Hoje é dia de celebrar Sophia de
Mello Breyner. Não porque um punhado de deputados decidiu (depois da “querela”
nacional de se guardar o que restou de Eusébio no lugar dos eméritos) fazer
trasladar os seus restos mortais para o Panteão Nacional, mas tão-somente
porque passam dez anos do seu desaparecimento físico.
Tantos poemas belos, tantos
textos narrativos, também eles pedaços de poesia única, tantos fragmentos
políticos poderia transcrever para aqui numa singela homenagem. Escolhi, porém,
passos de uma carta (uma de muitas) dirigida ao igualmente grande poeta Jorge
de Sena, em 10 de Junho de 1963.
(…) «Vivo entontecida, afogada em
problemas familiares, sem tempo para escrever, desmemoriada de tudo.
O Francisco e eu estamos os dois
bastante exaustos da vida dura. Eu começo a sentir-me incapaz de fazer tudo o
que quero fazer. Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco
filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante. Eu nunca aceitei que fosse
preciso escolher entre a poesia e a vida pois ambas me parecem a mesma coisa. Mas
agora sinto-me completamente incapaz de fazer tudo, de cumprir tudo o que me
aparece.
Há dias aconteceu-me isto:
comecei a escrever um poema à tarde, mas fui tão interrompida que desisti. À noite
tentei acabá-lo mas estava cansada de mais e dispersa em mil bocados. No dia
seguinte de manhã fui com a cozinheira à praça. E de repente no meio dos peixes,
das couves e das galinhas pensei que precisava de parar um minuto, um minuto de
férias sem cálculos nem contas. Então mandei à cozinheira que fosse ela
comprando os legumes e «fugi» para o café da praça e pedi um café ao balcão. Enquanto
estava a tomar o café lembrei-me do
poema e pedi ao empregado que me emprestasse um papel e um lápis. Foi assim que
consegui acabar o poema nem misto de pausa e de euforia. Depois fui a correr
comprar a fruta! Isto é a minha vida. Mas às vezes fica tudo mal escrito e mal
vivido.
Espanto-me como você pode
trabalhar tanto. (…)
Tenho andado muito solitária,
bastante desenganada de literatura e sinto muito a sua falta, neste deserto
intelectual. O saloismo da maioria dos intelectuais portugueses é quase
inacreditável e as fortes desilusões que tenho tido fazem-me perder o ânimo.
Desde que fui a Itália
apoderou-se de mim a ideia fixa de viajar. Fui à Madeira a convite da LVC fazer
uma conferência em que falei muito de si e li alguns poemas seus. Espero ir em
Setembro à Grécia, de automóvel, com a Agustina Bessa-Luís e o marido, se daqui
até lá arranjar dinheiro! Não penso noutra coisa! (…)
(in “Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena, Correspondência 1959 –
1978”;, Guerra e Paz Editores, Lisboa, 2010, pp 76 -78)
Nem quero imaginar o «saloismo» que Sophia iria achar em,
ao fim deste tempo todo e dadas as circunstâncias, trasladarem os seus restos
mortais para aquele triste, frio e descaracterizado Panteão!
(in JL, 26 Janeiro a 8 Fevereiro de 2011) |
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ResponderEliminar~ ~ ~ Bem fez Saramago que se conseguiu livrar do Panteão.
~ ~ Estranhamos a razão pela qual não recebeu esta homenagem logo
após a sua despedida desta terrinha de governantes cínicos e parolos.
~ ~ Contra o esquecimento, glória à brilhante poetisa e honra a uma
cidadã exemplar-- na escola, como bem referiu sua filha, Maria.
~ ~ ~ ~ Abraço. ~ ~ ~ ~
uma excelente escolha que confere "humanidade" ao mito onde se pretende "enclausurar" Sophia.
ResponderEliminarbeijo
Sem sombra de dúvida alguma, uma das melhores poetisas da Língua Portuguesa, aquela que querem maltratar !!!
ResponderEliminarNessa "prosa versificada"... encontrei muitos dos meus dissabores para conciliar tempo doméstico e literato! Bela lembrança sua, Graça!
ResponderEliminarAbraço.
Gracinhamiga
ResponderEliminarEu, que tive o privilégio e a honra de a conhecer pessoalmente e com ela conversar, volto a sentir tristeza pelo seu desaparecimento, mas satisfação por vê-la no local a que pertence, o Panteão, agora democratizado.
Qjs
"Quando eu morrer voltarei para buscar
ResponderEliminarOs instantes que não vivi junto do mar"
(Livro Sexto, 1962)
Como verá ela os instantes que agora se vivem?
Escolhi também um texto de 1963, completam-se....
ResponderEliminarE ainda por cima a ter que "aguentar" o discurso do PR!
ResponderEliminarAbraço
A melhor homenagem é ler-lhe a obra, mas folgo em a saber no Panteâo.
ResponderEliminarBons sonhos :)
ResponderEliminarConheço esta correspondência, palmo a palmo. Fui obrigada e gostei tanto que me obrigassem.
Ver Sophia por esta perspectiva é uma delícia! Torna-a mais humana, menos deusa.
Um beijo
Lídia
Olá, Graça
ResponderEliminarSou fã e sempre fui, desde que a conheci, já lá vão muitossssss anos, de Sophia.
Visitei o Panteão há dois anos atrás e, muito francamente, não sei se é o lugar indicado para Sophia repousar em Paz...
Mas quem sou eu para pensar tal coisa???
Amiga, respondi, "in loco", ao teu comentário lá na minha «CASA». Convido-te a ires lá ver se gostas...
Beijinhos
A Sophia vive sempre no coração dos que amam a sua Poesia e conhecem a Mulher-cidadã que era, em constante busca da Liberdade e da Justiça.
ResponderEliminarUm beijo.
A primeira carta que leio dela. Humanizou-a aos meus olhos. Gostaria de ler mais. Irei procurar aqui na biblioteca; talvez encontre.
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ResponderEliminarFiquei bastante surpreendida por encontrar apenas estes livros de Sophia de Mello Breyner aqui no sistema de bibliotecas:
Contos Exemplares
Mar: Antologia e
Livro Sexto
Os outros 3 são de referência e como tal não podem sair da biblioteca: Dual, Geografia:poemas e Antologia.
Querida Catarina, posso enviar-to a título de empréstimo e depois, quando leres, devolves-mo. Está bem?
ResponderEliminarBeijinhos
A monumentalidade está na sua obra. Não lhe ponham pedras em cima, leiam-na.
ResponderEliminarObrigada, Graça. Entretanto vou lendo os que vou levantar daqui a um ou dois dias e quando for a Portugal tentarei adquiri-lo.
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