segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Génio lusitano

Tenho dito aqui por mais de uma vez que, menina lisboeta, vivi cerca de ano e meio na vila da Vieira de Leiria onde fiz parte da 1ª classe, a 2ª e o início da 3ª. Foi das experiências mais ricas da minha infância por ser um ambiente tão diferente e distante daquele que conhecia. De recordar que isto se passou em 1957/58. Foi lá que, pela primeira vez, vi uma picota (que encanto!) uma lagartixa, um ancinho para ir à caruma (bem como a própria caruma), cântaros de barro com que as mulheres iam buscar água à fonte e as respetivas cantareiras, mulheres descalças com os canos de lã nas pernas, as camarinhas, aquele mar violento a levantar-se em ondas altas e furiosas, aqueles barcos lindos de proa altíssima a lembrar os Vikings, os bois e as mulheres – tão fortes quanto eles – a puxarem as redes cheiinhas de peixe a saltar, etc. etc.

Foi lá que, pela primeira vez, fui a um baile numa sociedade recreativa, fui empalhar garrafões, fui à caruma, fui a um funeral enquanto menina da escola de batinha branca em fila atrás do féretro.
Foi lá que também pela primeira vez assisti a uma espetáculo estilo revista à portuguesa realizada e interpretada por pessoas da vila e talvez de Leiria, não sei bem. Lembro-me de alguns quadros muito engraçados e houve um que me marcou bastante: era um diálogo em que um dos artistas ia criticando várias circunstâncias e contingências do povo e do país enquanto o outro, vestido de jardineiro – lembro-me bem! – respondia sistematicamente: «Ah! Isso é lá com eles!»

Vem isto a propósito de um artigo que li hoje no DN cujo título é exatamente Génio Lusitano. O autor, que é português mas que tem uma avó checa e outra catalã, um avô austríaco e um pai alemão, faz uma crítica muito bem feita e bem divertida (?) à nossa capacidade (ou será uma incapacidade?) de olhar para o lado…

Diz ele: (…) «Os problemas impossíveis de se resolver em terras lusas são regra geral minúsculos: a luz dum poste de iluminação pública que não funciona há anos, o funcionário sem meios ou vontade para atender pessoas, os fios de telecomunicações que alastram nas fachadas dos prédios como a peste negra, a sala de aulas sem aquecimento, o devedor que não paga, o senhorio que não faz obras, o tempo de espera pela consulta, o autocarro que não passa, o vizinho que estaciona o carro no passeio sem deixar espaço para passar um chico fininho.

Esta prodigiosa faceta do carácter nacional permite deixarmos de ver as pequenas monstruosidades que nos rodeiam e é única na Europa. Num país, que por semana fica à frente em dezenas de rankings, é estranho não ter ainda aparecido uma revista internacional a colocar-nos em primeiro lugar na modalidade "olhar para o lado". (…) Tentar fazer alguma coisa não serve de nada, é a desculpa que se ouve sempre, por isso não se tenta fazer nada. "Eles", seres distantes algures nos centros de decisão, "também não fazem a ponta de um corno", "aquilo é só tachos", "anda tudo na mama" ou "só mudam as moscas". Em vez de tomarmos a iniciativa e limparmos nós a porcaria à pazada, é uma enxurrada de desculpas para não mexer uma palha e tudo ficar igual.


Em Portugal a cidadania não é vivida como um direito. É um fardo que se carrega às costas. E por cima do fardo ainda estão "eles" empoleirados, os "lá em cima". Se, por sua vez, pergunto a um de "eles lá em cima", também olham para o lado e dizem-me que são "eles", os "ali ao lado", que lhes empatam o serviço. (…)»

Connosco é mesmo assim: «Isso é lá com eles» e assobiamos para o lado.




14 comentários:

  1. Na mouche! Fácil é atirar as culpas quando nunca se age!

    Beijinhos, Graça :)

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  2. Também li e tenciono escrever sobre o assunto, Graça. O artigo vai na linha de alguns posts que de quando em vez escrevo sobre os tugas e me valem severas críticas de alguns leitores. Boa semana

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    1. E o Carlos ralado com essas críticas!... Há que "denunciar" sempre!

      Beijinho.

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  3. Oh, caramba, Graça! Desta vez não faço coro contigo!
    Então não somos todos portugueses? Porque razão falamos de "nós", como se falássemos de um povo estrangeiro?
    Se pensas assim, e como tu muitos mais, não olhem para o lado, não assobiem, metam mãos à obra, arregacem as mangas e actuem. Quem sabe seja preciso haver uma meia-dúzia de corajosos para endireitar esta m**** e engrandecer Portugal...os que olham para o lado passarão a olhar para quem lhes der o exemplo, ora essa!

    Beijinhos e anda prá frente com o (MRCE) Movimento Revolucionário Contra os Empatas. :(

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    1. Minha querida, sempre meti mãos `obra e ainda acontece... Esse recado para mim, não cola. Mas que grande parte do pessoal age assim, ai não tenhas dúvidas...

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  4. Somos uns gajos estranhos que parecemos porreiros, Graça. :)

    abraço

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  5. Pois é, as nossas características são interessante. e eu aprecio imenso ler livros de estrangeiros sobre nós.

    Beijinhos portugueses e feliz Fevereiro

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    1. Também eu!!Eles têm uma visão certeira da nossa maneira de ser.

      Bom Fevereiro também para ti. Beijinho.

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  6. Visões interessantes e muito intrigantes...
    Abraço.

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    1. Mudança que leva tempo. Muito tempo. A das mentalidades.

      Beijinho.

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