«O mundo é de quem não sente. A condição especial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passamos ou que afasta do caminho; inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração de acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com as vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? (...)
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. «Tenho pena do tipo», disse-me ele. «Vai ficar na miséria.» Depois, acendendo o charuto, acrescentou: «Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim» - entendendo-se qualquer esmola - «eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.» (...)
Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se, sempre contra si mesmo.»
“O Livro do Desassossego”
Bernardo Soares
Um desassossego, sem dúvida, a roer os ossos, a alma e os bolsos dos portugueses, a toda a hora.
ResponderEliminarBernardo Soares a falar do presente na sua voz de passado. Não se aprende nada! Somos sempre iguais.
Um beijo
Se conseguíssemos exportar os políticos que nos têm (des)governado, para países ricos como a Alemanha ou França, talvez não fosse um mau negócio...
ResponderEliminarOi, Carol! Preciosa descrição essa! Há homens que se acham tão poderosos que esmagam sentimentos alheios em defesa do poder, do status, de ser o todo poderoso. Um dia a roleta da vida, muda! Dai, então...
ResponderEliminarAbraço, Célia.
Uns ganharão onde outros perderam.
ResponderEliminarQuerida Carol
ResponderEliminarJá não há mais palavras para tanta insensibilidade, tanto cortar por baixo, pelas raízes...o que irá restar depois desta tempestade?!:-((
Abraço