segunda-feira, 25 de abril de 2011

E foi assim que tudo começou...



25-Abril (quinta). Às sete da manhã, um amigo telefona-me: «Ouça a rádio.» Ouço sem entender: rebentou a Revolução. A Revolução? Que Revolução? Por fim lá vou compreendendo. Toda manhã a rádio nos vai esclarecendo com notícias. Passámos o dia à escuta. Será possível?


26-Abril (sexta). Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e de sentir.


10-Maio (sexta). Seria útil dar o balanço de quinze dias de revolução. Mas tudo se mantém ainda confuso. No entanto, alguma coisa se vai esclarecendo: de um lado, a ideia de que a revolução é para o interesse de cada um de nós, singularizado no esquecimento dos outros; do outro lado, a visível manifestação a todos os níveis, de núcleos comunistas. Seria uma revolução PC? Greves. Já começaram. Que não se propaguem em epidemia e gerem o caos. Para onde vamos? Por sobre tudo, uma certeza: os militares continuam de armas aperradas.

*

Hoje no liceu correu um manifesto dos meninos. Curioso: o professor foi (um)a vítima do fascismo. Mas é sobre ele que incide a exacerbação dos moços. No fundo, o seu programa inconfessável é simples: não estudar, passar o ano e ter o professor às ordens como têm em casa as sopeiras. Exigir dos professores boas notas, muito saber, como à criada exigem que lhes traga o café ou o penico. E é isto. Com fascismo ou sem ele, o professor continua o ser escravo que sempre foi.

(... ...)

22-Maio (quarta). Quase como que por obrigação – escrevo. Na realidade, só há tempo para ler os jornais, ouvir as notícias da Rádio e da TV. Viver passivamente, aberto ao que vai acontecendo, sem a energia ou capacidade para nos sobrepormos a isso e reflectirmos. Em todo o caso, a excitação vai acalmando. Como nunca, é hoje possível condicionar a opinião pública através sobretudo da TV. Assim se vai estabelecendo aí ou daí um equilíbrio entre a reivindicação desenfreada e estúpida e a reflexão sobre a precária economia nacional. Todo o futuro da revolução depende desse equilíbrio. Mas pergunto-me até onde as massas o aceitarão. De momento o PC age favoravelmente sobre os trabalhadores, frisando-lhes que as reivindicações desordenadas favorecem o caos e a reacção. Entretanto os extremistas replicam que a moderação (condicionamento de greves, de reivindicações, etc.) é que favorece a reacção, o capitalismo e aí o «reformismo» do mesmo PC. Mas para já, o grave problema da guerra colonial. Os brancos de Moçambique (duzentos mil contra oito milhões de negros) agitam-se sob a influência do exemplo racista da Rodésia e África do Sul. Muitos deles (e de Angola) regressam à Metrópole. Que trazem eles, além das necessidades de instalação? (... ...)

(Vergílio Ferreira, in Conta-Corrente 1, pág. 187-188)

Também eu fui avisada por telefone antes das sete da manhã pela nossa assistente de estágio de Inglês (a minha querida e saudosa O. F.) que não fosse para Lisboa porque havia uma revolução. Estava, à época,  a fazer estágio na Escola Preparatória de Paula Vicente, no Restelo, vivendo ainda em Sintra. Nesse dia não saí de casa, também agarrada à telefonia e ao telefone que o meu jovem marido estava na tropa na Figueira da Foz. No dia seguinte, já fui à escola e demos aulas. Mas vivia-se um ambiente tão estranho! Parecia deslocarmo-nos sobre nuvens, depois de lançados no ar sem para-quedas. Tal não foi a surpresa. Foi tal e qual Vergílio Ferreira tão simplesmente escreveu nas suas entradas dos dias 25 e 26: uma surpresa, Uma emoção violentíssima, sem sabermos o que fazer nem o que pensar. Aqueles primeiros dias foram um verdadeiro estremeção nas nossas vidas. Quase físico. Depois da "vida inteira deformada pelo medo".  E é isso que os nossos jovens não sabem o que é (e ainda bem!) e dizem-se "à rasca"... No dia 27, sábado, fomos para Lisboa, de olhos bem arregalados, respirar o novo ar e ver como as faces das pessoas se coloriam em sorrisos. E, de tarde, fomos ao Tivoli ver "A Golpada". Terá sido premonitório?....
 
E os meus queridos leitores, querem lembrar aqui como passaram aquele dia de todos os prodígios?
 

10 comentários:

  1. Não estava cá:)

    Mas olhando para hoje...Também não me apetece estar cá:)

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  2. Ainda ontem, ao jantar, conversava com os meus rebentos sobre o assunto. Andava no Liceu (antigo 5º ano) e a única memória que tenho desse dia é estar encostado à "parede dos rapazes" do meu Colégio, com um grupo de amigos (rapazes, que as meninas estavam na sala delas), a perna direita dobrada para que a bota encostasse à parede, naquela pose da rapaziada que já se julgava alguém, a conversar sobre uma tal de Revolução que estava a decorrer a 300 e tal kms, na altura várias horas de caminho até Lisboa. O interior da Beira Baixa era mesmo interior e as notícias não tinham aquele impacto imediato que hoje têm. Fosse o que fosse que estivesse a suceder, presumíamos que as consequências iam durar algum tempo até chegar a nós. Era muito longe e mesmo em termos de consciência política estávamos muito longe de perceber o que se passava a sério, embora na minha Terra houvesse grandes lutadores contra o anterior regime, com rebentos ainda hoje na política activa (falámos há dias de um deles, se te lembras ainda). Agora o tempo que veio a seguir é que foi empolgante! Que saudades das minhas aulas de Introdução à Política, leccionadas pelo Padre da Terra, Homem de espírito aberto e muitíssimo inteligente. Cheguei a redigir testes de 15 páginas, imagino que com muita "palha", para desespero do Professor!... Valeu a pena viver esses tempos e tenho quase a certeza absoluta de que, não fosse o 25 de Abril, não estaria hoje aqui a escrever. Claro que nem tudo correu bem e muitos sonhos estão ainda por realizar, mas era impossível continuarmos como estávamos. O Regime caiu de podre, certo?!... Temos é que continuar a lutar para que os ideais mais nobres de Abril se realizem e o Futuro seja melhor para todos!

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  3. O meu 25 de Abril foi em Santarém onde estava a estudar. Às 7h30, na paragem do autocarro uma colega disse-me que não havia aulas, Zeca Afonso na Rádio, os correios ocupados pelo exército. Fui até ao café para saber + novidades. Os tanques passavam nas ruas a caminho de Lisboa e pela 1ª vez li a internacional, que andavam a distribuir por lá fotocopiada. Fiquei na expectativa do que iria acontecer...
    Do primeiro 1º de Maio, lembro-me que tudo fechou, até os cafés e como não estava em casa passei fome de rabo. Só havia uns compadres a oferecer vinho nas ruas. Todos festejavam o fim do fascismo e a liberdade.
    Com o passar dos dias as mudanças foram acontecendo... umas boas, outras nem por isso...
    Nessa altura já tinha alguma consciência política e foi com pena que vi alguns parasitas aproveitarem-se da revolução.

    Eu vivi assim o 25 de Abril.

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  4. Meti-me no carro dez minutos antes das 8 da manhã, o parceiro ao lado e o filhote atrás. Ligo o rádio uns metros antes de o deixar no emprego...
    Ouvimos a música, olhámos um para o outro e ficámos num excitação incrível.
    Aconteceu qualquer coisa...
    Ainda ouvimos juntos o comunicado das Forças Armadas.
    Saiu do carro e eu arranquei para o JI, ainda distante, onde iria deixar o filhote, depois segui para Leiria para a velha D. Dinis.
    Ao chegar perguntei ao Sr. Director, que ainda conheceste, se já se sabiam pormenores...
    Estávamos todos ansiosos!
    A essa hora ainda não se sabia se as coisas estavam a correr bem. Apesar de tudo, o dia de aulas passou-se dentro da normalidade mas no Liceu não houve aulas...
    E foi um enorme desassossego durante muito tempo, temperado de uma imensa alegria e sem qualquer perturbação no trabalho.
    Continuo a achar que valeu a pena e continuo a acreditar nos valores de Abril.

    Abraço

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  5. Posso meter a minha colher?
    Pois bem:- então aqui vai. Eram duas horas da manhã, estava em Angola( não era tropa), estavamos reunidos numa patuscada em que um colega que fazia anos estava a fazer uma omolete ao flanbom. Estavamos a beberricar e, o Tomás, assim se chamava o colega, tinha por hábito ouvir a rádio RSA ou a rádio Moscovo, num transistor de ondas ultra curtas. Repentinamente, ouve-se um grito:- Escutem...Um golpe de estado em Portugal... Ouvido alerta e, o resto da noite passado entre a BBC, Rádio Moscovo, RSA e Rádio Club Português. Grande bebedeira, no outro dia ninguém se lembrou que tinha trabalho, mas mesmo assim nada se perdeu.
    Curiosamente, minha mulher e, os meus dois rebentos tinham enbarcado para Portugal.Só soube da sua chegada a Lisboa 3 dias depois, via telegrama enviado da fragata João Belo que transmitia as notícias vindas do "puto". Não havia internet, nem celular nem tãopouco um reles telefone.A aflição era grande mas, a esperança que dias melhores estariam para chegar, abafava as mágoas. Mesmo assim o meu regresso só se fez no dia 17 de Novembro do mesmo ano.
    O que achamos curioso é que no local, mais ninguém sabia de nada e, não havia notícias de Lisboa. Até houve quem nos apelidasse de mentirosos.
    São pasados 37 anos que os tenho bem presentes. Aqui vos deixo este extenso comentário. Um abraço e, ABRIL SEMPRE. VAMOS ULTRAPASSAR A CRISE.

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  6. De Oeiras a Alcântara, o comboio apenas se moveu. Lá dentro, àquela hora, apinhados e ensonados partiam para mais um dia do trabalho os dos costume. Acho que era eu o único estranho, pois não usava normalmente o transporte publico. Desci, em Alcântara, e comprei o jornal. Outros o faziam e comentavam:"Passou-se qualquer coisa e lá para a Baixa deve haver confusão. Tem passado tanta tropa... até tanques". Não liguei. Sabia que a armada da Nato estava ao largo e haveria exercícios também em terra. Seria isso certamente. Apanhei a camioneta para a outra margem. Pouca gente. Alguns com rádios...Passa-se qualquer coisa. Concluímos. Desci em Paio Pires e entrei na Siderurgia. Lá dentro confirmei e depois ouvi o comunicado numero não sei quantos do Movimento das Forças Armadas, dizendo coisas e recomendado que regressássemos a nossas casas. Nada feito sem transportes. Juntámo-nos. Sonhámos em conjunto sonhos. Uns confirmaram-se meses depois, outros não. Dos confirmados, alguns estão ficando pelo caminho. Hoje abro o jornal “O Público” e releio a história.

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  7. Carol, quem viveu na carne e de olhos abertos "o dia inicial inteiro e limpo" como diz Sophia, nunca o esquecerá. Mas as memórias misturam-se com emoções, com desilusões, com desejos e com esperanças, os olhos ficam rasos de lágrimas e prefiro deixar ficar tudo isto dentro do coração...
    Obrigada pelo teu testemunho:))

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  8. Nesse tempo era um jovem, com mais borbulhas que pelos na cara, sonhador...

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  9. Obrigada, meus amigos, pelos vossos relatos. Fomos mesmo apanhados de surpresa! E que bela surpresa!

    M! como tu és pequenina! Da idade das minhas filhas! E o Rafeiro, também, tão pequenino!

    Quanto ao Luís e ao Rui, já tinham alguma noção das coisas. Já não são/eram tão pequeninos!

    Mesmo com as dificuldades financeiras que enfrentamos (e isso já vem do tempo de D. Sebastião, com altos e baixos...)a liberdade de que gozamos é impagável! Muito temos de agradecer ao Otelo, ao Salgueiro Maia e a muitos, muitos outros "loucos" que no-la ofereceram.

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