quinta-feira, 27 de junho de 2013

Laranjas às metades



Ao meio da manhã cheguei a casa já cheia de calor e cortei uma laranja ao meio, com fazia em garota, e comi ambas as metades às dentadas. Era tão doce e tão sumarenta que cortei outra em metades e fiz o mesmo. É um comportamento infantil e pouco polido daqueles que não se têm à mesa e que só me permito quando estou sozinha ou em privado. 

Adoro laranjas desde que me conheço. Agora já não porque há quase todas as frutas durante todo o ano mas, quando era garota, era uma fruta de inverno. Quando morava em Sintra, a minha mãe era professora e administrava uma escola de beneficência para meninas que pertencia e era mantida por uma senhora muito rica que não tinha filhos e gostava muito de crianças. Era uma pessoa mesmo muito rica, daquelas que já em inícios de 60 conduzia um Porsche Carrera azul escuro, lindo, mas que também tinha um Bentley e outros carritos de serviço. Vinha à escola uma ou duas vezes por mês assistir às aulas das meninas e, embora algumas vezes viesse no seu Porsche e trouxesse vestido o seu vison ou o seu casaco de pele de leopardo, no qual as meninas mais novinhas faziam festinhas como de um gato se tratasse, nunca a vimos com ar de quem fazia a caridadezinha mas muito pelo contrário, tinha sempre um olhar de grande carinho e complacência para com os grupos de crianças – cerca de 40 em cada ano letivo – que ali aprendiam desde as primeiras letras aos bordados sem pagarem um único tostão. De facto, tudo era custeado por aquela senhora que era mesmo muito rica mas que parecia ir ali buscar o sustentáculo para a sua felicidade.


Casa onde era a escola e onde nós vivíamos

As meninas almoçavam na escola onde lhes era servida uma sopa forte e suculenta, pão e fruta e as que podiam traziam o conduto que era aquecido no enorme fogão de lenha onde todos os dias eram feitos dois grandes panelões de sopa. Servia-se também a «sopa dos pobres» a um grupo de cerca de vinte pessoas de idade sem rendimentos que diariamente levavam sopa e um pão de segunda (os mais velhos dos meus amigos sabem do que estou a falar). Uma vez por semana, o motorista da diretora da escola trazia de uma das quintas da senhora sacos de batatas, feijão, couves, cenouras, cebolas e sei lá o que mais e, também para meu regalo, sacos de laranjas grande e deliciosas para os almoços que eram servidos. Escusado será dizer que a senhora professora (a minha mãe) também tinha direito à sopa e à fruta que vinha das quintas e aí me regalava com algumas laranjas. Sabem os que sabem que o clima em Sintra é – ou era – quase londrino, frio e húmido e o casarão onde funcionava a escola e em que nós morávamos era bem gelado e sem aquecimento. Então a cozinheira, a nossa querida amiga Menina Dionísia – naquele tempo, as senhoras de meia-idade que não eram casadas ou que não tinham direito ao tratamento por «senhora dona» eram tratadas por «meninas» - que era como que da nossa família, quando chegava a mais ou menos a hora de eu e o meu primo-irmão chegarmos do colégio, punha algumas laranjas em cima do fogão a lenha a perderem o frio para as podermos comer sem estarem geladas…

Continuei toda a vida a deliciar-me com laranjas chupando-as às metades, ou às rodelas, ou em sumo, ou a sua casca cristalizada, ou em bolo, ou em doce (de laranja amarga a que os ingleses chamam de «marmelade».)

Nas muitas vezes que almocei no refeitório da “minha” escola, uma das cozinheiras que por vezes servia os pratos no self-service, pessoa de feitio difícil mas que me tratava com certa deferência, oferecia-me sobremesas doces, mousse ou pudim ou arroz doce, pedindo eu que mas trocasse por uma laranja. E ela, mulher de esquerda, por graça perguntava: “Gosta dos laranjas, Srª D. Graça?” Ao que eu respondia: “De laranjas, D. (…)! Os laranjas até os comia às dentadas…” 

É mesmo isso: Estes laranjas mereciam mesmo era serem comidos às dentadas!

15 comentários:

  1. Também me lembro de uma tia, que me ensinou a comer laranjas assim. Mas fora da mesa, claro... :)

    Também me lembro de uma "menina" Júlia, que tinha a idade da minha avó... Também ela trabalhou toda a vida numa escola particular, suponho que como cozinheira e contínua. Era uma amor de pessoa!

    Enfim, boa recordações. :)

    Mas não acho boa ideia comeres os laranjas à dentada. Eles devem ser demasiado indigestos... :P

    Beijocas!

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  2. Tal como a Teté, não te aconselho a dar dentadas a esses laranjas.
    Gostei de ler estas tuas reminiscências...
    Abraço

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  3. Políticas à parte, também adoro comer laranjas... e sou bastante versátil na forma de as comer!

    Se tenho sede, faço como aprendi com a minha avó... descasco-as pelando apenas a parte fina da casca deixando intacta a parte branca. Só então as corto em metades para poder chupar o seu sumo e não ficar com o gosto amargo da casca na boca.

    Se tenho fome e pressa, descasco-as tirando todos os vestígios de casca, separo em duas metades e... glup glup (numa hora assim também não posso ter ninguém por perto... porque não é nada elegante comer uma laranja assim!)

    Se é para um lanche com tempo, e até em família, depois de totalmente descascadas corto-as em rodelas e sirvo...
    Mas se for para uma sobremesa para comer fruta à colher, pelo-as completamente com uma técnica que aprendi com a Filipa Vacondeus e os seus gomos sumarentos, e sem qualquer pele, desfazem-se na boca!

    E pronto... a minha preleção sobre laranjas já vai longa!
    Tenho-as no frigorífico para amanhã de manhã fazer sumo... pois de manhã são ouro!


    Beijinhos e boa noite
    (^^)

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  4. Gostei das tuas memórias e de saber que a senhora , embora de carro e casaco de pele, sentia carinho real pelas crianças.

    Quanto a comer fedelhos laranjas à dentada, nem pensar: teria uma indigestão.Preferi fazê-los provar cavalo-marinho, rrss

    Dorme bem

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  5. Os mais novos saberão como é bom comer laranjas às metades? Eu gosto tanto que até como o miolo (se estiver sozinha) quando faço sumo, apesar de o espremedor deixar pouca coisa!
    Hoje o "post" deixou-me a rir com a perspectiva do destino dos laranjas! Era bem feito!

    Um abraço

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  6. Estas laranjas são amargas e sem sumo...
    Fala das boas, presumo.

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  7. Como Sintrense, que conheceu a tua casa em toda a sua plenitude, escola a funcionar, aquele entra e sai de alunas, durante anos a fio, é um verdadeiro dó de alma ver aquela casa naquele estado de degradação.
    Das laranjas só gosto do fruto própriamente dito.

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  8. De seus trocadilhos às metáforas, fiz um saudável suco de laranja para reorganizar minhas ideias! Principalmente, em se tratando 'de laranjas'...
    Bjs. Célia.

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  9. Também podiam ser postos "a aquecer" num sítio qualquer, talvez no Tarrafal...se Cabo Verde não se importasse! :-))

    Abraço

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  10. Às dentadas? Isso era dar cabo dos dentes. Faça um bom sumo... e sirva-o como a vingança.
    :)

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  11. Dos dois tipos de "laranjas" que nos fala, ficamos a saber a formula com saboreia uma delas... Mas pelo meio conta uma linda história dos anos 60, no tempo em que havia senhoras endinheiradas, que tinham gosto em repartir com os outros. Gostei da sua história! É sempre bom recordar, sobretudo quando são boas recordações como esta.

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  12. Muito gira a maneira como contas a história! e olha vou comer uma laranja á dentada...
    Bjs

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  13. Não sou apreciadora de laranjas! Mas se for preciso dar dentadas em algumas, conta comigo :))

    Beijo

    Laura

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  14. Tu é que me compreendes, Laura!...

    Essa de irem aquecer para o Tarrafal também era uma boa ideia, Leo!...

    Obrigada, Manuel Tomaz, Caínhas e a todos!

    mlu, também faço o mesmo quando espremo as laranjas... (sem ninguém ver, claro!)

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  15. Nunca comi laranjas às metades mas gosto de as comer cortadas em gomos como se fossem fatias de melão. Só que cada fatia vai numa dentada só. :)

    Gostei muito da história.

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