro que o nível teve de baixar. Mas se me perguntarem se eu prefiro o tempo em que andei no liceu ou o actual, claro que prefiro o actual!»

E muitas, muitas outras coisas deliciosas que pode ser que transcreva para aqui noutra oportunidade….


10 comentários:

  1. Gracinhamiga

    O António foi meu camarada (de trabalho) no "Jornal Novo"; ficámos amigos, o que não é difícil com ele e com...eu.

    Uma vez a Raquel e eu fomos jantar em sua casa onde estava a Io Apoloni. Foi um anfitrião magnífico. Falámos de muitas coisas e pessoas, a começar, naturalmente pelo Artur Portela que tinha sido o nosso director.

    Ouvi-lo, em tom ameno e descontraído é um privilégio. Muitos parabéns por lá teres estado.

    Qjs

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  2. Quando vi há umas semanas o anúncio desta apresentação disse para comigo: não falho!
    Falhei, não anotei e esqueci-me por completo.
    Uma boa semana, Graça.

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  3. Um Senhor, Graça.
    E está tudo dito.
    Beijinhos e votos de boa semana

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  4. é um sabedor o Mega, pelo que leu e pelo que viveu.

    e claro um óptimo comunicador.

    abraço Graça

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  5. Foi uma óptima iniciativa muito bem aproveitada e descrita por ti!
    Vá lá, não te queixes de Leiria! :)
    Livros de referência...li alguns deles!

    Abraço

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  6. Fez uma boa descrição do que viu e ouviu.Só lhe digo , quanto adorava ter como amigos pessoas com a cultura de Mega Ferreira...
    M.A.A.

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  7. Um grande Senhor.
    Que bom teres estado presente.
    Li "A Expressão dos Afetos"

    Beijinho e uma flor

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  8. Seria bom se também se realizassem essas palestras no El Corte Inglês de Vila Nova de Gaia.

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  9. Uma sessão enriquecedora. Sem dúvida.

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