Alguém teve a ideia de recordar
no facebook (abençoado facebook que é bem mais vivo e real que
os jornais!) a efeméride da morte de Salgueiro Maia (há 23 anos em 4 de Abril)
e aí lembrei-me do extraordinário capítulo XIV do excelente romance de Lídia Jorge «Os
Memoráveis» que trata exatamente da brilhante intervenção de Charlie 8 – nome de
combate de Salgueiro Maia – na epopeia do 25 de Abril.
Não fosse tão longo e tão
completo, aqui estaria eu a transcrevê-lo completamente. Mas como isso não
seria recomendável num espaço como é o de um blog, vou tentar limitar-me a passar para aqui parte da tentativa
de explicação para o facto de lhe não ter sido atribuída (pelo então
primeiro-ministro Cavaco Silva) uma pensão “por serviços excepcionais e
relevantes”.
«Quer dizer que o seu marido
morreu de desgosto?» (…)«De modo nenhum, toda a gente sabe que ele morreu de
doença prolongada.» (…) «Quer dizer que durante nove anos os militares não promoveram
o seu marido, que o desterraram para lugares e ilhas onde nada tinha que fazer,
que o nomearam carcereiro dos serviços prisionais, e ele, aquele que foi o
rosto mais visível de todos quantos deram a liberdade ao pais, não morreu de
desgosto?» Perguntou Margarida à viúva e foi lembrando episódios de que tinha
tido conhecimento nos dias anteriores e que muito a tinham chocado. (…) A
anémona quis, então, saber se o facto de, no mesmo dia em que tinham sido
atribuídas pensões por serviços distintos a antigos membros da polícia
política, e ao marido ter-lhe sido negada, se não era uma prova de que não
havia sido obra do acaso. (…) A viúva tinha o micro na mão e assim o manteve.
Olhou para a câmara. Disse - «Também não foi assim, nunca chegaram a negar a
pensão ao meu marido. E é preciso dizer que, pela lei, os pides poderiam ser
contemplados (…) Havia um enquadramento legal para a bravura dos pides, não
havia artigo nenhum no qual coubesse a bravura do meu marido. (…)
«Ficámos a saber que tudo tinha
começado quando o juiz do Tribunal Militar devolvera o requerimento feito por
Charlie com uma grande cruz preta, sob o pretexto de que os seus actos de
abnegação e coragem cívica não cabiam no artigo quatrocentos e quatro, barra,
oitenta e dois, mas os actos dos torcionários ocorridos antes, segundo a lei,
cabiam. (…) tendo sido chamado a intervir, o conselheiro tinha dito que se
acaso fosse adiada, indefinidamente, a obtenção do parecer, não haveria como
ter objecção. (…) Que se dissesse, pois, que a decisão seria breve, e seria
nunca, porque seria amanhã. O conselheiro era um crente. Ora pro nobis. (…) «Pode Vossa Excelência decidir, descansado, o provimento
dos primeiros, pois em relação a esses a lei não oferece dúvida alguma. Cumpriram
o seu dever para com o Império, quando a nação era um Império. Já o rapaz dos
tanques e das chaimites, não pode Vossa Excelência conceder a sua assinatura,
uma vez que não pode confundir este com os primeiros. (…) É que os primeiros
defenderam o Império, enquanto o rapaz desfez o Império. (…) Deste modo, houve
o provimento dos pides e não o do rapaz dos tanques, autor daquelas
conversações prolongadas no Largo do Carmo. Assim, Charlie 8 teve o seu
requerimento adiado. O seu papel foi colocado no fundo de todos os papéis a que
ia sendo colocada a data sine die.»
(Jorge, Lídia. «Os Memoráveis», D. Quixote, Lisboa, 2014 – pp 247 – 255)
Haja quem nos reavive as memórias adormecidas de algumas figuras que tiveram um papel preponderante na Revolução do 25 de Abril!
ResponderEliminarIndependentemente , do rumo que o país enveredou, é de louvar que nos tragas a injustiça feita ao Capitão Salgueiro Maia.
Deduzo que esse excerto que nos trazes seja de uma entrevista à viúva do militar, transcrito do livro "Os Memoráveis" de Lídia Jorge.
Gostei de ler e sabes que desconhecia esse pseudónimo de guerra Charlie 8 ?
Sempre a aprender!
Beijinhos e votos de noite tranquila!
Janita
Isso mesmo, Janita! Uma entrevista "romanceada" à viúva de Charlie feita em «Os Memoráveis». Uma maravilha de romance!
EliminarSeu texto de hoje, para mim, um aprendizado! Obrigada!
ResponderEliminarAbraço.
Fico feliz por isso, Célia! Lídia Jorge é uma das nossas melhores escritoras da atualidade.
EliminarBeijinho.
Quando se tenta negar a História o resultado é sempre desastroso, Graça.
ResponderEliminarBeijinhos
Assim é, Pedro!!
EliminarMuito agradeço os seus comentários de lá tão longe... Beijinhos.
Não estava cá no 25 de Abril. Cheguei em Abril do ano seguinte. O que sei do 25 de Abril por cá foi o que me contaram quando cheguei, e o que vi em filmes sobre ele.
ResponderEliminarMas sempre me pareceu uma grande injustiça feita ao homem que na minha opinião foi o que mais se destacou, especialmente quando nessas longas conversações evitou um banho de sangue.
Um abraço
Se tiveres paciência para ler o livro de Otelo sobre a Revolução, ficas mais por dentro do que qualquer um de nós que cá estávamos...
EliminarBeijinho
Um livro que adorei! Boa escolha para homenagear Salgueiro Maia.
ResponderEliminarObrigada, Carlos. Também eu adorei ler esse livro!!
EliminarGrande Lídia Jorge! Minúsculo CS! Parabéns pela sua homenagem ao GRANDE Salgueiro Maia. Não dei conta que algum jornal ou TV tivesse assinalado a data . É uma pena!
ResponderEliminarAbraço
Na conjuntura atual (esta maioria, este governo e este "pseudo"presidente) não é de bom tom os media referirem essa gritante injustiça, essa maldade vingativa perpetrada por uma mente vingativa... É, de facto, uma pena!
EliminarHá coisas neste país que só têm uma explicação: a hipocrisia vigente, ontem como hoje!
ResponderEliminarBeijocas
A "nossa" mente global mesquinha, invejosa, hipócrita, vingativa, Teté...
Eliminar"Havia um enquadramento legal para a bravura dos pides, não havia artigo nenhum no qual coubesse a bravura do meu marido. (…)"
ResponderEliminarFoi há 23 anos, e não me espanto pois foram criadas as condições para esta "vingança", pois é disso que se trata!
Que é de vingança que se trata tudo o que estas luminárias têm feito. Vingança do 25 de Abril!!
EliminarUma vingança de quem sempre este alinhado com o regime e porque continuam a votar nestes capangas, continuamos a viver naquele "Estado Novo"!
EliminarMais uma injustiça neste país que desconhece os seus heróis.
ResponderEliminarExcelente e oportuna estas sua mensagem amiga Graça.
beijinho com carinho e amizade
Fê
É assim desde Camões e outros...
EliminarBeijinhos, amiga Fê!
Eu sou de 96 e sinto-me com vontade de chorar ao ouvir este depoimento... É uma injustiça tremenda e tenho pena que ninguém tenho coragem para alterar!
ResponderEliminarSe o Sargento Salgueiro Maia destruiu um império, digo-vos eu que ao destruir um, construiu outro muito melhor! E se o facto de ter destruído um império não é algo memorável, eu tenho a certeza que o facto de ter construído um foi um ACTO HERÓICO!
:) :) :)
EliminarConfesso: não sabia a data em que ele morreu; sei no entanto o que fez e também como foi destratado (humilhado) e abandonado por aqueles que chegaram onde chegaram devido ao que ele fez e como fez!
ResponderEliminarFaltam-me palavras para exprimir o sentir do que sinto e que quanto mais sinto maior é a revolta.
De entre todos os políticos mediocres que têm sido governo (inclusivé os ditos "esclarecidos" e democráticos, alguns que foram presos políticos) não houve nem há um que se levante e diga:
-é por "culpa" do Salgueiro Maia que estamos aqui! Merece o nosso respeito, ele e a sua família!
Admito que o meu entender esteja incorrecto mas em minha "defesa" só posso acrescentar: deve ser porque sou velho e digo o que me vem à cabeça!