terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O Caixadòculos

Hoje fui surpreendida por um texto da escritora Cristina Carvalho (filha de Rómulo de Carvalho) na sua página do facebook, que dizia assim:

" Ó patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?" - Alexandre O'Neill

«Em 19 de Dezembro de 1924 nasceu ALEXANDRE O'NEILL - poeta surrealista, um dos fundadores do Movimento Surrealista Português. Foi, também, publicitário. Imaginou frases incríveis, de uma agudeza e espírito totais, frases que ficaram para sempre, como esta bem conhecida "Há mar e mar, há ir e voltar".

Mas a sua inteligência era imensa, provocadora, irónica. Personalidade atentíssima, vibrou e fez vibrar as cabeças inquietas, as veias mais escondidas dos portugueses que, nesse tempo em que ele viveu, viviam soterrados na mais indigente impossibilidade de expansão cultural.

Portugal e o "meio", sempre cultíssimo e muito sério, muito benzeduras e panos quentes, muito original e intransponível; Portugal, essa geográfica península, senhora bem comportada difícil de se levantar da poltrona, esse pequeno recorte de terra que olha de revés para quem passa por detrás da cortina de cassa do vidro de um qualquer oceano, esse oceano e respectivas gaivotas que os poetas que frequentam os supermercados desta vida exaltam a torto e a direito, olhando pouco para dentro; esse Portugal esquelético e amargurado reverberando fados de goela aberta por todas as vielas dignas de tal nome, não lhe deu a mão. Teve medo dele.

Se fosse hoje, talvez fosse diferente, mas em plenos anos 80 do século XX, a coisa ainda era muito complicada.

Digo eu que nunca me esqueci de ti, ó Alexandre.

Nem hoje, nem nunca. Sendo este - nunca - relativo, claro! É só até eu desaparecer!»

…………………………………………………………


Fui procurar o poema cujo verso lhe inicia o texto e é o que deixo aqui a lembrar que faz hoje 93 anos que nascia, em Lisboa, o grande e esquecido poeta Alexandre O’Neill.

Caixadòculos

- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.

- Público em geral, acaso o meu nome…
- Vai mas é vender banha de cobra!

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces…
- Este é dos que fala sozinho na rua…

- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro…

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você…
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo…

- Ah, já agora sim, fazem-me justiça!

- Olha o caixadòculos todo satisfeito
a ler as notícias…

(Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa, 1965)




8 comentários:

  1. Auto-Retrato

    O’Neill (Alexandre), moreno português,
    cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
    nariguete que sobrepuja de través
    a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
    Se a viagem de tal sujeito é o que vês
    (omita-se o olho triste e a testa iluminada)
    o retrato moral também tem os seus quês
    (aqui uma pequena frase censurada…)
    No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
    e tem a veleidade de o saber fazer
    (pois amor não há feito) das maneiras mil
    que são a semovente estátua do prazer.
    Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
    do que neste soneto sobre si mesmo disse…

    (Poemas com endereço, 1962)

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  2. Também gostei muito de ler.
    Beijinhos
    ~~~~

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  3. Bom dia, fantástico post. Adorei

    Bjos
    Boa Quarta-Feira.

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  4. Gostei da partilha ... bj

    Há Palavras que Nos Beijam

    Há palavras que nos beijam
    Como se tivessem boca.
    Palavras de amor, de esperança,
    De imenso amor, de esperança louca.

    Palavras nuas que beijas
    Quando a noite perde o rosto;
    Palavras que se recusam
    Aos muros do teu desgosto.

    De repente coloridas
    Entre palavras sem cor,
    Esperadas inesperadas
    Como a poesia ou o amor.

    (O nome de quem se ama
    Letra a letra revelado
    No mármore distraído
    No papel abandonado)

    Palavras que nos transportam
    Aonde a noite é mais forte,
    Ao silêncio dos amantes
    Abraçados contra a morte.

    Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

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    Respostas
    1. Muito lindo! Adoro poemas sobre «as palavras»...

      Beijinhos.

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  5. Maravilhosa postagem. Obrigada pela partilha :)

    Beijinhos

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  6. Grata a quem aqui passou, leu e gostou.

    Votos de boas leituras e de Boas Festas!

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