«Chamando os fiéis para a missa, os sinos de São Domingos vibravam,
tangendo e reboando sobre Lisboa, unindo-se às melopeias de bronze que vinham
da Madalena, da Sé, da Conceição-Velha, de São Paulo, da Boavista, de São Cristóvão,
chegavam do Carmo, ao convento da Trindade, subiam ao Loreto, a São Roque,
alongavam-se por São Mamede, pelo convento dos trinos no Rato, na Estrela
voltava a descer para São Bento, para Santos, atingia Santa Apolónia, o
convento da Madre de Deus, a igrejinha de Marvila, de sininhos tangendo à beira
Tejo – compondo harmónica e argentífera a voz de Deus, brônzea, ecoante,
poderosa, repercutindo-se sob o céu de Lisboa, era a Voz de Deus, organizando o tempo e a azáfama dos homens, ritmando a
cidade de Santo António, a voz da ordem, do domínio da paixão, do império do
espírito, da submissão do corpo, a voz do Homem Filho de Deus, senhor e mestre
da natureza.
(…)
Um trovão estourou dentro da terra (…) Julinho, encostado ao muro da fonte
do Rossio, deu um salto, especado, olhando para o chão de terra batida, notou que
o clangor dos sinos se desafinava, desarmonizando a Voz do Céu, e que, a seu
lado, as abelhas que zuniam em torno do cesto de maçapão do vendedor de
confeitos tinham desaparecido (…) no solo, gatos, cães, formigas e baratas do
Rossio giravam tontos.
Então a Voz da Terra falou, um
fragor cavo, seco e conflituoso, lento, crescente, uma fala cavernosa, rugente,
um som rouco, avolumando-se sob Lisboa, emergindo dos subterrâneos, dos túneis,
das fossas, dos buracos, das cloacas, das sentinas, dos regueirões, dos
boqueirões, das caverna e grutas (…) ressoou pela cidade, não era um urro, um
berro, um grito, era um lamento de pedra, prolongado e bafo, que reboava nas
naves das igrejas, (…) estremecia as paredes dos prédios, invadia as casas (…)
A Voz da Terra tornara-se hiante,
aterradora, ensurdecedora, como milhões de bombardas explodindo sob os pés dos
homens (…) Num átimo, o povo de Lisboa imobilizou-se, fixou os olhos no chão e
levou as mãos aos ouvidos, tapando-os, aterrados, mas a brutalidade do rugido
entrava-lhes pelos pés, pelas pernas (…) o pavor acolhia-se na barriga, no
coração (…) na nave de São Domingos, iluminada por duzentas velas, ecoou um
pasmo colectivo, um ah grave (…) que foi engolido pela voz medonha que saía da
terra, furando as lajes e as paredes de pedra e barro (…)
(…) era dia 1 de novembro, dia de Todos-os-Santos, Lisboa cultuava os seus
mortos, para que tão mortos não estivessem (…) o Rossio abria-se ao meio e
ondulava, saracoteava, coleava, o Rossio tornara-se no convés do São Bartolomeu oscilando sobre águas
alterosas (…) o colégio da Companhia de Jesus desabou inteiro sobre homens e
animais, submergindo-os (…) de uma só vez, como peça única, a mole dos telhados
do convento [do Carmo], dos caixotões do tecto, do zimbório, da torre sineira,
do coruchéu do terraço, do pináculo frontal, abateu-se sobre o balcão do coro,
a sacristia, a nave central, os dois claustros laterais, o casario dos
dormitórios e do refeitório dos monges , a massa de pedra e madeira ruiu sobre
si própria (…) corpos esmagados , de carne retalhada, retorciam-se sobre os
vultos quebrados de São Domingos e Santo Inácio de Loyola (…) submergidos numa
fenda que o terramoto abrira ao lado da Misericórdia (…)
Lisboa, tocada pela Voz da Terra, convulsionara-se.
(…)»
(de “A Voz da Terra”, Miguel
Real, 2005, pp 147 – 158, com supressões)
Texto para excelente mentalização!
ResponderEliminarAbraço.
Trata-se de um livro extraordinário. Muito bem escrito!
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ResponderEliminarFez hoje 262 anos! :(
Quão brutal pode ser a voz da Terra...
Acho que não sabia (ou então entretanto esqueci) que foi num primeiro de Novembro que aconteceu o terramoto de Lisboa.
Ainda na semana passada me passeei pela nossa (mais tua, é certo) Lisboa... e lembrei-me dos perigos a que ela está exposta!
Beijinhos de uma Minhota para uma Alfacinha
(^^)
Tenho tanto medo, que nem sabes...
EliminarBeijinhos aqui da alfacinha leiriense para a mais simpática das bracarenses...
Deve ter sido terrível. Talvez não estejamos muito longe de um próximo e pergunto-me se estaremos preparados para essa eventualidade, Graça
ResponderEliminarNem pensar nisso é bom! Penso que nunca se está preparado para uma situação tão inesperada e tão violenta.
EliminarA 28 de Fevereiro de 1969, quando ouvi o urro da terra, segundos antes da terra começar a tremer, que fico aterrorizada de pensar no que seria se fosse a sério como no terramoto. Eu já assisti a mais dois tremores de terra, mas nunca mais ouvi aquele som horripilante.
ResponderEliminarUm abraço
Também não vou esquecer nunca esse ronco que vinha do interior do chão. Estava a viver em Sintra e parecia que a serra se ia abrir ao meio. Nunca tive tanto medo!
EliminarImpressiona ler e pensar que pode acontecer ... ainda mais!!!bj
ResponderEliminarAconteceu em 1531, aconteceu em 1755 e agora sabe-se lá quando vai voltar a acontecer... Muito medo!
EliminarMiguel Real , que muito admiro, a relatar o pavor que é um terramoto violentíssimo .
ResponderEliminarAmiga, bom final de semana
Um escritor extraordinário! Gosto muito de o ler.
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