terça-feira, 6 de maio de 2014

Os Memoráveis



É sabido que me agrada muito ler Lídia Jorge. Desde que tomei conhecimento do seu nome pela «Conta Corrente» do admirável Vergílio Ferreira. Li vários dos seus romances todos atinentes a temas marcantes da vida e da história do país. Todos muito bons. Todos muito bem arquitetados, todos muito bem escritos. Não posso dizer qual o que achei melhor no seu todo, mas aquele de que mais gostei foi «O Vale da Paixão» que pinta a saga de uma família no Algarve rural.

Nestas últimas semanas detive-me a ler «Os Memoráveis» e adorei! É, de longe, o mais conseguido dos seus romances – talvez depois de «A Costa dos Murmúrios», mas mais maduro que este em termos da arquitetura do romance e, mais importante ainda (pelo menos na minha ótica) na maestria da palavra.

Não adianta deixar aqui apontamento sobre a trama do romance porque isso encontra-se facilmente na mais básica pesquisa na net ou lendo a contracapa do livro. Além de que é sabido que se trata de uma revisitação ao que aconteceu na noite de 24 para 25 de Abril de 74 contada por uns tantos dos responsáveis pelo golpe e por dois poeta, passados trinta anos. E aí é que está a ficção, a originalidade e a perfeição de um romance de qualidade.

Dois aspectos de grande interesse e novidade no plano da narrativa – na minha simples opinião: primeiro, as alcunhas escolhidas para cada um dos «memoráveis» que a narradora decide entrevistar para dar o seu testemunho sobre as circunstâncias do golpe e que, tirando duas ou três exceções, dificilmente serão identificadas pelo leitor; e depois as máscaras de anti-herói (com as suas decepções, as suas fragilidades, os seus dilemas) com que cada um dos «memoráveis» nos é apresentado trinta anos depois daquele feito heróico por eles perpetrado naquela noite de Abril de 74.

No plano da abordagem à realidade, de notar a quase colagem à sequência dos acontecimentos hora a hora que levaram à realização cabal do golpe, embora em modalidade de puzzle que se ia completando à medida que a narrativa avança e, por outro lado, a impressão digital da autora no desenvolvimento da entrevista à viúva de Charlie 8 e a forma quase violenta e sarcástica como é tratado o facto de lhe ter sido negada uma pensão por serviços distintos enquanto uma idêntica foi atribuída, nesse mesmo prazo, a dois pides. Outro aspeto bem repisado ao longo da obra é a noção de que, quer na preparação, quer na operacionalização do golpe, nenhum dos intervenientes queria ser reconhecido acima dos outros, que «todos somos capitães» - dizia Charlie 8 e que cada um mais não era do que um entre os cinco mil que estiveram envolvidos no «milagre», no dizer do “Oficial de Bronze”- «porque havia cinco mil efectivos dispersos no terreno, mas unidos pela amizade».

A trama, que entrecruza o plano histórico com o plano familiar da narradora, está por de mais bem urdida mas há episódios tão fortes, tão intensos, tão complexos apesar de nos serem apresentados simplesmente, que senti, por vezes necessidade de voltar atrás e reler alguns trechos para sentir o pulsar dos acontecimentos e ligar o puzzle da teia.

Muito, muito mais haveria a dizer sobre esta obra tão emblemática mas escrita com o coração, mas não quero nem devo alongar-me. E, apenas para deixar a marca de esperança que este livro pretende deixar no ar e para os vindouros, transcrevo o poema “Um Dia” que o poeta Francisco Pontais – que, curiosamente, tem uma perspetiva bem crítica do que realmente foi aquele dia de Abril – sobre o mesmo compôs:

«Um dia os rapazes serão louvados
Hão-de passar entre multidões floridas.
Levarão riso na boca e os braços levantados.

Um dia os rapazes hão-de ser punidos
Pelos males que hão-de vir dos quatros pontos cardeais.
Terão latrinas derramadas nos portais.

Um dia esses heróis serão esquecidos
Os seus nomes alinhados entre conchas e espinhas.
Hão-de constar de uns livros nunca lidos.

Mas um dia, esse dia será o dia do idílio.
Os rapazes ainda não desistiram de soltar os braços dos escravos.
E os escravos ainda não renegaram a cor dos cravos.

Ainda estamos no princípio desse dia.»


9 comentários:

  1. ~ Também aprecio muito ler a Lidia Jorge, mas ainda não tive o prazer de ler "Os Memoráveis".
    ~ É muito interessante e até tocante, a análise literária e emotiva que fazes da obra. Uma verdadeira entusiasta!
    ~ Com a crise, fecharam muitas livrarias na minha cidade e agora só as tenho, em condições, na cidade próxima,
    ~ a 20Km!

    ~ ~ Agradeço muito a tua dedicada partilha. ~ ~

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  2. Também sou fã de Lídia Jorge!
    No nosso próximo encontro leva-me esse livro, se ele estiver livre, porque é impossível comprar todos os que tenho na lista...dela tenho bastantes na estante!
    Quem diria que é de Boliqueime!

    Abraço

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  3. Só li " dia dos prodígios" que penso foi o seu primeiro livro. Ou porque nunca vi nenhum dos seus livros, quando fui comprar, ou porque nunca me ofereceram nenhum, não sei não se tem proporcionado.
    Um abraço

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  4. Grande escritora Algarvia, só não sabia que era de Boliqueime, que pena!... Aproveito para dizer que, livros dela, nunca vi nenhum dentro dos carrinhos no supermercado, em direção às caixas.

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  5. Logo, pelas 21:30, Lídia Jorge estará em Braga para uma apresentação de "Os Memoráveis", sessão que aguardo com ansiedade até porque a autora e a obra serão apresentadas por uma conceituada investigadora na área das Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho.
    Tudo indica, (este artigo também), que será um momento "memorável".

    Obrigada!

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  6. ainda não tive o gosto de ler "OS Memoráveis" da Lidia Jorge.

    a que não me furtarei depois da tua perspicaz análise literária.

    beijo

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  7. É verdade! De Boliqueime... Quem diria!

    (Também não podia ser tudo mau...)

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  8. Como sabe, também gostei muito do livro e sobre ele escrevi no On the rocks.

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  9. Lídia Jorge merece figurar entre os melhores. A crónica aqui deixada pela Graça espelha paixão; muito boa.
    Os verdadeiros heróis são postergados e esquecidos no tempo. Tal como os santos (ver a crónica de Anselmo Borges publicada no blogue devaneiosaoriente do Pedro Coimbra)os heróis são postos (impostos) na história pelo poder. Poder que raramente deixa de ser do dinheiro. O poema, de que gostei bastante, refere essa realidade.

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