Entrei uma tarde numa camisaria
de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que
estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente:
«Boa tarde, senhor doutor.»
«Não sou doutor», disse-lhe, e
era a verdade. «Porque é que me julga doutor?»
«Ah, eu realmente julgava…»,
respondeu ele limpidamente.
Pedi gravatas, escolhi a que
preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me
conhecia, veio para ao pé do colega.
«Boa tarde», disse eu para ambos.
Os dois caixeiros inclinaram-se
amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:
«Boa tarde, senhor doutor, e
muito obrigado.»
Moralidade:
Quando a opinião nos faz
doutores, doutores temos de ser. Na vida social, somos o que os outros nos
julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para
todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O
estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo. Pode, é claro,
faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.
31/1/1932
(in «Contos Completos», Fernando Pessoa)
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Quando li este pequeno conto de
Pessoa, lembrei-me de quando cheguei a Leiria em finais de 74. Muito lisboeta, jovial,
muito independente, muito liberal, muito imbuída do espírito de Abril, mas já
licenciada e profissionalizada, pronta a concorrer a professora efetiva, o que,
à época, era ainda muito pouco comum.
Um dia entrei numa loja de modas
e, conversa para cá, conversa para lá, até porque eu era uma cara nova na pequena cidade, acabei por
dizer que dava aulas na D. Dinis. Automaticamente passei a ser tratada por
«doutora» e eu, do alto da minha simplicidade, da minha pouca idade e da minha
«mini-saia», tratei de dizer: «Ai, por
amor de Deus! Não me trate por doutora! O meu nome é Graça Maria e eu gosto.» E
logo a senhora que me estava a atender ripostou: «Mas porquê, é professora de Trabalhos Manuais?»
Grande Fernando Pessoa que tão
bem entendia a nossa pequenez!
Olha que sorte chamarem-te doutora! eu fui sempre stora!
ResponderEliminarBjs
Ontem, no Prós e Contras, a Ana Maria Caetano dizia à Fátima Campos Ferreira: eu não sou doutora.
ResponderEliminarResposta da Fátima: não faz mal, aqui em Portugal somos todos doutores.
Não vi mais nada do programa, porque quando me apercebi que tinham escolhido a filha do Marcelo Caetano para falar das Memórias de Abril, abandonei o televisor à sua sorta.
Eheheh, também podias ser de "Moral e religião", isto porque os "lavores" acabaram logo a seguir... :)
ResponderEliminarMas, enfim, há um tal de Relvas que "lambeu todas as botas", para o chamarem doutor! ;)
Beijocas
Eu gosto quando me tratam por "menina" :) Do Doutora, já me aconteceu e acho que não disse nada para passar mais despercebida.
ResponderEliminar"A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós."
ResponderEliminarGrande moral!
Ó graça e não perguntaste o que levou a Sra. a pensar em trabalhos manuais...heheh, isto assistimos a cada uma.
ResponderEliminarEu como tenho ar de cigana, não me acontecem dessas coisas.
beijinho e uma flor
Doutores, s'tores e doutores da mula ruça. Havia quem dissesse, doutores, doutores são os advogados e os médicos.
ResponderEliminarNem os advogados são tratados por drs... por aqui! Nem sr engenheiro ou sr arquiteto... Somos muitos mais
ResponderEliminarpragmáticos na forma de tratamento: )).
Essa mania é muito portuguesa, Graça.
ResponderEliminarAcho incrível que, pessoas que me conhecem desde menino, me tenham passado a tratar por doutor depois da licenciatura.
E, por mais que lhes peça que o não façam, não resulta.
Com essa mania, um tipo veio um dia no café perguntar-me que comprimidos devia dar às filhas que estavam com febre.
E ainda foi gozado.
Como é que ele podia saber que aquele do doutor não queria dizer médico??? :))
Cumprimentos que se criaram na nossa sociedade e que se enraizaram.
ResponderEliminarSer doutor era um estatuto para muita gente.
Muitos doutores eram pessoas de um mundo àparte. Ui!
há quem goste de acrescentar o doutor ao nome e quem não ache piada.:)
ResponderEliminareu não gosto do doutor nem do senhor, prefiro ser apenas Luís, mas...
abraço Graça
Volto aqui para referir a moda do dê-erre. Reparem na correspondência do vosso banco - eles gostam de usar o paninho. Há de tudo até gente que questionada, no preenchimento de formulários, respondem engenheiro Luís..., doutora Marília, quando lhe pedem o nome.
ResponderEliminarOutra coisa curiosa, os médicos recém formados, quando vão estagiar nos hospitais, não largam o estetoscópio. Só para não serem confundidos com os enfermeiros que usam também batas brancas.
...responde... pede.
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ResponderEliminarNos anos 60, um familiar meu, que exercia medicina em Lourenço Marques foi convidado por um funcionário do hospital para ser padrinho do filho já que tinha sido o médico que assistira ao parto. Aceitou, que há coisas que nunca se recusam. No dia do baPtizado ( propositadamente escrito com o P) lá foram ter à igreja onde os esperavam os pais da criança. Qual não foi o seu espanto. A criança tinha sido registada com o seguinte nome «Doutor Augusto Gonçalves».
Depois disto deixo a minha opinião quanto ao futuro - passemos a registar as criancinhas com o "doutor"...
Beijinho (ainda muito doente porque me ia matando há oito dias com uma queda e as dores têm sido um horror...)
Interessante o "post". Mas interessantes são também os comentários feitos. Entre doutora e menina, que bom, quando se atinge certa idade, o tratamento por menina...
ResponderEliminarhá coisas que mais vale ser que parecer...
ResponderEliminarbeijo