quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Da simplicidade

Tenho para mim, desde sempre, que a simplicidade – assim como a humildade – é um estado que só alguns alcançam. Do alto de toda a sua sabedoria, Da Vinci dizia que «a simplicidade é o último grau da sofisticação».

Encantam-me pessoas como a escritora espanhola Rosa Montero que afirma que «A escrita, para mim, não serve para demonstrar o que quer que seja, mas sim para a prender. Se não acrescentar algo ao meu conhecimento é porque não escrevi bem.»

Também Luísa Dacosta, escritora, professora, pedagoga, que teve 20 valores no antigo Exame de Estado, exame que tinha de se fazer no final do estágio para se poder entrar na carreira de professor (o único exame que o ministro (C)rato ainda não fez renascer…) quando um estagiário de grande nível tinha 16, 17 no máximo, dizia: «Tive crianças que passaram por dificuldades extraordinárias, mas a determinada altura vi que era capaz de escrever para eles. Ajudaram-me a escrever. Incluí no meu vocabulário algumas palavras criadas pelos alunos.»

A lembrá-la e a homenageá-la na sua recente partida deste mundo, Guilherme de Oliveira Martins escreve: «Para si o diálogo com os alunos era fundamental. Quantas vezes saía da sala de aula, dizia que era ela quem mais tinha aprendido.»

(Salvas as devidas distâncias e longe de tentar qualquer tipo de comparação com senhoras do nível destas que atrás referi, recordei uma situação desconfortável por que passei há muitos, muitos anos, no início da minha carreira: no primeiro ano em que fui orientadora de estágio para professores, nos idos de 78/79, ganhei uma bolsa da Gulbenkian de um mês na Universidade de Chichester, em Inglaterra. Éramos 20 portugueses entre orientadores de estágio e estagiários recém-formados e uma dessas colegas perguntou-me se eu gostava de ser orientadora; eu, que sempre gostei do fiz na escola, respondi que sim especialmente por causa do que aprendia com as estagiárias. Grandes gargalhadas deu a colega – que até era mais velha do que eu – dizendo, divertida: «Aprendes? Mas tu é que tens de ensinar…»)

A simplicidade de uma pessoa como era Luísa Dacosta está por de mais patente na espécie de texto autobiográfico de despedida que o Expresso publicou no dia da sua passagem. Para quem ainda não leu, fica aqui um “cheirinho” desse belo texto que poderá ser lido na íntegra aqui.


«Lamento sair desta vida bastante desiludida. Por exemplo, em relação à alegria com que festejei o fim da II Guerra, a pensar que nunca mais havia guerras, e que vinha aí a solidariedade, a democracia e a liberdade para todos. Mas não. Estamos num mundo criminoso em que 70 por cento da população mundial não tem acesso à água, à comida, à saúde, à educação. Sobretudo, incomoda-me partir com a certeza de que a parte mais esmagada deste mundo é a mulher. Isso dói-me. A pessoa sai daqui a pensar que certas coisas pelas quais lutou já nunca mais aconteceriam, e afinal pioram. Nunca pensei que as mulheres se fizessem a elas próprias bombas. É preciso um desespero terrível e já não acreditar em mais nada, para se fazer uma coisa dessas. Isto significa que criámos um mundo que é imoral. Há uns que julgam que já viram tudo, que já sabem tudo, que já têm tudo, e há outros que andam a esgravatar, a ver se encontram umas sementes na terra. É uma coisa atroz. Nunca fui optimista, mas tão pessimista como agora, também não. (…)

Agora começo a ter a noção de que possivelmente o tempo está a acabar. Preocupa-me, na medida em que às vezes me perguntam se quero cair para o lado, porque ainda continuo a ir dar umas aulas, como fui recentemente aos Açores, onde apanhei uma pneumonia. Eu respondo que é exactamente isso que quero: cair para o lado. Há só uma coisa que me apavora no fim: o tempo de desgaste que as pessoas às vezes têm numa cama. Ainda vivo sozinha, ainda faço as minhas compras, ainda faço a minha comida. Faço uma vida bastante normal. Não desejo a dependência. Custa-me mais aceitar a degradação do que a morte. A dependência é uma coisa terrível. A minha mãe era uma pessoa de grande vontade. Partiu as duas pernas, foi operada e nos últimos tempos ficou acamada. Lembro-me que quando eu a lavava, ela chorava. Devia ser uma coisa terrível. Para uma pessoa independente como eu, isso é uma humilhação que me aterra. (…)

Não me vejo reformada. Fui dar uma aula à Faculdade de Psicologia, em Lisboa, e disseram-me para voltar no próximo ano. Eu respondi que, se estiver viva, lá estarei. Depois alguém me disse que eles sabiam o que é que iam lá buscar, mas e eu? O que é que ia lá buscar? Respondi que também sabia o que é que ia lá buscar. Vou buscar bafo humano, que é a única forma de sobrevivermos.

Tive dias terríveis na minha vida. Enterrei uma filha no dia de Natal. Não resistiu ao cancro a que eu resisti. As coisas mais gratificantes que tive na vida vieram dos afectos. Por exemplo, cartas que tive dos alunos. A afectividade toca-me bastante. A primeira aula que dei a seguir a ter estado internada foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida.

A vida ensinou-me que não podemos viver sozinhos. Ensinou-me que não podemos viver sem o bafo humano e que devemos fazer tudo para lutar por isso.»




19 comentários:

  1. Sem comentários , estou emocionada , estou solidária e estou triste. Julguei , na vida caminhar para um mundo melhor , solidário ... e não.
    Cada um de nós , faça a sua parte sem que o " chico esperto" ao lado nos encha , em surdina , de parvas.
    M.A.A.

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    1. Ainda bem que encontrou eco neste texto maravilhosamente lúcido e simples, M.A.A.

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  2. ~ ~ Resta-me afirmar, simplesmente, que me congratulo com esta tocante, fiel e sincera homenagem à exemplar pedagoga e princesa portuguesa de letras. ~
    ~ ~ ~

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  3. A “republicação” da Graça é muito oportuna. Este tipo de mensagem deveria ser objeto de debate nas nossas escolas contrariando a “tabuada” do Crato.

    Bem(-)aventurados os simples porque o ar não lhes pesa nos ombros.

    Sentir-se o fardo que se exige ao outro, o que carrega as fragilidades, as imperfeições da decomposição do ser, é o horror da dependência. Sinto que seja este o pensamento da Luísa Dacosta.

    “Não podemos viver sem o bafo humano” e tanta gente a viver do bafo humano!!!???

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    1. Excelente texto para analisar em aulas de Educação para a Cidadania (ou Formação Cívica) que o "inteligente" (C)rato retirou dos currículos...

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  4. Um texto soberbo em uma paisagem simples e sábia de "grandes personagens" que vivem / viveram nos bastidores da humildade e assim se qualificaram para "seres detentores da pura sabedoria"!
    Excelente postagem, Graça, uma aula de vida! Parabéns!
    Abraço.

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  5. LUÍSA DACOSTA - Uma SENHORA fora de série! Paz à sua alma!

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  6. Vim aqui por causa do Leonardo da Vinci e soube da morte desta escritora do Norte de Portugal. Fiquei triste.

    "A vida ensinou-me que não podemos viver sozinhos. Ensinou-me que não podemos viver sem o bafo humano e que devemos fazer tudo para lutar por isso."

    Um texto muito emocionante. Senti bem de perto todas as suas palavras.

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    1. Muito emocionante, mesmo, ematejoca! E muito simples. Entendo bem o teu último parágrafo.
      Beijinho

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  8. "Só os grandes sabem ser simples"
    Dário Ayres de Almeida Freitas.

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    1. Obrigada, Jailda pelos comentários e pela visita.
      Eliminei os restantes comentários por serem repetidos. Espero que entenda.

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