Trinta e cinco anos depois da morte na Califórnia, de Jorge de Sena, "um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos [que] morreu infeliz, em terra estrangeira porque em Portugal não houve lugar para ele", no dizer da sua amiga Sophia de Mello Breyner, transcrevo parte do extraordinário (e difícil) texto que o seu amigo Eduardo Lourenço escreveu em 6 de Junho de 1978, dois dias apenas após o seu desaparecimento.
A Amarga Fúria – Na não-morte de Jorge de Sena
«Quando todos nos esquecermos que
Jorge de Sena está hoje tipograficamente “morto” em letra maiúscula, com aquela
evidência de notícia que já merecia vivo, dele falaremos. É impossível suportar
do além onde não está, mesmo em pensamento, aquele fabuloso desprezo que ele
sabia comunicar ao que por rito existe e se perpetua. Não sei se é tempo para
“viúvas” de Jorge de Sena, que o poeta superconjugal que ele foi não deve ter
deixado, lhe florirem a agreste e apátrida tumba onde a sua épica violência de
se sentir roubado da pátria morada não cabe, enjeitando flores, sempre para tal
homem amoroso delas como alegria da terra, tardias. Tardio tudo lhe foi, mesmo
o que o coroou, ou aquilo com que se coroou como o Indesejado-mor do reino que
não foi, mas com alguma razão se pôde supor. Tardio, porque ele vivia em
avanço, e com uma fúria de quem sabia a vida contada, um combate que não tinha
outros adversários que aqueles que o seu camoniano génio de monstros a vencer
num mar mais fundo e tenebroso que o antigo, sob cada pedra ou livro,
levantava. A sua morte só uma misteriosa voz, rolando como outrora sobre as
margens daquele Mediterrâneo onde na tarde deuses redivivos o premiaram, a
poder ir anunciando como um eco em todo o lugar lusíada: «o grande Sena
morreu».
Duro e violento foi o seu combate
com uma morte que não quis deixar tempo a quem, com um humor digno de Quevedo,
anunciara a intenção de a esvaziar à força de diatribes e insultos (última
forma do desespero e amor) da sua nula omnipotência. Dele mesmo, como de
ninguém, mas de outra maneira, a morte não levara sequer o cadáver adiado que
nunca foi. Jorge de Sena ficou, está, ficará inteiro, com aquela espécie de
nudez ofuscante dos jazentes reais da época turva dos fins do Renascimento, tão
sua conhecida, numa poesia que desencoraja as glosas estéticas por lhe ter sido
arma sem cessar brandida contra os céus imaginários por conta de um amor
descomedido a uma vocação pânica sem igual na nossa Literatura, se a palavra
não lhe excita ainda a verve sarcástica e o verbo justiceiro até ao suicídio.
Jorge de Sena a si mesmo se comentou com um despudor grandioso e para sempre
estará vedado aos que no seu labirinto poético se aventurarem, passar ao lado
desse olhar que no centro dele o defende e cobre com sombrio e altivo
esplendor. Que mais glosa da sua morte precisa aquele que sabia que o seu
(imaginariamente) sonegado cadáver futuro iria crescer e avassalar a nossa
exígua cena caseira para se converter, como nas metamorfoses que tanto
explorou, em qualquer ainda não conhecida constelação celeste? Que mais
dilacerada que aquela que mil vezes insinuou na trama tão lusitanamente
hipertrofiada e amarga da sua prodigiosa provocação poética que a ninguém se
destinava senão a si mesmo, parecendo destinar-se, com nomes e tudo, à
humanidade quase inteira? Que requiem desapiedado, que música de lágrimas
devolvidas à por ele negada “sensibilidade lusa”, pode superar o exorcismo de
olhos abertos e alma jamais rendida ao inevitável com que da tentação da
piedade por si se defendeu? (...)»
[Vence, 6 de Junho de 1978]
E como não deixar também aqui as Carta(s) a Jorge de Sena de igual modo escrita logo após a sua morte por Sophia?
I
Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II
E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida
E algo se desloca em nossa vida
III
Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
Do instante que brilhava entre frutos e rostos
IV
E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta
A morte vem como nenhuma carta
1978
Infelizmente muitos Portugueses não conhecem a obra de Jorge de Sena. Um Português, entre muitos, obrigado a emigrar, no seu caso devido à política...
ResponderEliminarMT
Excelente homenagem.
ResponderEliminarSabes Graça eu conheço muito pouco de Jorge de Sena, mas gostei imenso ler este texto, aqui fiquei a conher algumas coisas que não conhecia.
Obrigada pela partilha.
beijinho e uma flor
Estimaga Amiga Graça Sampaio,
ResponderEliminarAdorei, belo homenagem.
Igualmente eu não sendo imigrante me revejo nas belas palavras desse grande poeta.
Para cá vim em serviço militar e por cá fiquei mas sempre maltratado pela pátria, sendo considerado português de 3a. classe, é assim já.
Abraço amigo
Se não fosse o DN tinha-me passado a data...ou por outra só hoje daria por ela a partir de ti!
ResponderEliminarO DN transcreve um pequeno texto de Sophia de 1978 sobre esse grande homem da cultura portuguesa que "morreu em terra estrangeira, porque em Portugal não houve lugar para ele."
Obrigada pela amostragem!
Abraço
Abraço
Creio que se sabe verdadeiramente muito pouco sobre Jorge de Sena !
ResponderEliminarEm tempos dei-me ao cuidado de o estudar mais profundamente e fiquei chocadíssimo com a sua obra !
Só por cegos motivos políticos o poderiam ter elevado ao seu pedestral !
Peço-lhes que leiam com atenção estes 2 links de 2 posts meus :
http://coisas-da-fonte.blogspot.pt/2011/11/jorge-de-sena.html
http://coisas-da-fonte.blogspot.pt/2010/03/aditamento-jorge-de-sena.html
Eu, não lhe perdoo !!! :(((
.
Que bela homenagem!
ResponderEliminarAdoro em Jorge de Sena, a pureza da língua portuguesa. No momento em que, mercê do acordo ortográfico, vivemos a síntese do português escrito com o falado, com largo privilégio para este último, é particularmente oportuno lembrá-lo.
Não gosto de usar “copy & paste”, mas a necessidade a tal me obriga.
ResponderEliminarRecorro a este sistema porque é a única hipótese que tenho de agradecer, atempadamente, a todos que me acompanharam e dispensaram o seu o carinho numa data para mim tão importante. Não tem a mínima importância que alguns de vós não tenham vindo no próprio dia. No dia seguinte ou nos seguintes tem, para mim, igual valor. A vossa amizade é-me preciosa, SEMPRE.
Como se mete agora um fim-de-semana comprido (feriado dia 10 de Junho - «Dia de Portugal»), só na próxima semana começarei a visitar cada um separadamente. Mas não deixarei de o fazer a todos.
Entretanto deixo um GRANDE “Obrigada”!
Beijinhos
Sou grande admiradora da sua poesia e dos seus textos, escritos com amargura e talento.
ResponderEliminarTranscrevo um que acho apropriado ao seu post amiga Graça.
Quem a tem...
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
Desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
E sempre a verdade vença,
Qual será ser livre aqui,
Não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
É quase um crime viver.
Mas embora escondam tudo
E me queiram cego e mudo,
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
beijinho
Fê
Obrigada, Fê, pelo poema. E a todos pelos vossos comentários.
ResponderEliminarRui da Bica, todos temos direito a gostar ou não dos poetas, dos escritores, dos artistas em geral. Fui ler as entradas que me sugeriu e, de facto, não gostei por aí além desses poemas que transcreve e que eu não conhecia. Mas não podemos avaliar a obra de um autor por dois ou três exemplares escritos talvez em grande amargura. Como lhe disse o Rui Pascoal, em comentário, a obra em prosa, talvez mude de ideias. Ou não! Os grandes, mesmo grandes, ou se amam ou se detestam e pronto. Quanto a "perdoar-lhe"... tenho para mim que o perdão, como a vingança é para os deuses e não para nós, simples mortais.
ResponderEliminar"Na não-morte de Jorge de Sena"
Diz tudo!
Zangado, revoltado, infeliz, mas SEMPRE um grande Poeta da Língua Portuguesa.
Um beijo