José Saramago faria hoje 95 anos se fosse vivo.
Ficar-me-ia bem lembrar o nosso único Nobel da Literatura não fora tê-lo como um dos meus autores preferidos.
Não há como esquecer o seu majestoso Memorial do Convento, ou o extraordinariamente criativo Ano da Morte de Ricardo Reis, ou a divertida História do Cerco de Lisboa, ou insidioso Evangelho Segundo Jesus Cristo, ou a mordaz Jangada de Pedra, ou o incisivo Ensaio sobre a Cegueira, ou todos os outros que com tanta maestria escreveu.
Para mim, porém, também não há como esquecer um texto que recolhi há algum tempo que versa a relação e vida em comum entre o nosso laureado e a escritora Isabel da Nóbrega (n. 26 de junho de 1925) do qual passo a transcrever alguns excertos.
«Os Olhos de Blimunda
“À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”, escreveu José Saramago na primeira edição do romance Memorial do Convento, publicado em 1982. Percebe-se pela densidade que não seriam apenas palavras de circunstância, e isso torna ainda mais angustiante o acto posterior do seu apagamento e substituição por uma dedicatória a outra mulher.
Neste acto, que muitos classificam como “estalinista”, devido ao facto de durante o regime comunista soviético ser habitual eliminar das fotografias pessoas que se passaram para a oposição ou foram assassinadas, há qualquer coisa de mais inquietante: o inevitável fim do amor. E se João Gaspar Simões,[com quem Isabel vivera e deixara para se ligar a Saramago] ainda que de forma perversa, imortalizou Isabel na figura de Albertina (Tininha) em As Mãos e as Luvas, Saramago tentou obliterá-la para todo o sempre, o que terá sido mais terrível.
Contudo, nas edições mais antigas dos livros do Nobel, podemos encontrar vestígios dessa ligação que, para muitos, terá sido fulcral para o posterior desenvolvimento da obra literária de Saramago. E não é apenas nas dedicatórias que encontramos traços do seu encontro fundamental com Isabel da Nóbrega, mas na própria construção das personagens. É que se Gaspar Simões compara os olhos de Isabel aos de uma Medusa (a górgona mitológica que petrificava quem a olhasse), Saramago acaba por dar à sua mais importante personagem, Blimunda, uns olhos igualmente mágicos, capazes de perscrutar as almas por dentro dos corpos
O próprio nome “Blimunda” foi Isabel quem o escolheu de uma lista que Saramago tinha feito, e da qual tinha escolhido Mariana Amália. Como ela conta, numa entrevista dada à revista Tabu do jornal Sol em 2009, ficou chocada com o nome escolhido para a personagem feminina do Memorial do Convento:
“Mariana Amália? Mas ele endoideceu. Não há direito de pôr Mariana Amália na figura desta mulher. Chamei-o. ‘Está lindo, está tudo certo, menos uma coisa que tens de emendar – Mariana Amália. Tem paciência, quando foste à biblioteca e recolheste nomes da época hás-de ter encontrado um que se possa ver’. Ele voltou à secretária e daí a um bocado apareceu e começou a dizer nomes. Ouvi ‘Blimunda’, pedi-lhe que voltasse atrás e, quando repetiu o nome: ‘Ó Zé, parece impossível! Como é que tinhas este nome na tua lista e não viste que esta mulher é exactamente Blimunda?’. Pegou no manuscrito, que era enorme, e foi emendar tudo, tirar Mariana Amália e pôr Blimunda. É engraçado porque ele chamava-me sempre bruxinha (…) como ele achava que eu via muito bem as pessoas por dentro, lá está, esse jogo…”
(...)
Nesta década [de 50], quando Nóbrega já exibe uma enorme maturidade literária, José Saramago trabalha na editora Estúdios Cor (ali ao lado da redacção do jornal A Capital, da qual Nóbrega foi uma das fundadoras) e tinha uma travessia incipiente pelo romance e pela poesia. É ela quem, em 1968, lhe oferece trabalho n’A Capital para redigir um suplemento de Verão. Mais tarde, convence o director a aceitá-lo como cronista.
Tendo em conta a realidade da sociedade portuguesa nos anos 60, o encontro entre Isabel da Nóbrega e José Saramago era altamente improvável. Ela, filha de um reputado médico, educada no protestantismo, membro da alta-burguesia intelectual, há anos a viver com o mais feroz dos críticos literários, João Gaspar Simões, a quem se devem os primeiros estudos e divulgação da obra de Fernando Pessoa e heterónimos. Ele, um neto de porqueiros do Ribatejo, ex-torneiro-mecânico com aspirações a escritor, que trabalhava como tradutor e fazia os textos para as badanas dos livros da Estúdios Cor.
“Naquela altura em que estávamos n’A Capital, ele tinha sempre um olhar de quem estava a sofrer. Era um olhar que seduzia (os homens sabem muita coisa e as mulheres ficam fraquinhas diante daquele olhar triste)”, conta Isabel da Nóbrega ainda à revista Tabu.
(...)
“Isabel era uma mulher linda, com bom gosto”, recorda o olisipógrafo, ensaísta e jornalista António Valdemar. “Tinha um estilo muito próprio de se vestir, muito sofisticada… já o Gaspar Simões era gordo… Mas com o Saramago foi diferente. Aquilo foi uma grande paixão. Ele ainda estava casado com a Ilda Reis e só devia ler romances neo-realistas. Estou convencido que foi a Isabel da Nóbrega que o tirou do esgoto neo-realista e o influenciou para descobrir outras literaturas, nomeadamente o Pessoa. Acredito nisto: sem a Isabel, Saramago nunca teria escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis”, afirma Valdemar.
“À Isabel, outro livro, o mesmo sinal” — é com esta dedicatória que o Nobel inicia o seu romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984.
(...)
“Lembro-me da primeira vez que vi Saramago e Isabel juntos. Foi na praia de Sesimbra, eu estava em Portugal de férias, e vi aquele estranho par, ele muito alto e peludo e ela muito pequena e branca, a caminharem de mão dada em direcção à água”, recorda Helder Macedo. Perguntei quem era e alguém me disse: é o novo rapaz da Isabel. Eu conhecia Saramago da luta política, tinha até uma certa reverência para com ele, que era bastante mais velho, e nunca gostei da forma como ele era tratado por aquele meio da alta-burguesia. Acho que para manter aquela relação ele teve que sofrer muitas humilhações. Que raio, chamavam-lhe ‘o sarabago’”, conta, indignado, o escritor, poeta e grande admirador de Saramago.
(...)
Pela forma ligeira com que Simões apresenta o editor que alegadamente representa Saramago, dir-se-ia que ele não acreditava no futuro daquele relacionamento, que na vida real acabou por durar quase duas décadas. Se há quem ache que Saramago foi o vilão da história, também há quem ache que foi a vítima. Ele próprio justificou a retirada das dedicatórias com a mudança que os livros vão tendo nas suas várias edições, uma mudança que se vai adequando às circunstâncias da vida de um autor. (...)»
http://observador.pt/especiais/isabel-da-nobrega-do-musa-saramago-apagou-da-historia/
Pronto... E depois disto, tudo é Pilar del Rio, Pilar del Rio, Pilar del Rio... Não me parece justo...
Boa noite. Como esquecer de José Saramago? nunca! Adorei o seu texto.
ResponderEliminarObrigada pela partilha.
Bjos
Noite feliz
Obrigada, Larissa. Sempre tão amável.
EliminarBeijinho.
Cada um lá sabe as linhas com que se cose!...Isto, para ripostar à tua frase final e ao facto de não achares justo...só Pilar del Rio!
ResponderEliminarÉ que foi Pilar del Rio que fez Saramago subir ao cume...onde se sentam os génios...:)
Ai dele sem Pilar del Rio!...
Beijinhos.
Verdade. Mas ai dele sem a Isabel da Nóbrega... Nada contra a Pilar.
EliminarBeijinho.
Há mulheres com olhos mágicos. Há homens que fazem magia.
ResponderEliminarBeijos, Graça :)
Que bem posto, Maria Tu!!!
EliminarObrigada. Beijinho.
Não minto, não sou hipócrita - nunca gostei de Saramago.
ResponderEliminarDo homem e do escritor.
Beijinhos, bfds
Gostos não se discutem, Pedro!
EliminarBom fim de semana!!
Mas que agradável leitura me proporcionou, Graça! Não tinha reparado na mudança das dedicatórias, (tenho dele quase todas as primeiras edições.)
ResponderEliminarQue dizer sobre o aqui dito? A um "único" Nobel pode perdoar-se tudo. Sobre a Ilda, a Isabel, a Pilar e as outras musas, acho que fizeram com ele um bom trabalho.
Tenha um bom dia!
Lídia
Eu também tenho os livros com as dedicatórias antigas e nunca tinha reparado nisso...
EliminarObrigada por ter gostado. Beijinho.
E para o recordar ... uma belíssima escolha!!!bj
ResponderEliminarObrigada, Gracinha.
EliminarBeijinho.
Graça
ResponderEliminarmas que agradável trabalho que compartilhou.
fiquei muito surpreendida com certos detalhes que eu não sabia.
obrigada
bom fim de semana.
beijo
:)
Factos que eu também desconhecia. Que bom que deu para passar informação.
EliminarBeijinhos
Teu texto faz-me lembrar que não deveria ter eu abandonando as "homilias"... ficou tanto por dizer...
ResponderEliminarHá sempre tanto para ser dito!!
EliminarPor detrás de um grande Escritor nem sempre se encontra um grande Homem!...
ResponderEliminarQtº a Isabel da Nóbrega, "a musa que Saramago apagou da sua história...precisa urgentemente de ser redescoberta" antes que lhe aconteça, como Escritora, o que lhe aconteceu enquanto Mulher...
https://pt.wikipedia.org/wiki/Isabel_da_N%C3%B3brega
É bem verdade. Tantas escritoras que estão caídas no esquecimento. Há que serem lembradas. Vou-me lançar nisso! Obrigada pela ideia. Beijinho
EliminarObrigada Graça.
ResponderEliminarFoi um prazer e um privilégio passar hoje pelo seu Blog. Como habitualmente, colhi informação preciosa e deleite literário com o seu belo e sábio texto. Um abraço UM
Obrigada pelas simpáticas palavras. Beijinho
EliminarDeixo-lhe para ler este artigo sobre o tema que aqui desenvolveu.
ResponderEliminarhttp://observador.pt/especiais/isabel-da-nobrega-do-musa-saramago-apagou-da-historia/
Boas Festas!