quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

As Janeiras



(imagem retirada de http://brisadareosa.bligspot.com/ )

A noite de  5 para 6 de Janeiro é/era tradicionalmente a noite dos grupos, nas aldeias,  irem de porta em porta cantar as Janeiras  recebendo em troca dos donos das casas, especialmente as mais abastadas, alguma coisa para comer e beber. 

Lembrei-me de um texto de Aquilino, com a sua prosa característica, que dava aos meus alunos de Português para lerem e interpretarem, no início da minha carreira, acompanhado pela bela canção de José Afonso "Vamos cantar as Janeiras".  Apreciem a prosa e, já agora, vejam o tipo de vocabulário que os alunos aprendiam à época...

"Apinhados contra a porta silenciosa, os janeireiros hesitavam. Estavam ainda todos a dormir em casa e iam dar por paus e por pedras se os acordassem. Mas a Lagartixa é que não esteve com meias-medidas e intimou:

- Cantais ou eu largo? Julgais que vim aqui para ficar de boca aberta!

- Então vá! – exclamou o Jaime com o peremptório de quem se atira de mergulho para um poço fundo.

E contra a porta cerrada, em toadilha de princípio perra, depois cerzida de esganiçamentos, atacaram:

Ano novo, ano novo,
Ano novo, melhor ano,
Vimos cantar as Janeiras,
Como é de lei cada ano.


Vinde-nos dar as Janeiras,
Se no-las houverdes para dar,
Somos romeiros de longe,
Não podemos cá voltar.


Boas festas, santas festas,
Está a alba a arruçar,
Venham-nos dar as Janeiras
Que temos muito p’ra andar.

Nesta altura do coral estacaram. Dentro de casa continuava o mesmo silêncio imperturbável. Dormiam que nem pedras no fundo duma cisterna. Pareceu-lhes que o sol não podia estar longe, se é que a névoa o deixava romper por detrás das suas cocas enfelujadas.

Recomeçaram com alegria:

Senhora que lá está dentro,
Linda rosa encarnada,
Mande a moça à salgadeira
Dar-nos ‘smola avantajada.
Uma chouriça p’ra mim,
Outra p’rò mê camarada.


Dê-nos figos do sequeiro
Ou bola do tabuleiro,
Uma peça do fumeiro,
Ou da burra do dinheiro.
Se lhe custa dar-nos disso
As castanhas do caniço.


Ó minha rica senhora,
Cumpra a sua obrigação,
Meta a mão na salgadeira,
Puxe cá um salpicão.


Se o presunto está teso
E a faca não quer cortar,
Faça-lhe ferrum-fum-fum
Nos beiços do alguidar.

A porta rangeu nos gonzos, escancarou-se. Uma voz estremunhada, meio de riso, meio de cólera, rabujou:

- Diabo de pequenos, que nada lhes mete! Não podíeis vir mais tarde?! Hem, arrelampados?

Era a criada velha, que se fazia muito fina, mas quem mandava já lá vinha embrulhada no seu roupão, nada zangada com os cantadores. A Leocádia trazia uma abada com as janeiras, mas agora, divertida também, deixava cantarolar o rancho:

Boas festas, boas festas
Aqui haja neste dia,
Que manda o Menino-Deus
Filho da Virgem Maria!"

(Aquilino Ribeiro in “O Livro do Menino-Deus”)


5 comentários:

  1. Bonito texto de Aquilino e bela música do Zeca, intemporais. É caso para dizer, como no anuncio, há mais na Caixa (Portugal) do que você julga. E quem sou eu para julgar?

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  2. Bela recordação que trouxeste!
    A saborosa e rica prosa de Aquilino que os nossos alunos liam...
    Um costume que ainda persiste por aqui - o de cantarem as Janeiras...Há um grupo de "Janeireiros" da Casa do Povo.
    Eu gosto de os receber!
    A estreia oficial este ano vai ser na recepção de um candidato a PR.
    Já deves calcular qual... :-))
    E também deves calcular que lá estarei na fila da frente! :-)))))))

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  3. Olha, igualzinho ao que a minha Mãe me contou ontem que se fazia na nossa terra.
    Belos tempos os dela que os viveu assim. Eu não que vim para Lisboa com 3 anos.

    Beijosssss e um Bom Ano Novo Carol

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  4. Ler os clássicos é muito importante: a nossa literatura é muito rica e também não fazia nada mal às nossa criancinhas que os lessem para conhecerem as nossas tradições e os nosso valores. Mas agora é só computador, computador, computador... quando o computador é apenas uma ferramenta, um utensílio importante como o esquentador ou a máquina da roupa...
    Tite, aí em Lisboa também se cantam as Janeiras - em S. Bento e no Palácio de Belém... ah, ah, ah!

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  5. Tens razão Carol, eu é aue nunca brinquei a "esse jogo" -:))

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