sexta-feira, 23 de junho de 2017

Prémio Camões




Só que ainda não tive tempo de falar aqui do Prémio Camões deste ano (29ª edição) atribuído, no passado dia 8, ao poeta Manuel Alegre. E muito justamente.

Ao lado de poetas e escritores portugueses de alto nível como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Saramago, Eduardo Lourenço, Agustina, Lobo Antunes, Sophia e de muitos outros grandes cultores da Língua Portuguesa do Brasil, de Moçambique, de Cabo-Verde, Manuel Alegre entra para esta galeria aos 81 anos de idade e mais de 50 de escrita publicada.

O que mais me encanta nesta atribuição é o cruzamento constante da sua poesia – tantas vezes épica – com a do nosso poeta maior. Como Camões, também Alegre foi um poeta exilado.


Lusíada Exilado

(…)
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.

Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.

Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.

Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.

(…)
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)

Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.

Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.

Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão.)
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.

Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.

In 30 Anos de Poesia, 1996


E sobre Luís de Camões, escreveu assim:

Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.

Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.

Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.

Só ele Príncipe.

(…)

De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.

E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.

(…)
E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.

Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.

In  “A Praça da Canção” , 1967

"Estendida nesta linha de influências e modelos, a poesia de Manuel Alegre faz ressurgir a voz de Camões numa espécie de canto geral da condição lusíada. Épica naquilo que tem de exaltar, lírica na voz sofrida daquele que busca e não encontra o sentido dessa condição; eis uma poesia que pesquisa a raiz ancestral do ser, a origem da grandeza ética." (João de Melo, 1989)

8 comentários:

  1. Manuel Alegre sem enganos cantou a Pátria como ninguém.
    Foi bom vê-lo aqui, quando há uma Pátria por ganhar. Agora que a dúvida é a guerra crescem na terra ao abandono. Ainda sem dono?
    Bj.
    Bj.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Linda(s) frase(s) a(s) sua(s)!!!

      Poeta é assim mesmo: escreve (e sente e sabe) bonito.

      Obrigada.

      Eliminar
  2. Gosto muito de Manuel Alegre. Penso que este premio peca por tardio.
    Abraço e bom fim-de-semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ele próprio o disse e foi criticado por isso...

      Beijinho, Elvira.

      Eliminar
  3. Já era merecido há muito tempo... Gosto muito da poesia de Manuel Alegre. Desde sempre.
    Um beijo, Graça.

    ResponderEliminar
  4. Também gostei imenso da frontalodade dele ao

    ResponderEliminar
  5. Para acabar...
    So lhe faltou mesmo dizer que já devia ter sido ha mais tempo. E tem toda a razao

    ResponderEliminar