Assim que deu com os olhos nos
meus, baixou a cabeça, desviou o olhar, rodou os ombros. Reconheci-o
imediatamente, mas correspondi ao afastamento. Há anos, bastos anos, entrou
insofrido pelo portão lá da escola, sem atender ao porteiro, cego que ia, e
pregou uma (nem sei dizer se foi só uma) bofetada num miúdo. O sururu foi
enorme. O porteiro ligou ato contínuo para o gabinete do Conselho, enquanto o
agredido, nosso aluno, rapidamente se apresentou à nossa porta para fazer
queixa. Eu não podia permitir que um encarregado de educação entrasse pela
escola dentro e batesse num aluno que nem sequer era seu filho.
Identificados agressor e
agredido, polícia metida ao barulho, grande barafunda. Os miúdos envolvidos já
eram grandinhos, catorze ou quinze anos; a mãe do agredido, muito zangada e
cheia de razão: apresenta queixa, não apresenta queixa…
Convoquei o pai violento que não
se mostrou muito disponível para falar comigo. Instei e lá se convenceu. Veio
acompanhado da mulher (minha conhecida, muito conhecida…).
Porquê? O filho sofria de um
pequeno atraso de desenvolvimento (que ainda assim não o impedia de fazer a sua
escolaridade normal com as adaptações que lhe convinham e a que tinha direito)
e, por um qualquer motivo que já esqueci, fora humilhado, agredido mesmo por um
colega. Quando ficou a saber, reagiu a quente, muito a quente e os travões da
convenção não obedeceram ou nem sequer foram acionados… «Pois, mas aqui na escola
há responsáveis para mediar os conflitos e aplicar sanções. Não há espaço para
justiceiros à americana…» disse-lhe.
Silêncio. Espaço. Mais silêncio.
E então lágrimas a rolarem pela cara de um homem «forte e de barba rija»… E,
depois de mais silêncio (em que o meu coração se sentiu apertadinho,
apertadinho mesmo) fiquei a saber: ex comando de guerra (da inexplicável guerra
colonial) a sofrer há muito de stress pós traumático crónico…
Não interessa contar aqui nem
agora como a situação se resolveu. Resolveu-se. A vergonha, o constrangimento
por parte daquele homem, porém, foi enorme…
… não admira que anos e anos
depois, evitasse o meu olhar, a minha proximidade, apesar de eu ter cumprimentado
e conversado afavelmente com a minha amiga, sua mulher.
A vergonha é, por certo, um sentimento "tramado".
ResponderEliminarSirva pelo menos para fazer pensar.
Lídia
E faz pensar...
EliminarUm quadro com as características de Vincent van Gogh. Vou confirmar. Nunca tinha visto este de um homem que me parece acabrunhado.
ResponderEliminarSituações dessas, por vezes, acontecem. As situações de “troca palavra” entre pais portugueses é tb frequente. Em qualquer país onde se encontrem, não esquecem a sua “cultura”! É uma pena, pois deixam uma má reputação para a comunidade portuguesa em geral.
O quadro "comprei-o" ali na net por um Van Gogh...
EliminarOs pais portugueses pois... são assim. Latinos, sangue na guelra, falta de maneiras...
Eis um bom tema para uma aula
ResponderEliminarsimule-se o caso
e oiçam-se as crianças
Vai ver as surpresas...
(não troço nem brinco. nas tv as crianças são confrontadas com piores julgamentos)
Poderia fazer-se nas aulas de Educação para a Cidadania que o (C)rato eliminou dos planos de estudos...
EliminarEssas marcas da guerra nunca desaparecerão, Graça :(
ResponderEliminarBeijinhos
São profundas por de mais... Um verdadeiro drama interior.
EliminarBeijinho.
Não terá sido só da Perturbação Pós – Stress Traumático de Guerra. Coisas desse género nascem e morrem com a pessoa. Nunca dão o braço a torcer...
ResponderEliminarUm arreigado sentimento de poder que pode ser e é potenciado por situações traumáticas...
EliminarHá muitos e muitos traumatizados de guerra que passam despercebidos na sociedade...
ResponderEliminarMuitos ficaram presos definitivamente ao tratamento psiquiátrico, mais ou menos intenso.
A este, acrescia-se a dor profunda de ter um filho com debilidade mental...
Penso que te evitou por vergonha, que neste caso, é um sentimento elevado.
Difícil foi a necessidade imperiosa que houve em julgá-lo...
~~~ Beijinhos, Graça ~~~
Claro que me evitou por vergonha, Majo. E eu respeitei esse sentimentos: baixei os olhos, evitei «vê-lo».
EliminarSituação muito dura...
Beijinhos
Há situações incompreensíveis aos olhos de terceiros ! Claro que bater num miúdo, seja qual for o motivo é só de loucos, ou de muito doentes.
ResponderEliminarPassou-se há 40 anos uma situação comigo, que nunca cheguei a entender como chegou àquele ponto, pacífico como sou ! (???)
Acontece que o meu filho de 10 anos (na altura) se tinha pegado com outro da mesma idade num parque de campismo onde estávamos.
Estava eu nos balneários com o meu filho e a certa altura, entra um indivíduo matulão que, sem se aperceber que eu era o pai, se dirige ao meu filho e lhe grita : "Olha lá, ó miúdo, sabes que te vou dar um par de chapos por te teres metido como meu filho ?" ...
Ouvi aquilo, fiquei de todas as cores, deixei de ver e de raciocinar e só via um clarão à minha frente e disse-lhe : mas tu fazes o quê ??? ... Se pões um dedo que seja no meu filho, eu MATOOO-TE ! ... Ouviste ?... MATOOO-TE !
A grande verdade é que eu estava nessa altura disposto a matá-lo mesmo, o que poderia ter acontecido se ele tocasse no meu filho !
Há certas ocasiões em que poderemos reagir da maneira mais estranha que se possa imaginar, deixando de sermos nós próprios e assumindo outra personalidade que desconhecíamos até determinado momento !
:((
Concordo contigo, Rui há situações que só mesmo quando as pessoas as vivem é que sabem o que fariam...
Eliminarbjs
Há reações que dificilmente podemos evitar e muito menos explicar, Rui.
EliminarAgradeço-te por partilhares connosco esse episódio difícil para ti.
Beijinhos
forte...
ResponderEliminarMuito...
EliminarFilhos, a debilidade de qualquer pai...
ResponderEliminarRacionalmente todos sabemos o que fazer mas pelo que se pode ver/ler é fácil as coisas sairem dos eixos.
Neste caso, ter vergonha é assumir que esteve mal e que não esqueceu e que aprendeu.
xx
Concordo, papoila. Não foi fácil para ele quando aconteceu e continua a não ser.
EliminarBeijinhos.
Quando "mexem" com os nossos filhos viramos bicho.
ResponderEliminarHá muitos anos a minha filha também teve alguns problemas. Tinha uma colega da escola que lhe fazia a vida negra. Desde gozar, chamar nomes e por vezes uns encontrões.
Depois de eu ver que a coisa não parava acabei por ir à escola falar com a miúda.
Fui um bocadito bruta a falar, mas foi remédio santo