Assiste-se a uma nova
movimentação (ou será sempre a mesma?) para a anulação do último acordo
ortográfico. Que me desculpem talvez a brutalidade da expressão, mas as razões
apresentadas para que tal aconteça até me dão volta ao estômago!
Ando a reler as «Lendas e
Narrativas» de Herculano e convido os defensores do Não a lerem-nas na
escrita do autor de meados de 1800… Mas
em vez de me pôr aqui a perorar sobre motivos e fundamentos sobre os acordos
ortográficos que já se realizaram, deixo-vos um texto maravilhoso e até
divertido de Francisco José Viegas que li na Ler deste Inverno.
«Por falar em língua – na Língua Portuguesa,
permitam-me que lembre que o AO não é o nosso maior problema, nunca foi.
Enquanto milhares de portugueses prometiam acorrentar-se às consoantes mudas em
protesto, desculpavam-se erros de palmatória de português básico em documentos
oficiais, em legendas e rodapés da televisão pública (onde, entre tantos
provedores, nunca se encontrou ninguém para aplicar corretivos) ou na avaliação
de testes nas escolas (houve inclusive, nos idos de 1990, uma nota distribuídas
aos professores para não assinalarem erros ortográficos nas provas de avaliação
porque isso seria traumatizante).
Comparando o léxico de Mau Tempo no Canal, de 1944, com o
romance de um autor contemporâneo, percebe-se que desapareceu cerca de 20% do
vocabulário. A língua portuguesa está confinada ao seu ersatz, um substituto ligeiro, uma língua de anúncios de aeroporto,
de fala de supermercado.
A escola é muito responsável por
este desastre, preferindo a pobreza do léxico, desculpabilizando os erros,
desejando agradar à vulgaridade, parlapatando – esquecendo que quem fala e
escreve mal, pensa mal. Para o sistema educativo fazer algo pela defesa da
Língua Portuguesa? Duvido. Veja-se este pedaço de, por assim dizer,
«competência linguística» do Ministério da Educação num texto sobre educação de
adultos: «Este programa deverá assentar numa maior integração das respostas na
perspetiva de quem se dirige ao sistema, tornando, na ótica do formando,
coerente e unificada a rede e o portefólio dos percursos formativos, que no
percurso individual devem ser passíveis de combinação personalizada.» Não há
ortografia que lhe valha.
As novilínguas tecnocráticas que
os analfabetos popularizam são também um elemento a ter em conta para a perda
de identidade da língua. Mesmo desculpando «gentrificação»
para significar «gentrification», do
inglês (gentry), que vem do francês
arcaico (genterise) – ocupação do
centro das cidades por gente rica – é estranho ouvir uma pessoa altamente
colocada a defender a necessidade de discutir a genderificação (do inglês gender,
género) uma vez que há cargos muito genderificados.
Semanas antes ouvi uma senhora exigir mais empoderamento (empowerment) para as mulheres e que ela própria
tinha contribuído para empoderar mulheres
num país latino-americano , e – entretanto – o presidente da Câmara de Valongo
publicou um livro sobre política onde insistia na necessidade em «empoderar os cidadãos do concelho»,
coisa que os deve alegrar. Depois, há «os cidadãos e as cidadãs» que dizem aitem em vez de item (um pronome demonstrativo latino) – e o horror ameaça não ter
fim, a avaliar pela forma como toda a gente encolhe os ombros.»
Francisco José Viegas, Revista Ler, Inverno 2016/2017
Deixas-nos aqui muita matéria para "emponderarmos":)))) mas no sentido de ponderar...
ResponderEliminarbjss
:))))) Gosto desse teu sentido de humor, papoila. Assim é que é...
EliminarBeijinhos e gargalhadas...
Recebi via mail uma petição contra o AO/90 que não assinei nem enviei a ninguém. Não porque seja a favor do Acordo, mas porque me é indiferente. Escrevo e escreverei como aprendi, incluindo vogais que não se lêem. Tu sempre defendeste o AO, mas quando escreves aqui, e presumo que o fazes em tudo o que escreves, a seguir a um ponto final, inicias nova frase com letra maiúscula. Não percebo porque vejo por essa blogosfera fora, muita gente escrever à balda, como se o AO justificasse tudo.
ResponderEliminarLamento esses despautérios que referes no teu último parágrafo, mas isso é ignorância metida a besta e não tem nada a ver com o AO. Sempre houve quem queira imitar modos estrangeirados de falar sem perceber o que significam as palavras.
Essa do P.C. de Valongo até parece anedota...:)
Beijinhos Graça, e tem paciência. :)
* Incluindo «consoantes», obviamente! :)
EliminarClaro que tenho, Janita. Toda a paciência do mundo. Estas reações aconteceram sempre após a assinatura de todos os acordos ortográficos.
Eliminar«Calma! O povo é sereno... isto é só fumaça...»
Beijinhos
Esta escreve sempre o mesmo... Ou seja, justifica estas alterações com outras que já existiram antes... Amanhã, se passarmos a escrever à SMS, ela vai aprovar logo, porque a língua muda, não é? Olhe, e ler o texto do acordo? Ler o que se tem escrito sobre ele? Reflectir sobre a ciência da coisa? "Bola", como diz o outro. Dedique-se à pesca.
ResponderEliminarQuando ao FJV, engraçado é que ele era contra e até assinou um manifesto em 1991, agora parece que é a favor, depende da direcção do vento. O texto do acordo não mudou uma vírgula, mas ele vai mudando... Há quem lhe chame evolução, há quem lhe chame falta de espinha. E ainda tem o desplante de misturar ortografia com léxico e estrangeirismos. Tudo isto diz bem dos conhecimentos, da integridade e sanidade mental do sujeito. Vão pescar os dois.
Iremos, certamente, se nos levar...
EliminarOlhe, e já agora, 'esta' tem nome...já você parece um bloco de gelo...
Apareça sempre.
Não sigo o Acordo Ortográfico.
ResponderEliminarMas também não vou fazer barulho para que seja revogado.
Que sera, sera.
Beijinhos
Na sua escrita pessoal, cada um é livre de usar o acordo ortográfico que muito bem entende, Pedro. Mas que estes acordos são necessários, não há dúvidas.
EliminarBeijinhos, de acordo? :))
Mas são necessários em quê, não quer explicar? Ah, já sei, não sabe explicar porque não há explicação possível. Francamente.
EliminarICE, (ou direi mesmo ?!) sou licenciada em filologia, estudei linguística, psicolinguística, sociolinguística e fonética. Sei alguma coisa para lhe explicar o que for preciso. Neste espaço é que não... Talvez quando formos à pesca...
Eliminar
ResponderEliminarEmpoderamento e item existem no priberam. Não estou a ver o problema e não estou a encolher os ombros.
Se o AO foi aprovado (reconheço que poderá causar “arrepios” a muita gente), a sua aplicação não é exigida atualmente pelo Ministério de Educação? Não é obrigatório a nível governamental?
Claro que sim!!!
EliminarItem vem do latim e deve dizer [item] e não [aitem]. Quanto ao "empoderamento" mesmo existindo no priberam é de arrepiar! Porque não usar uma palavra portuguesa em vez?
Excelente pergunta. Cada vez que me lembro de "handicapado" em vez de "deficiente"....
EliminarBoa, São!!
EliminarA discussão do AO é como o jogo da corda: uns puxam para um lado, outros para o outro. Pergunto, por que razão não se sentam todos o jogadores, responsáveis, e discutem o assunto educada e sensatamente?
ResponderEliminarPodiam começar por este texto publicado, merecedor de ampla divulgação, e, depois, só depois, entreterem-se com a pirraça das consoantes mudas.
Haverá certamente casos que deveriam ser revistos. O que interessa, a meu ver, é que a escrita não seja motivo de dificuldades de comunicação ou mesmo de equívocos. Desde que nos entendamos... não virá mal ao mundo.
O que me irrita, para além da interminável disputa, é ver que não há Acordo nenhum. Que se declare isso mesmo, ou seja, que as regras ortográficas são aplicáveis estritamente em Portugal. É anedota os textos portugueses chegarem ao Brasil e sofram de tratamento e poda, ao jeito brasileiro. Li muito livro de autores brasileiros e nunca tive dificuldade em compreendê-los.
Gostei desta crónica, Graça.
Obrigada, Agostinho, pelas suas palavras sempre avisadas.
EliminarBeijinhos.
Já tinha decidido há bué que não me metia em mais discussões sobre um acordo de 1990, e agora parece que renasceu das cinzas a vontade de o discutir outra vez. Não há pachorra! :P
ResponderEliminarNo dia em que estes supostos defensores da língua de Camões deixarem de dar calinadas e começarem a escrever português (com ou sem acordo) corretamente, eu dou-lhes alguma credibilidade. Antes disso não!
Beijocas, Graça, estou contigo!
Obrigada, Teté! Renasceu agora na esperança que o novo presidente da República volte com tudo atrás. Enfim!| País de velhos do Restelo!
EliminarBeijinho.
MUITO BEM, GRAÇA!
ResponderEliminarTanto a abordagem como o destaque estão excelentes.
Só lamento que tenham permanecido tantos acentos circunflexos inúteis.
Beijinhos literários.
~~~~~~~~~~~~~
Obrigada, Majo!|
EliminarBeijinhos com acordo...
Viva o acordo "ortopédico"
ResponderEliminarabaixo os PALOPs
Contrariamente ao que possam pensar, isto que eu disse quer dizer (quase) o mesmo do que o Agostinho deixou dito!
Quando referi os PALOPs, com aquela ironia avinagrada que me inunda a alma, recordava um texto de Mia Couto... não foi preciso procurar muito... ei-se-o:
Eliminar"Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?
Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
( e citando muitos, termina assim)
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.
Devolver a estrela ao planeta dormente".
Maravilhosa a prosa de Mia Couto. Sempre!
EliminarMinha linda, pois continuamos em desacordo sobre o Acordo , que se há-de fazer? :) :)
ResponderEliminarBeijinhos desacordados , mas amigos
Oh, São!! Nem parece de uma mulher tão moderna e desempoeirada.....
EliminarBeijinhos sempre amigos com ou sem acordo.
Às vezes já nem sei se escrevo com ou sem....
ResponderEliminarEscreva sempre as consoantes que pronuncia - as outras não se dizem, não se escrevem...
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