quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Histórias da minha rua (4)



Sempre se matou a trabalhar. Casou nova mas o marido nunca foi pessoa de se matar a trabalhar. Dois filhos de seguida que ela deixava de manhã, quase madrugada, numa vizinha, correndo ladeira abaixo para apanhar a carreira que a levava à cidade onde trabalhava em casa das senhoras. À noite o regresso. Os filhos à espera na sogra que a maldizia pela luta, pela força, pela vivacidade. Depois ainda nasceu a menina, com uma deficiência física que a obrigou a correr para casa da irmã em Lisboa por causa das operações a que a criança teve de se submeter…

Mais tarde a separação do homem influenciado pela mãe, as relações cortadas com a sogra que continuou a maldizê-la e a canseira dos filhos todos para cima dela. E sempre a matar-se a trabalhar em casa das senhoras para onde corria a apanhar a carreira manhã bem cedo. Anos a fio. Passou mal. Passou fome. Passou frio. Privações de toda a ordem.

Calculista, porém, resolveu tomar conta dos pais, velhos e doentes, mas com alguns bens. Tratou-os com o esmero de uma filha dedicada usando para isso o dinheiro que os pais tinham arrecadado durante uma vida cheia da dureza do campo, atraindo para cima dela as desconfianças e as invejas de alguns dos irmãos. Depois da morte dos pais vieram as zangas com aqueles, o caso decidido em tribunal. Que ganhou. Mas sempre na ideia de uma premeditada vingança se não tivesse sido aquele o desfecho.

Com a instrução primária inacabada, mas com a “educação religiosa” toda completa, a sua formação pessoal ficou muito aquém o que, de algum modo, a desculpa daquela arrogância de quem se pensa, por falta de saber e de vivências, detentor dos valores absolutos do Bem, da Verdade, da Sageza, da Justiça. E por isso, como todas, as muitas pessoas deste povo do seu nível etário e de educação, sempre “avaliou” o seu próximo criticando, maldizendo, opinando, “aconselhando”. Mas sempre por Bem!


E agora, já na terceira parte da vida, uma vida de muito trabalho, de muita dor, de muitos maus-tratos, aceitou – calculista de novo, mas quem lhe pode levar a mal? – receber em casa e tratar da sogra, aquela sogra que lhe fez a vida negra, agora velha e um pouco deslembrada mas que continua com o seu mau feitio de sempre. E trata-a com o desvelo de uma (quase) filha na esperança, quase com a certeza de que Deus – aquele Deus que dá de acordo com o que recebe – lhe dará uma boa velhice e uma morte santa.


10 comentários:

  1. Mais uma história bonita da tua rua.

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  2. Fez-me lembrar as histórias que nos conta o lúis coelho
    Têm ambos alma de contadores de histórias.
    Uma delícia!

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  3. Hoje , estou com insónia...
    Não tenho espírito de Madre Teresa de Calcutá e se me derem uma bofeteda não ofereço a outra face...
    A vizinha da sua rua , muito boazinha...é uma grande parvalhona.
    M.A.A.

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  4. Minha nossa!
    Bem contada, com suspense, pensava que iria herdar uma fortuna...por milagre e afinal a mulher era uma pobre de espírito...mas são os pobres de espírito que ganham o reino dos céus, por isso está no caminho certo! :-))

    Abraço

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  5. Como é aí de Leiria, foi criada com o espírito do 13 de maio, Fátima, e afins, lá vai levando porrada até ao fim, carregando a cruz às costas, sempre a pensar na graça de Deus, e no paraíso no dia do Juízo Final. Tal qual, um fanático religioso muçulmano que se auto-esplode, porque vai ter não sei quantas mil virgens no paraíso.

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  6. Infelizmente há pessoas que passam
    pela vida com esse tipo de vivên-
    cias. É de qualquer modo sempre
    triste. A história, está muito
    bem escrita, por si.
    Hoje em dia também há "em pessoas
    até com graus de educação mais
    elevada" que tinham colocado os
    seus pais em lares, e agora com
    a crise os foram buscar, para
    gerirem as suas pensões.
    E eu conheço duas pessoas que
    trataram de pessoas idosas, sem
    filhos, e que ao morrerem lhes
    deixaram os seus bens.
    Bj.
    Irene Alves

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  7. Há mulheres que bem mereciam uma estátua. É que nasceram para sofrer. Esta história lembra-me a de "Luísa" de António Gedeão.

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  8. Também a mim me lembrou "Luísa sobe, sobe a calçada" quando estava a escrevê-la...

    Pedro Coimbra, não mereço esse tão grande elogio... Obrigada, não obstante.

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  9. Existem tantas histórias por contar. Muitos já nem acreditam que as pessoas sofreram e viveram dramas tão pesados.

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  10. São tantas histórias, as ruas estão cheias de casos assim, verdadeiras novelas da vida real.
    Bjs

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