O escritor que adorava gatos, poeta
discreto, prémio Camões, autor diário de crónicas «com saudade da literatura» no
JN, completaria hoje 70 anos se não tivesse partido, também discretamente, há
pouco mais de um ano. No Porto, onde vivia, a data foi assinalada de variadas
formas: o Museu de Imprensa promoveu a leitura de dez dos seus poemas em sete
locais que o autor frequentava nomeadamente a padaria Ribeiro, a belíssima
Livraria Lello, o café Piolho, a estação de metro da Trindade, e os cafés
Orfeuzinho e Convívio. Esta iniciativa foi acompanhada pelo lançamento de milhares
de panfletos com poemas do poeta em diversos locais da cidade do Porto.
Em jeito de homenagem breve ao
cronista que eu tanto apreciava, deixo aqui uma das muitas crónicas com que o jornalista/autor
animou a última página de tantos e tantos exemplares do Jornal de Notícias.
Podia ser uma qualquer outra, mas esta, além de falar de gato, parece-me tão
atual!
Onde se fala de gatos
e de homens
Os meus gatos dormem durante a
maior parte do dia (e, obviamente, durante a noite toda). Suspeito que os gatos
têm um segredo, que conhecem uma porta para um mundo coincidente e feliz, por
onde só se passa sonhando. Um mundo criado como Deus terá criado o nosso humano
mundo, à sua desmesurada imagem. Porque os que sonham são deuses criadores. Os gatos
sonham dormindo, os homens sonham fazendo perguntas e procurando respostas.
Mas os meus gatos dormem e sonham
porque não têm fome. Teriam, se precisassem de procurar comida, tempo para
sonhar? Acontece talvez assim com os homens. Como se o espírito criador fosse,
afinal, prisioneiro do estômago. Talvez, então, a mesquinhez de propósitos da
nossa vida colectiva radique, como nos querem fazer crer, no défice, e talvez o
cumprimento das normas do pacto de estabilidade seja o único sonho que nos é hoje permitido.
E, contudo, dir-se-ia (e isto é
algo que escapa aos economistas) que é o sonho, mais do que a balança de
pagamentos, que alimenta a vida, e que os povos, como os homens, precisam de
mais do que de números. Os próprios números têm (os economistas não o sabem
porque a sua ciência dos números é uma ciência de escravos) o poder desrazoável
de, não apenas repetir, mas sonhar o mundo.
Há anos que somos governados por
economistas e o resultado está à vista. Talvez seja chegada a altura de ser a
política (e o sonho) a dirigir a economia e não a economia a dirigir a política.
Jesus Cristo «não sabia nada de finanças, / nem consta que tivesse biblioteca»,
e o seu sonho, no entanto, continua a mover o mundo.
JN, 09/11/2005
Também muito o apreciava e partilho com ele a paixão pelos bichanos.As pessoas como ele não morrem viverão pelos pensamentos positivos e afirmativos que criam e transmitem.
ResponderEliminarBjs
Mais um homem excepcional nascido em Novembro!
ResponderEliminarLembrei-o no facebook ao partilhar a notícia que referes!
Ele merece e ainda por cima um amante gatos!
Abraço
Tinha uma enorme admiração pelo Pina, um dos melhores cronistas a escrever na nossa imprensa. Ele não partiu. Quem gosta de gatos, nunca parte!
ResponderEliminarOs nossos mortos não morrem!
ResponderEliminarGracinhamiga
ResponderEliminarTive o privilégio, o prazer e a honra de ter sido amigo do Manel António, o Pina. Aprendi muito com ele, embora ele fosse mais novo do que eu - uns escassos dois anos, mais ou menos...
O Porto homenageou-o. Fez bem. O Porto tem memória. Acho bem. Mas o Porto sem o Manel António não é o mesmo Porto. Digo eu. E digo porque nos riamos a bandeiras desfraldadas com o digo eu.
Até quando, Pina? Até quando um homem quiser, como o Natal. Obviamente - com gatos.
Qjs
O Manuel Pina oferecia-nos deliciosas crónicas no JN e poesia de primorosa sensibilidade. Tive conhecimento da partida dele, pela rádio, quando regressava a casa ao fim do dia. Atrevi-me então a escrever as linhas seguintes, sem ter o conhecimento das suas rotinas.
ResponderEliminarO Poeta voou
Um coração abriu as asas e
mil folhas agitaram ao vento
da árvore onde morava
um poema no derradeiro alento.
Num voo crescente soltou-se no universo.
Há de voltar ao Guarany,
os jornais dirão do evento
ao café com outros ausentes,
no granito ficará o momento.
A liberdade respira sempre num verso!
Manuel António Pina
18/11/1943 – 19/10/2012
Que repouse em paz.
ResponderEliminarDeixou saudade.
Lia sempre as suas crónicas na "Visão"
ResponderEliminarUm abraço
ResponderEliminarSe os gatos mandassem...os coelhos já teriam fugido!
Beijo
Laura
ResponderEliminarO Porto é pequeno demais para uma tão grande "pessoa". Mas como muito bem diz, trata-se de uma pessoa "discreta", discreta como só alguém de alma nobre.
Tenho uma referência ao poeta nas minhas "searas".
Bjs
Uma justíssima homenagem a um dos Grandes intelectuais e escritores portuenses !
ResponderEliminarBj. Graça ! :))
.
"A poesia vai acabar, os poetas
ResponderEliminarvão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei:
"Que fez algum poeta por este senhor?"
E a pergunta afligiu-me tanto
por dentro e por fora da cabeça que
tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? "
Manuel António Pina (1943 - 2012)