Falar em Afonso
Lopes Vieira faz-nos regressar aos nossos livros [únicos e fascizantes,
diga-se] da Escola Primária em que apareciam aqueles versos para a infância do
seu livro de 1911 Animais Nossos Amigos:
Os Bois, O Cão faz ão ão, O Gato e o encantatório Ninhos, que era assim:
Ninhos
Os passarinhos
Tão engraçados,
Fazem os ninhos
Com mil cuidados.
São p’ra os filhinhos
Que estão p’ra ter
Que os passarinhos
Os vão fazer.
Nos bicos trazem
Coisas pequenas,
E os ninhos fazem
De musgo e penas.
Depois, lá têm
Os seus meninos,
Tão pequeninos
Ao pé da mãe.
Nunca se faça
Mal a um ninho,
À linda graça
De um passarinho!
Que nos lembremos
Sempre também
Do pai que temos,
Da nossa mãe!
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E por aí nos ficamos, que não foi
autor estudado (nem falado) no Liceu e menos ainda na Faculdade. A imagem que se tem é a de um autor de fim de
século, de sensibilidade romântica muito colada aos valores morais (moralistas)
da Igreja, um burguês a respirar e a transpirar aquela bondade romântica que
pingava para o povo desfavorecido, pobre, miserável, mas cheio de saudável
mansidão. Qualidades muito ao estilo do Estado Novo e que este aproveitou tanto
quanto pôde.
Sabemos (quantos saberemos?!) que,
aquando da inauguração da Capelinha das Aparições em Fátima, foi ele o autor da
letra de «Para o Ave em Fátima». Fica
então, quase sem remissão, autor ao serviço do salazarismo. (ver nota 1)
Então como explicar as inefáveis Éclogas de Agora, de 1935, que constituem
um verdadeiro espírito de resistência ao Estado Novo? Nestas cinco éclogas, num
estilo bucólico muito pessoal e numa linguagem críptica e metafórica, o autor
desenvolve diálogos entre personagens/pastores resguardadas por criptónimos a
fim de ludibriar a Censura. O poeta toma o nome de Umbro, Viviano, Aldo, por
exemplo. (ver nota 2)
De notar o simbolismo do desenho da capa |
Terá Afonso Lopes Vieira, de
facto, sido um autor ao serviço do Estado Novo, ou ter-se-á o Estado Novo
servido de Afonso Lopes Vieira (como de outros tantos)?
Foi esta a temática do Colóquio
que a Câmara Municipal e a Biblioteca Municipal de Leiria – que tem o nome (e o
acervo bibliotecário) do autor aqui nascido em 1878 – promoveram na passada
terça-feira, dia 26, aos 70 anos da sua morte.
O Colóquio teve por tema «A
glória do esquecimento» e teve como oradores, grandes estudiosos da vida e da
obra do autor leiriense, como os Doutores Cristina Nobre (do IPL), Paulo
Alexandre Pereira (da Universidade de Aveiro); José Rui Teixeira (da
Universidade Católica do Porto); Luís Reis Torgal (da Universidade de Coimbra);
e Eduardo Cintra Torres (da Universidade Católica de Lisboa).
Podem crer que foi uma jornada de grande nível cultural e de
grande aprendizagem literária.
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Nota 1
PARA O AVE DE FÁTIMA
A TREZE de Maio, na Cova da Iria, apar'ceu, brilhando, a
Virgem Maria. AVE
A Virgem Maria, cercada de luz, nossa Mãe bemdita e Mãe de
JESUS. AVE
O mundo sofria; Portugal ferido sangrava e gemia.
Foi aos pastorinhos q. a Virgem falou. Desde então nas almas
nova Luz brilhou. AVE
Com doces palavras mandou-nos rezar, a Virgem Maria para nos
salvar! AVE
Achou logo a Pátria remédio a seu mal. E a Virgem bemdita
Salvou Portugal! AVE
Mas jamais esqueçam os bons corações q. nos fez a Virgem
determinações, Falou contra o luxo, contra o impudor, de imodestas modas de uso
pecador. Disse q. a pureza é querida a Jesus, disse q. a luxúria ao fogo
conduz. A treze de Outubro disse-nos a Luz e a Virgem Maria escuta nos céus.
AVE
Á Pátria q. é vossa, dai Honra, Alegria e Graça de Deus
AVE
Á Virgem bemdita cante seu louvor toda a nossa terra num
hino de Amor AVE
Todo o mundo A louve para se salvar, desde o vale ao monte,
desde o monte ao mar. AVE
Já por todo o mundo se ama o nome Seu Portugal a Cristo
tantas almas deu. AVE
Oh, demos-lhe graças por nos dar seu Bem, à Virgem Maria,
nossa qu'rida Mãe! AVE
E para pagarmos tal graça e favor, tenham nossas almas só
bondade e Amor. AVE
Ave, Virgem Santa, 'strêla q. nos guia! Ave, Mãe da Pátria,
Oh Virgem Maria!
(in «AFONSO LOPES
VIEIRA — de Conto do Natal (1905) a
Santo António. Jornada do Centenário (1932) —
um percurso do apaziguamento »
Cristina Nobre )
……………………………………..
Nota 2 (excerto de uma das
éclogas - Écloga II)
Viviano
(…)
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos liberais-constitucionais,
que vieram a fornecer ao Estado Novo o grosso da sua componente de apoiantes
monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado -
Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
(…)
Pouco sei sobre Afonso Lopes Vieira por isso achei esta mensagem de hoje muito interessante. Lembro essa dos passarinhos dita pela minha mãe. Gostei de toda a informação, Graça.
ResponderEliminarObrigada, Benó! :)
EliminarGosto do poeta e da sua poesia clara e aberta a todos.
ResponderEliminarLigado ou não ao Estado Novo o poeta consegue resumir o pensamento do povo e não da Igreja.
É verdade, Luís! Conseguiu registar o pensamento do povo daquela época.
EliminarLiteratura acomodada, conservadora, da burguesia letrada...
ResponderEliminarMas um vulto que marcou uma época.
Só lamento é que se esqueçam com demasiada leviandade de Acácio de Paiva. Por sinal, o pouco espólio de Acácio de Paiva, à guarda da Biblioteca Municipal de Leiria, até se encontra integrado (em termos de espaço físico) integrada no Arquivo "ALV".
Tanto poeta esquecido na nossa terra! Estou certa que há de chegar a altura de recordarem Acácio de Paiva!
EliminarJá agora, vale a pena ir até São Pedro de Moel e fazer uma pausa, relembrando o Grande Afonso Lopes Vieira!
ResponderEliminarÀ sua casa-nau!! Ainda não arranjei oportunidade de a visitar por dentro, mas hei de fazê-lo! Só se visita no verão.
EliminarTenha ele estado ao serviço do salazarismo, ou tenha sido por ele utilizado, é um facto que o que escreveu era inteligente, tinha ritmo, ficou dentro de nós - quem não se lembra ainda dos "passarinhos"?
ResponderEliminarAcredito que tenha sido um colóquio muito interessante - assim como foi este teu post!
Foi, de facto, muito bom! Os oradores convidados eram muito bons. Foi um verdadeiro banho de literatura!
EliminarAfonso Lopes Vieira, ficará para sempre ligado às minhas mais gratas recordações da infância, Graça.
ResponderEliminarAinda hoje sei de cor muitos dos seus poemas, aprendidos nos livros da terceira e quarta classe!
Ainda há pouco fiz referência ao poema O Gato, a propósito de um meu post sobre a inveja.
"Não tenho inveja a ninguém
aqui na minha janela
onde me sinto tão bem"
Ainda bem que as Câmaras Municipais, unidas a outros organismos, organizam Colóquios e debates, para que não caiam no esquecimento os grandes pedagogos lusitanos.
Obrigada por esta deliciosa partilha, que veio reavivar memórias de todos os da nossa geração.
Um beijinho, Graça.
Ainda bem que gostaste, Janita! Lembro-me bem dessa tua entrada em que invocas o poema O Gato.
EliminarBeijinho pela tua simpatia.
Os passarinhos lembraram-me momentos muito felizes!
ResponderEliminarobg.
bjs
Que bom, papoila!
EliminarBeijinhos.
De Afonso Lopes Vieira, conheço os poemas da primária. Muitas vezes tenho cantado o hino de Fátima aqui se vai rezando intercalando o Terço, embora se cante só até ao salvou Portugal. Mas não sabia que era do Afonso Lopes Vieira. Das éclogas, é a primeira vez que oiço falar.
ResponderEliminarAbraço
Na continuidade do colóquio, que tivemos o grato prazer em assistir, informo-a que recebemos da parte do Prof. Doutor José Rui Teixeira os seguintes livros:
ResponderEliminar- O Livro de Guilherme de Faria I SAUDADE MINHA (poesias escolhidas)
- Vida e Obra de Guilherme de Faria - Os versos por escrever
- Diáspora
Caso tenha interesse em consultá-los terei todo o prazer em lhos emprestar.
Desconhecia ser Vieira o autor do Avé de Fátima.
ResponderEliminarNão será que a ditadura se serviu dele e que ele se pôs a jeito?
Grato abraço pelo interessante texto