terça-feira, 22 de maio de 2012

Dia da Cidade

Enquanto o governo não decretar o fim dos feriados municipais a bem da produtividade (!), o dia 22 de maio é o dia da cidade de Leiria. É assim um diz 10 de Junho em miniatura: há sessão solene na Câmara em que o presidente homenageia as figuras que o município considera que se destacaram ao longo do ano ou das suas vidas. De resto mais nada. Apetece-me dizer «o marasmo do costume» mas receio bem que os leirienses que fazem o favor de passar por aqui fiquem ofendidos… De resto mais nada, mesmo! Há a Feira de Maio que acontece ao longo deste mês, com os carroceis, os carrinhos de choque, as atrações para a pequenada e para a juventude, há as barraquinhas de artesanato e de bugigangas que já nada devem vender, ah! e as famosas e tão apreciadas farturas da Família Penim que vêm há dezenas de anos da margem sul para fazerem as delícias dos leirienses. Sei que a dita família, já cansada e entrada na idade, não faz mais nenhuma feira senão a de Leiria por questões sentimentais – é que o filho mais novo, já trintão, nasceu por cá há muitos anos, por altura da Feira. 

Feira de Leiria
A Feira – que agora se realiza em maio, mas que inicialmente se realizava em março – dá alguma animação à cidade porque faz parte da tradição e as pessoas gostam de dizer que “já foram à Feira”. A malta nova adora ir à Feira e, porque tem lugar já na segunda metade do terceiro período letivo, é um corrupio de alunos a, muitas vezes, faltarem às aulas para irem em grupo para a Feira.
A mim a Feira nunca me atraiu. Traz-me um misto de tristeza, de melancolia, um nó na garganta que me vem talvez da descrição da triste Feira feita da forma mais realista e cortante por Soeiro Pereira Gomes no seu livro «Esteiros» (1941) que li e reli e estudei com os meus alunos nos idos anos 70.

Esteiros do Tejo
 
«A Feira era no fim da vila, rente à estrada.

Três ruas ladeadas por barracas de serapilheira e pano cru; num topo o circo, noutro a praça de toiros. Ruas apinhadas de gente, barracas atochadas de bugigangas. E o povo a passear desejos… E os feirantes a aguardar esperanças…

Sobre o arco tosco da entrada, um alto-falante enrouquecido teimava em animar o largo com música estafada, que ninguém ouvia. O sol, indiscreto, desnudava a fealdade das barracas e a desarmonia gritante daquele amontoado de misérias. De dia, a Feira era arraial sem festa. – Uma vergonha para a nossa terra – diziam nos cafés os senhores civilizados. As meninas «bem» desdenhavam daquela misturada. E os velhos recordavam: - Noutros tempos… - Mas, à noite iam todos para a Feira. A lua, bondosa, emprestava reflexos de prata às serapilheiras e riscados. E, se acaso se escondia entre nuvens, lá estavam as mil lâmpadas de cores para corrigir o desbotado das pinturas. À noite, a Feira era outra. 

Por isso, Gineto passou a tarde ansioso pelo acender das luzes e, depois, achou mais atraente a palidez doentia da rapariga da barraca de tiro, que se chamava Rosete e tinha uns olhos esquisitos como o seu nome. Também ela notara que estava ali um valentão, como o Tom Mix, que tresmalhava toiros e desafiava guardas e caseiros de quintas, sem temor.

- Vai um tiro, freguês?

Pegou na espingarda, fez pontaria… e não acertou. (…)

Encostou-se ao balcão sem desfitar Rosete, que foi atender outros fregueses. Um deles, depois de escaqueirar púcaros de barros sem conta, segredou qualquer frase que provocou o riso da rapariga e alvoroçou o coração de Gineto. «Aquilo era de mais!» Rebuscou nos bolsos os restos da féria. «Se tivesse ao menos cinco tostões…» Desiludido, resolveu acabar com aquele suplício. E, quando o rival faz pontaria de costas para o alvo, Gineto passou-lhe uma rasteira e estatelou-se sobre o balcão. 

Receosa de complicações, Rosete apaziguou a luta que se esboçava.

- Deixe lá o miúdo. Foi sem querer.

- Parece que está apaixonado por ti – escarneceu outra rapariga.

- Que ideia! Eu não desmamo crianças.

Gineto abriu caminho e fugiu, amarfanhado de raiva. Novamente moço de telhal, ao acaso pelas ruas da Feira, recebendo encontrões e motejos.»




Ilustrações de «Esteiros» por Álvaro Cunhal

11 comentários:

  1. Com os feriados municipais eles não podem acabar, por isso esteja descansada...

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  2. E eu que nem saí de casa!

    Pelos vistos também não há grande vontade de comemorar a preceito uma data, que até é uma data importante para Leiria.

    Apetecia-me começar aqui a desbobinar a polémica que se levantou há uns anos, a propósito desta comemoração, se devia ser o 13 e Junho (dia da Freguesia de Leiria) se o 22 de Maio (Dia da elevação de Leiria a diocese). Também me envolvi nessa discussão, mas vieram logo os entendidos dizer que sim, mas talvez, fosse mais consentânea a data de hoje para Dia do Município.

    Muito bem, bom trabalho, isto é que é uma estafa para se fazer um post como mandam os cânones, hem!?

    Beijinho

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  3. No meu tempo de estudante a feira era em Março mas como chovia sempre passou para Maio...agora chove em Maio! :-))
    Quando miúda adorava a feira e sobretudo os carrinhos de choque, agora não dou um passo para lá ir!
    Boa lembrança a dos Esteiros que eu também li, estudei e analisei com os meus alunos!
    Quem é que agora lê os "Esteiros"?

    Abraço

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  4. Obrigada por relembrares esta passagem de "Esteiros", que já li há muitos anos e adorei! Mesmo sendo livro escolar obrigatório... :)

    Também não conhecia essas ilustrações de Álvaro Cunhal! Um homem cheio de talentos vários! :)

    Quanto às feiras, gosto delas, sempre que posso e as apanho por onde passo ou vou, aproveito para espreitar! E comer uma farturinha... :D

    Beijocas!

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  5. Quando era miúdo gostava de jogar "matrecos", andar nos carros de choque e dar uns tiros nas barracas da feira. Agora contento-me com uma fartura da Penim.
    :)

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  6. Bom , só digo que li "Esteiros " há muitooosss anos e que o comparo a "OS Capita~es da Areia", de Jorge Amado.

    Bons sonhos, Gracinha

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  7. Estimada Amiga Graça Sampaio,
    Adorei o seu relato sobre o feriado municipal e essa bela e tradicional feira, que me fez recuar nos tempos quando ia à feira do S. João em Évora.
    A última vez que visitei o sertame foi em 2006. Em Évora o ferido municipal é dia de S. pedro padroeiro da cidade, e muito terei que contar sobre essa feira.
    Abraço amigo e continuação de boa disposição

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  8. Deu-me o apetite de voltar a esse meu livro querido...

    Obrigado por esta página.

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  9. Que feliz evocação a da feira de Esteiros !Apertou-se-me de novo o coração como quando li o livro pela primeira vez.Estaremos à beira de uma nova geração de Ginetos, agora com telemovel,mas sem carga,claro?Quero muito que não,mas o meu querer não vale de nada...Kinkas

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  10. Já não há "esteiros" na escola, por isso é bom vê-los aqui.:)

    O feriado já foi. Também espero um, brevemente.:))

    beijinhos

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  11. Ah! Fui (re)lembrar-vos este livro tão bem escrito e tão assustadoramente real! Também o li com um aperto no coração, querida Kinkas! Assim como "Aldeia Nova" de Manuel da Fonseca - até chorei perante aquela realidade tão dura, tão repressiva, tão insensível que se vivia naqueles anos altos da ditadura. Que esperamos não voltem!

    Obrigada pelas vossas palavras.

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