terça-feira, 15 de abril de 2014

Eu, o doutor

Entrei uma tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente: «Boa tarde, senhor doutor.»

«Não sou doutor», disse-lhe, e era a verdade. «Porque é que me julga doutor?»

«Ah, eu realmente julgava…», respondeu ele limpidamente.

Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.

«Boa tarde», disse eu para ambos.

Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:

«Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado.»

Moralidade:
Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos de ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

31/1/1932


(in «Contos Completos», Fernando Pessoa)
__________________________________________

Quando li este pequeno conto de Pessoa, lembrei-me de quando cheguei a Leiria em finais de 74. Muito lisboeta, jovial, muito independente, muito liberal, muito imbuída do espírito de Abril, mas já licenciada e profissionalizada, pronta a concorrer a professora efetiva, o que, à época, era ainda muito pouco comum.

Um dia entrei numa loja de modas e, conversa para cá, conversa para lá, até porque eu era uma cara nova na pequena cidade, acabei por dizer que dava aulas na D. Dinis. Automaticamente passei a ser tratada por «doutora» e eu, do alto da minha simplicidade, da minha pouca idade e da minha «mini-saia», tratei de dizer: «Ai, por amor de Deus! Não me trate por doutora! O meu nome é Graça Maria e eu gosto.» E logo a senhora que me estava a atender ripostou: «Mas porquê, é professora de Trabalhos Manuais?»

Grande Fernando Pessoa que tão bem entendia a nossa pequenez!

16 comentários:

  1. Olha que sorte chamarem-te doutora! eu fui sempre stora!
    Bjs

    ResponderEliminar
  2. Ontem, no Prós e Contras, a Ana Maria Caetano dizia à Fátima Campos Ferreira: eu não sou doutora.
    Resposta da Fátima: não faz mal, aqui em Portugal somos todos doutores.
    Não vi mais nada do programa, porque quando me apercebi que tinham escolhido a filha do Marcelo Caetano para falar das Memórias de Abril, abandonei o televisor à sua sorta.

    ResponderEliminar
  3. Eheheh, também podias ser de "Moral e religião", isto porque os "lavores" acabaram logo a seguir... :)

    Mas, enfim, há um tal de Relvas que "lambeu todas as botas", para o chamarem doutor! ;)

    Beijocas

    ResponderEliminar
  4. Eu gosto quando me tratam por "menina" :) Do Doutora, já me aconteceu e acho que não disse nada para passar mais despercebida.

    ResponderEliminar
  5. "A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós."

    Grande moral!

    ResponderEliminar
  6. Ó graça e não perguntaste o que levou a Sra. a pensar em trabalhos manuais...heheh, isto assistimos a cada uma.
    Eu como tenho ar de cigana, não me acontecem dessas coisas.

    beijinho e uma flor

    ResponderEliminar
  7. Doutores, s'tores e doutores da mula ruça. Havia quem dissesse, doutores, doutores são os advogados e os médicos.

    ResponderEliminar
  8. Nem os advogados são tratados por drs... por aqui! Nem sr engenheiro ou sr arquiteto... Somos muitos mais
    pragmáticos na forma de tratamento: )).

    ResponderEliminar
  9. Essa mania é muito portuguesa, Graça.
    Acho incrível que, pessoas que me conhecem desde menino, me tenham passado a tratar por doutor depois da licenciatura.
    E, por mais que lhes peça que o não façam, não resulta.
    Com essa mania, um tipo veio um dia no café perguntar-me que comprimidos devia dar às filhas que estavam com febre.
    E ainda foi gozado.
    Como é que ele podia saber que aquele do doutor não queria dizer médico??? :))

    ResponderEliminar
  10. Cumprimentos que se criaram na nossa sociedade e que se enraizaram.
    Ser doutor era um estatuto para muita gente.

    Muitos doutores eram pessoas de um mundo àparte. Ui!

    ResponderEliminar
  11. há quem goste de acrescentar o doutor ao nome e quem não ache piada.:)

    eu não gosto do doutor nem do senhor, prefiro ser apenas Luís, mas...

    abraço Graça

    ResponderEliminar
  12. Volto aqui para referir a moda do dê-erre. Reparem na correspondência do vosso banco - eles gostam de usar o paninho. Há de tudo até gente que questionada, no preenchimento de formulários, respondem engenheiro Luís..., doutora Marília, quando lhe pedem o nome.
    Outra coisa curiosa, os médicos recém formados, quando vão estagiar nos hospitais, não largam o estetoscópio. Só para não serem confundidos com os enfermeiros que usam também batas brancas.

    ResponderEliminar

  13. Nos anos 60, um familiar meu, que exercia medicina em Lourenço Marques foi convidado por um funcionário do hospital para ser padrinho do filho já que tinha sido o médico que assistira ao parto. Aceitou, que há coisas que nunca se recusam. No dia do baPtizado ( propositadamente escrito com o P) lá foram ter à igreja onde os esperavam os pais da criança. Qual não foi o seu espanto. A criança tinha sido registada com o seguinte nome «Doutor Augusto Gonçalves».

    Depois disto deixo a minha opinião quanto ao futuro - passemos a registar as criancinhas com o "doutor"...

    Beijinho (ainda muito doente porque me ia matando há oito dias com uma queda e as dores têm sido um horror...)

    ResponderEliminar
  14. Interessante o "post". Mas interessantes são também os comentários feitos. Entre doutora e menina, que bom, quando se atinge certa idade, o tratamento por menina...

    ResponderEliminar
  15. há coisas que mais vale ser que parecer...

    beijo

    ResponderEliminar