Não gosto particularmente do comentador (opinion-maker) João César das Neves. Muito "de direita", muito moralista para o meu gosto. Mas deixei-me encantar - ou talvez melhor - enternecer pela crónica que assinou no DN de ontem e que tinha como título "Obrigado, Sr. Ministro!". Foi aliás o título que me chamou a atenção já que, repito, não me dá muito para ler os seus escritos. Dizia assim:
Há dias um pobre pediu-me esmola. Depois, encorajado pela minha generosidade e esperançoso na minha gravata, perguntou se eu fazia o favor de entregar uma carta ao senhor ministro. Perguntei-lhe qual ministro e ele, depois de pensar um pouco, acabou por dizer que era ao ministro que o andava a ajudar. O texto é este:
"Senhor ministro, queria pedir-lhe uma grande ajuda: veja lá se deixa de me ajudar. Não me conhece, mas tenho 72 anos, fui pobre e trabalhei toda a vida. Vivia até há uns meses num lar com a minha magra reforma. Tudo ia quase bem, até o senhor me querer ajudar.
Há dois anos vierem uns inspectores ao lar. Disseram que eram de uma coisa chamada Azai. Não sei o que seja. O que sei é que destruíram a marmelada oferecida pelos vizinhos e levaram frangos e doces dados como esmola. Até os pastelinhos da senhora Francisca, de que eu gostava tanto, foram deitados fora. Falei com um deles, e ele disse-me que tudo era para nosso bem, porque aqueles produtos, que não estavam devidamente embalados, etiquetados e refrigerados, podiam criar graves problemas sanitários e alimentares. Não percebi nada e perguntei-lhe se achava bem roubar a comida dos pobres. Ele ficou calado e acabou por dizer que seguia ordens. Fiquei então a saber que a culpa era sua e decidi escrever-lhe. Nessa noite todos nós ali passámos fome, felizmente sem problemas sanitários e alimentares graves.
Ah! É verdade. Os tais fiscais exigiram obras caras na cozinha e noutros locais. O senhor director falou em fechar tudo e pôr-nos na rua, mas lá conseguiu uns dinheiritos e tudo voltou ao normal. Como os inspectores não regressaram e os vizinhos continuaram a dar-nos marmelada, frangos e até, de vez em quando, os belos pastéis da tia Francisca, esqueci-me de lhe escrever. Até há seis meses, quando destruíram tudo.
Estes não eram da Azai. Como lhe queria escrever, procurei saber tudo certinho. Disseram-me que vinham do Instituto da Segurança Social. Descobriram que estava tudo mal no lar. O gabinete da direcção tinha menos de 12 m2 e na instalação sanitária do refeitório faltava a bancada com dois lavatórios apoiados sobre poleias e sanita com apoios laterais. Os homens andaram com fitas métricas em todas as janelas e portas e abanaram a cabeça muitas vezes. Havia também um problema qualquer com o sabonete, que devia ser líquido.
Enfureceram-se por existirem quartos com três camas, várias casas de banho sem bidé e na área destinada ao duche de pavimento (ligeiramente inferior a 1,5 m x 1,5 m) não estivesse um sistema que permita tanto o posicionamento como o rebatimento de banco para banho de ajuda (uma coisa que nem sei o que seja). Em resumo, o lar era uma desgraça e tinha de fechar.
Ultimamente pensei pedir aos senhores fiscais para virem à barraca onde vivo desde então, medir as janelas e ver as instalações sanitárias (que não há!). Mas tenho medo que ma fechem, e então é que fico mesmo a dormir na rua.
Mas há esperança. Fui ontem, depois da missa, visitar o lar novo que o senhor prior aqui da freguesia está a inaugurar, e onde talvez tenha lugar. Fiquei espantado com as instalações. Não sei o que é um hotel de luxo, porque nunca vi nenhum, mas é assim que o imagino. Perguntei ao padre por que razão era tudo tão grande e tão caro. Afinal, se fosse um bocadinho mais apertado, podia ajudar mais gente. Ele respondeu que tinha apenas cumprido as exigências da lei (mais uma vez tem a ver consigo, senhor ministro). Aliás o prior confessou que não tinha conseguido fazer mesmo tudo, porque não havia dinheiro, e contava com a distracção ou benevolência dos inspectores para lhe aprovarem o lar. Se não, lá ficamos nós mais uns tempos nas barracas.
Senhor ministro, acredito que tenha excelentes intenções e faça isto por bem. Como não sabe o que é a pobreza, julga que as exigências melhoram as coisas. Mas a única coisa que estas leis e fiscalizações conseguem é criar desigualdades dentro da miséria. Porque não se preocupam com as casas dos pobres, só com as que ajudam os pobres."
Lembro-me de terem acontecido situações destas há uns tempos atrás e fiquei até surpreendida com esta manifestação-denúncia de JCN sempre tão consentâneo com o "status quo"...
Hoje, porém, lá veio o meu "querido" Ferreira Fernandes exprimir aquilo que me tinha ficado a pairar no espírito sem que eu tivesse conseguido determinar bem o que era. Diz ele, no seu estilo tão característico:
Aqui no DN, João César das Neves escreveu ontem um hino ao homem. É assim, conta ele, que um homem pobre foi acolhido num lar feito por gente generosa para homens pobres e velhos. Os doces eram de esmola e as habitações espartanas - mas eram, o que reconfortava o homem de reforma magra. Infelizmente, é sempre JCN a contar, há o Estado mau que se mete com os homens bons. Veio a ASAE, e a sua mania dos produtos embalados, veio o Instituto da Segurança Social, e a sua mania das fitas métricas, e fecharam o lar. E o velho e pobre homem, diz JCN, vive agora numa barraca. Ah, grito lancinante a favor dos homens e contra a frieza do Estado! E estava eu com os olhos marejados quando me lembrei que JCN chama às suas crónicas "Não Há Almoços Grátis". Parei. Mas (agora sou eu a falar), então, JCN sabe que os homens, e até os homens donos de lares, não são necessariamente bons. E que entre lares fechados por não terem tantos bidés como a ASAE quer e lares onde os velhos são maltratados, haverá mais destes do que daqueles (vale um almoço de aposta?). Talvez o velho, inventado por JCN, quando grita ao ministro (que representa o Estado) "veja lá se deixa de me ajudar", esteja errado. Talvez ele precise mesmo de normas e leis a ajudar porque os almoços nunca são grátis e os homens deixados à rédea solta trazem a liberdade da "raposa livre no galinheiro livre" (cito Lacordaire para mostrar que não é o anticatolicismo que me move).
Infelizmente há sempre exageros na interpretação das leis. Está bem que elas existem para nos proteger, mas quando se cai no absurdo, situações como essa ocorrem.
ResponderEliminarBeijoca!
Estou como tu, não costumo ler JCN, em contrapartida li hoje a crónica de FF, como sempre, e fiquei com umas luzes sobre o que JCN teria escrito!
ResponderEliminarMas voltei a não ler...muito longa a crónica para a minha preguiça!
Triste sina, a dos pobres quando acumulam com velhice! :-((
Abraço
Infelizmente é a realidade que temos.
ResponderEliminarEstive a ver há pouco um programa na TV (vejo muito pouca televisão, mas estava a descansar um pouco e ouvi) sobre a pobreza em Portugal
Foi, simplesmente, confrangedor.
Boa semana. Beijinhos
as vezes o excesso de zelo e de "correccao politica" nao vai de encontro a realidade e ao que se pode fazer
ResponderEliminarBjinhos
Paula
Por falar em pobreza recordo “A Boa e a Má Moeda”, lembram-se?
ResponderEliminarDuas faces… e muita pobreza de espírito.
Gostava de um de outro
ResponderEliminar(O Ferreira Fernandes até o tenho por testemunha, lá onde as coloco para o dia do juízo final)
Mas de uns tempos a esta parte
embora mantendo seu engenho e arte
falam-me dos efeitos,
não das causas.
Fazem-no constantemente, sem pausas
Ainda hei-de descobrir
de que andam ambos a fugir...
Nem 8 nem 80!
ResponderEliminarOu se deixa andar, ninguém se rala com os problemas sociais à vista de todos, ou somos mais papistas do que o Papa!
Já tive ocasião de observar casos que caracterizam perfeitamente esta situação caricata.
Nomeadamente com a ASAE na aplicação de regulamentos feitos em cima do joelho, só pode ser, em demasiados casos.