Ao
meio da manhã cheguei a casa já cheia de calor e cortei uma laranja ao meio,
com fazia em garota, e comi ambas as metades às dentadas. Era tão doce e tão
sumarenta que cortei outra em metades e fiz o mesmo. É um comportamento
infantil e pouco polido daqueles que não se têm à mesa e que só me permito
quando estou sozinha ou em privado.
Adoro laranjas desde que me conheço. Agora já não porque há quase todas
as frutas durante todo o ano mas, quando era garota, era uma fruta de inverno. Quando
morava em Sintra, a minha mãe era professora e administrava uma escola de beneficência
para meninas que pertencia e era mantida por uma senhora muito rica que não
tinha filhos e gostava muito de crianças. Era uma pessoa mesmo muito rica,
daquelas que já em inícios de 60 conduzia um Porsche Carrera azul escuro, lindo,
mas que também tinha um Bentley e outros carritos de serviço. Vinha à escola uma
ou duas vezes por mês assistir às aulas das meninas e, embora algumas vezes
viesse no seu Porsche e trouxesse vestido o seu vison ou o seu casaco de pele
de leopardo, no qual as meninas mais novinhas faziam festinhas como de um gato
se tratasse, nunca a vimos com ar de quem fazia a caridadezinha mas muito pelo
contrário, tinha sempre um olhar de grande carinho e complacência para com os
grupos de crianças – cerca de 40 em cada ano letivo – que ali aprendiam desde
as primeiras letras aos bordados sem pagarem um único tostão. De facto, tudo
era custeado por aquela senhora que era mesmo muito rica mas que parecia ir ali
buscar o sustentáculo para a sua felicidade.
Casa onde era a escola e onde nós vivíamos |
As
meninas almoçavam na escola onde lhes era servida uma sopa forte e suculenta,
pão e fruta e as que podiam traziam o conduto que era aquecido no enorme fogão
de lenha onde todos os dias eram feitos dois grandes panelões de sopa.
Servia-se também a «sopa dos pobres» a um grupo de cerca de vinte pessoas de
idade sem rendimentos que diariamente levavam sopa e um pão de segunda (os mais
velhos dos meus amigos sabem do que estou a falar). Uma vez por semana, o
motorista da diretora da escola trazia de uma das quintas da senhora sacos de batatas,
feijão, couves, cenouras, cebolas e sei lá o que mais e, também para meu regalo,
sacos de laranjas grande e deliciosas para os almoços que eram servidos. Escusado
será dizer que a senhora professora (a minha mãe) também tinha direito à sopa e
à fruta que vinha das quintas e aí me regalava com algumas laranjas. Sabem os
que sabem que o clima em Sintra é – ou era – quase londrino, frio e húmido e o
casarão onde funcionava a escola e em que nós morávamos era bem gelado e sem
aquecimento. Então a cozinheira, a nossa querida amiga Menina Dionísia –
naquele tempo, as senhoras de meia-idade que não eram casadas ou que não tinham
direito ao tratamento por «senhora dona» eram tratadas por «meninas» - que era
como que da nossa família, quando chegava a mais ou menos a hora de eu e o meu
primo-irmão chegarmos do colégio, punha algumas laranjas em cima do fogão a
lenha a perderem o frio para as podermos comer sem estarem geladas…
Continuei
toda a vida a deliciar-me com laranjas chupando-as às metades, ou às rodelas,
ou em sumo, ou a sua casca cristalizada, ou em bolo, ou em doce (de laranja
amarga a que os ingleses chamam de «marmelade».)
Nas
muitas vezes que almocei no refeitório da “minha” escola, uma das cozinheiras
que por vezes servia os pratos no self-service, pessoa de feitio difícil mas
que me tratava com certa deferência, oferecia-me sobremesas doces, mousse ou
pudim ou arroz doce, pedindo eu que mas trocasse por uma laranja. E ela, mulher
de esquerda, por graça perguntava: “Gosta dos laranjas, Srª D. Graça?” Ao que
eu respondia: “De laranjas, D. (…)! Os laranjas até os comia às dentadas…”
É
mesmo isso: Estes laranjas mereciam mesmo era serem comidos às dentadas!
Também me lembro de uma tia, que me ensinou a comer laranjas assim. Mas fora da mesa, claro... :)
ResponderEliminarTambém me lembro de uma "menina" Júlia, que tinha a idade da minha avó... Também ela trabalhou toda a vida numa escola particular, suponho que como cozinheira e contínua. Era uma amor de pessoa!
Enfim, boa recordações. :)
Mas não acho boa ideia comeres os laranjas à dentada. Eles devem ser demasiado indigestos... :P
Beijocas!
Tal como a Teté, não te aconselho a dar dentadas a esses laranjas.
ResponderEliminarGostei de ler estas tuas reminiscências...
Abraço
ResponderEliminarPolíticas à parte, também adoro comer laranjas... e sou bastante versátil na forma de as comer!
Se tenho sede, faço como aprendi com a minha avó... descasco-as pelando apenas a parte fina da casca deixando intacta a parte branca. Só então as corto em metades para poder chupar o seu sumo e não ficar com o gosto amargo da casca na boca.
Se tenho fome e pressa, descasco-as tirando todos os vestígios de casca, separo em duas metades e... glup glup (numa hora assim também não posso ter ninguém por perto... porque não é nada elegante comer uma laranja assim!)
Se é para um lanche com tempo, e até em família, depois de totalmente descascadas corto-as em rodelas e sirvo...
Mas se for para uma sobremesa para comer fruta à colher, pelo-as completamente com uma técnica que aprendi com a Filipa Vacondeus e os seus gomos sumarentos, e sem qualquer pele, desfazem-se na boca!
E pronto... a minha preleção sobre laranjas já vai longa!
Tenho-as no frigorífico para amanhã de manhã fazer sumo... pois de manhã são ouro!
Beijinhos e boa noite
(^^)
Gostei das tuas memórias e de saber que a senhora , embora de carro e casaco de pele, sentia carinho real pelas crianças.
ResponderEliminarQuanto a comer fedelhos laranjas à dentada, nem pensar: teria uma indigestão.Preferi fazê-los provar cavalo-marinho, rrss
Dorme bem
Os mais novos saberão como é bom comer laranjas às metades? Eu gosto tanto que até como o miolo (se estiver sozinha) quando faço sumo, apesar de o espremedor deixar pouca coisa!
ResponderEliminarHoje o "post" deixou-me a rir com a perspectiva do destino dos laranjas! Era bem feito!
Um abraço
Estas laranjas são amargas e sem sumo...
ResponderEliminarFala das boas, presumo.
Como Sintrense, que conheceu a tua casa em toda a sua plenitude, escola a funcionar, aquele entra e sai de alunas, durante anos a fio, é um verdadeiro dó de alma ver aquela casa naquele estado de degradação.
ResponderEliminarDas laranjas só gosto do fruto própriamente dito.
De seus trocadilhos às metáforas, fiz um saudável suco de laranja para reorganizar minhas ideias! Principalmente, em se tratando 'de laranjas'...
ResponderEliminarBjs. Célia.
Também podiam ser postos "a aquecer" num sítio qualquer, talvez no Tarrafal...se Cabo Verde não se importasse! :-))
ResponderEliminarAbraço
Às dentadas? Isso era dar cabo dos dentes. Faça um bom sumo... e sirva-o como a vingança.
ResponderEliminar:)
Dos dois tipos de "laranjas" que nos fala, ficamos a saber a formula com saboreia uma delas... Mas pelo meio conta uma linda história dos anos 60, no tempo em que havia senhoras endinheiradas, que tinham gosto em repartir com os outros. Gostei da sua história! É sempre bom recordar, sobretudo quando são boas recordações como esta.
ResponderEliminarMuito gira a maneira como contas a história! e olha vou comer uma laranja á dentada...
ResponderEliminarBjs
ResponderEliminarNão sou apreciadora de laranjas! Mas se for preciso dar dentadas em algumas, conta comigo :))
Beijo
Laura
Tu é que me compreendes, Laura!...
ResponderEliminarEssa de irem aquecer para o Tarrafal também era uma boa ideia, Leo!...
Obrigada, Manuel Tomaz, Caínhas e a todos!
mlu, também faço o mesmo quando espremo as laranjas... (sem ninguém ver, claro!)
Nunca comi laranjas às metades mas gosto de as comer cortadas em gomos como se fossem fatias de melão. Só que cada fatia vai numa dentada só. :)
ResponderEliminarGostei muito da história.