Sempre se matou a trabalhar.
Casou nova mas o marido nunca foi pessoa de se matar a trabalhar. Dois filhos
de seguida que ela deixava de manhã, quase madrugada, numa vizinha, correndo
ladeira abaixo para apanhar a carreira que a levava à cidade onde trabalhava em
casa das senhoras. À noite o regresso. Os filhos à espera na sogra que a
maldizia pela luta, pela força, pela vivacidade. Depois ainda nasceu a menina,
com uma deficiência física que a obrigou a correr para casa da irmã em Lisboa
por causa das operações a que a criança teve de se submeter…
Mais tarde a separação do homem
influenciado pela mãe, as relações cortadas com a sogra que continuou a
maldizê-la e a canseira dos filhos todos para cima dela. E sempre a matar-se a
trabalhar em casa das senhoras para onde corria a apanhar a carreira manhã bem
cedo. Anos a fio. Passou mal. Passou fome. Passou frio. Privações de toda a
ordem.
Calculista, porém, resolveu tomar
conta dos pais, velhos e doentes, mas com alguns bens. Tratou-os com o esmero
de uma filha dedicada usando para isso o dinheiro que os pais tinham arrecadado
durante uma vida cheia da dureza do campo, atraindo para cima dela as
desconfianças e as invejas de alguns dos irmãos. Depois da morte dos pais
vieram as zangas com aqueles, o caso decidido em tribunal. Que ganhou. Mas
sempre na ideia de uma premeditada vingança se não tivesse sido aquele o
desfecho.
Com a instrução primária
inacabada, mas com a “educação religiosa” toda completa, a sua formação pessoal
ficou muito aquém o que, de algum modo, a desculpa daquela arrogância de quem
se pensa, por falta de saber e de vivências, detentor dos valores absolutos do
Bem, da Verdade, da Sageza, da Justiça. E por isso, como todas, as muitas
pessoas deste povo do seu nível etário e de educação, sempre “avaliou” o seu
próximo criticando, maldizendo, opinando, “aconselhando”. Mas sempre por Bem!
E agora, já na terceira parte da
vida, uma vida de muito trabalho, de muita dor, de muitos maus-tratos, aceitou
– calculista de novo, mas quem lhe pode levar a mal? – receber em casa e tratar
da sogra, aquela sogra que lhe fez a vida negra, agora velha e um pouco
deslembrada mas que continua com o seu mau feitio de sempre. E trata-a com o
desvelo de uma (quase) filha na esperança, quase com a certeza de que Deus –
aquele Deus que dá de acordo com o que recebe – lhe dará uma boa velhice e uma
morte santa.
Mais uma história bonita da tua rua.
ResponderEliminarFez-me lembrar as histórias que nos conta o lúis coelho
ResponderEliminarTêm ambos alma de contadores de histórias.
Uma delícia!
Hoje , estou com insónia...
ResponderEliminarNão tenho espírito de Madre Teresa de Calcutá e se me derem uma bofeteda não ofereço a outra face...
A vizinha da sua rua , muito boazinha...é uma grande parvalhona.
M.A.A.
Minha nossa!
ResponderEliminarBem contada, com suspense, pensava que iria herdar uma fortuna...por milagre e afinal a mulher era uma pobre de espírito...mas são os pobres de espírito que ganham o reino dos céus, por isso está no caminho certo! :-))
Abraço
Como é aí de Leiria, foi criada com o espírito do 13 de maio, Fátima, e afins, lá vai levando porrada até ao fim, carregando a cruz às costas, sempre a pensar na graça de Deus, e no paraíso no dia do Juízo Final. Tal qual, um fanático religioso muçulmano que se auto-esplode, porque vai ter não sei quantas mil virgens no paraíso.
ResponderEliminarInfelizmente há pessoas que passam
ResponderEliminarpela vida com esse tipo de vivên-
cias. É de qualquer modo sempre
triste. A história, está muito
bem escrita, por si.
Hoje em dia também há "em pessoas
até com graus de educação mais
elevada" que tinham colocado os
seus pais em lares, e agora com
a crise os foram buscar, para
gerirem as suas pensões.
E eu conheço duas pessoas que
trataram de pessoas idosas, sem
filhos, e que ao morrerem lhes
deixaram os seus bens.
Bj.
Irene Alves
Há mulheres que bem mereciam uma estátua. É que nasceram para sofrer. Esta história lembra-me a de "Luísa" de António Gedeão.
ResponderEliminarTambém a mim me lembrou "Luísa sobe, sobe a calçada" quando estava a escrevê-la...
ResponderEliminarPedro Coimbra, não mereço esse tão grande elogio... Obrigada, não obstante.
Existem tantas histórias por contar. Muitos já nem acreditam que as pessoas sofreram e viveram dramas tão pesados.
ResponderEliminarSão tantas histórias, as ruas estão cheias de casos assim, verdadeiras novelas da vida real.
ResponderEliminarBjs