sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Um desafio



(da net como muitas outras imagens aqui expostas)


Terminei ontem a leitura de mais um livro de autoria portuguesa que já sabem que eu leio quase só autores nossos e mesmo assim sobram-me livros em pilhas. Transcrevo aqui algumas (poucas) passagens da excelente narrativa. Mas por muito que vos possa parecer pelo(s) conteúdo(s), não foi escrito no tempo dos Filipes, nem no tempo da monarquia tão pouco! É até nosso contemporâneo e algo actual...



Quem é capaz de adivinhar que livro que andei lendo?

 
“E pela docilidade, maneira menor, conseguem-nos eles atingir, manejar até, enganar; reconhecemo-lhes o jogo mas nele entramos por inépcia, hábito, também por astúcia. Astúcia, como única maneira que até há bem pouco tempo nos era de única valia, defesa.
E às vezes um pouco como desterradas nos sentimos; se sente a mulher quando não cumpre a figura imposta pelos tempos, não interpreta e assim tenha de procurar caminhos, outros «países» onde viva a diferença do seu, país dado pelo útero da mãe.
A que mãe fugimos? Que mãe nos fugiu? A quem podemos, acabamos sempre por dizer, assim como, aliás, a todo o factor proporcionante de paixão-amor:

«(...) já me vós fostes a vida,
agora me sois o dano;»


“Mãe:

Sabes bem que não quero voltar mais para casa. Estou cansada das tuas ajudas e da prisão em que assim me vais conseguindo ter.
Ao meu filho serei eu que hei-de criar e não tu, nem como tu a mim me criaste, assim o espero fazer sem conselhos teus
Peço-te que me deixes em paz.”


 
“Definitivamente proscrita só eu, que só a mulher é irredimível na sua desonra, não por ser sua desonra, mulher em si tão pouco conta, mas por escrito na lei que sua desonra é a do machos que deviam tê-la e não souberam guardá-la, consentindo assim numa ameaça à sua propriedade privada, desonra que só é lavável com o sangue da mulher rebelde. (...) É costume nos homens ser seu horizonte de absoluto o jogar com a vida da mulher, mas jogo sem risco aceite, senhor, como jogam as crianças com os sapos, que quando o bicho morre nem é pela mão da criança, é com seu espanto e mesmo com sua ofensa ao bicho que se morre assim.”


 
“Vazio sempre, o lugar a meu lado. Mulher sem homem, e sem força para transformar o mundo. E se alguém me chamou «mulher»? Como poderei ouvi-lo? Toda a luta se transforma em impotência? Tornei minha regra a fome e a sede? Minha vida foi fome e sede; mas onde poderia saciar-me? Regra é a justiça; por isso me neguei à injustiça. Fará sentido vida que é só recusa? Onde estão meus companheiros de luta? (...) Assim são os homens; amor de mulher para eles é entrega, obediência, serviço, gratidão. Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as sua famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. E a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto; para a mulher, o chefe, a política, o negócio, a propriedade, o lugar, o prazer (bem viciado), só existem através do homem. O guerreio tem o seu repouso; por enquanto nada há onde a mulher possa firmar-se e compensar-se das suas lutas. Chegará o dia? Até lá fica sem sentido a vida de mulheres como eu.”



“Teu modelo quero que seja nossa filha, igualmente pela doçura, pela discrição, pelo sorriso reconfortante nas horas mais difíceis na vida de sua casa; ainda aqui ela como tu, laboriosa abelha a cuidar a sua colmeia.
Como me envaideço de ti quando te vejo de avental a lavar a loiça, a passar as minhas camisas, ou a reparar-me os petiscos que sabes eu apreciar!”

 

16 comentários:

  1. Sabe, eu sou professora no Brasi, adorei esse blog, li algumas postagens.
    Gostei demais...esse livro que você está lendo deve ser de...ai ai, não sei, mas queria tanto saber.
    Aqui no Brasil, as mulheres estão mais liberadas, já não são tão submissas ao homem, deves saber disso, não é?
    Abraços de uma brasileira que já te segue e te admira.
    Sou a Mery.

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  2. Para já uma pergunta se me é permitida porque ainda não li esta excelente narrativa, pela amostragem:
    É uma escrita feita a partir de uma visão feminina?
    Aguardo a resposta! :-))

    Abraço

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  3. Não, não li.
    Parece muito intimista, de alguém que não vê mais do que aquilo que se passa à sua volta e que se vitimiza em cada página... Será?
    Quando leio algo assim, raramente chego ao fim...

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  4. Rosinha... a visão, ou melhor, as visões são femininas, são, sim senhora...

    Rogerito, Rogerito! Ai, ai, ai, cuidadito com essas opiniões antifeministas.... (eu por acaso também sou um bom bocado antifeminista...)

    Beijinhos

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  5. Seria uma clausura doméstica? Onde se domesticam filhos / marido e esposa? Será?? Decretada a liberdade já!! Não dá mais pra sermos escravos seja do modelo que for... nada justifica, não achas? Abraço, Célia.

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  6. Não de um homem, não de uma mulher, na realidade não se sabe garantidamente quem escreveu o quê, nesta NCP. É uma visão realista das épocas anteriores, naturalmente feminista , mas abrangendo, genericamente , relações entre opressor e oprimido, numa fase favoravelmente contestatária e que também produziu os seus efeitos na pretendida construção de novas mentalidades.
    ... e mais não digo, que estou em semi-férias. :))
    .

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  7. Pronto! O Rui já descobriu e eu não entendo a dica! :-))

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  8. Ainda arrisco outra pergunta mesmo não entendendo a dica do Rui da Bica...
    Tem o nome da minha irmã no título?...:-))
    É mesmo um vício a tentativa de entender os indícios, não é por espírito de competição, Carol, já sabes!
    Gosto destes desafios mesmo que não acerte...:-))

    Abraço

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  9. Pronto! Já lá cheguei...
    Estava a pensar pelo conteúdo numa das que visionam no feminino mas em relação a uma biografia que escreveu recentemente!
    Reconheci o estilo...
    De facto as iniciais que o Rui da Bica deixou também ajudaram! :-))
    NCP!

    Abraço

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  10. Apre! O menino Rui da Bica não acerta só nos locais e nas fotografias antigas... E a Rosinha também gosta destas "aventuras"... Eu cá só gosto e só me divirto quando sou eu a pôr os enigmas... Quando é para adivinhar, não tenho paciência ou então é mesmo incultura...

    Pois é isso mesmo: trata-se de excertos das Novas Cartas Portuguesas (NCP) das três Marias - a Maria Isabel Barreno, a Maria Teresa Horta e a Maria Velho da Costa - escrito e publicado em 1971 para grande escândalo da sociedade altamente repressiva da época. Muito bom! Muitíssimo bem escrito, de uma cultura elevadíssima e de um finíssimo sentido crítico, sentimental, liberal,social, anti-colonialista e, claro, pró-erótico. Muitas das poesias são de tal modo estudadas, monolíticas e inter-pessoais (da cumplicdade entre as três amigas/escritoras) que nos/me passam mesmo ao largo. Mas gostei muito de ler. E recomendo para quem tiver paciência.

    Para as minhas queridas amigas do Brasil, devo referir que esta crítica feminista teve a ver com o clima repressivo que as mulheres sempre viveram desde tempos imemoriais no nosso país (e não só) e que, ainda nos anos 70 viviam, começando então, aos poucos a libertar-se dele.

    Agradeço a participação de todos.

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  11. Rosinha, ainda chegaste a pensar que se tratava da biografia da D. Leonor, a Marquesa de Alorna, pela Mª Teresa Horta, mas essa inda não o li, se bem que já faça parte da dita pilha de livros para ler...

    Beijinhos.

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  12. Pois pensei...da autoria de uma das três Marias...! :-))
    E não é que tenho uma edição de 1974 da editora Futura que já não existe?
    E não é que já tinha lido esta obra?
    A memória é um caso sério! :-))

    Abraço

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