quarta-feira, 27 de abril de 2016

Mário de Sá-Carneiro


Ontem à noite, quase por acaso, assisti a um excelente programa na RTP2 sobre Mário de Sá-Carneiro, poeta de Orpheu, no centenário do seu suicídio que aconteceu precisamente no dia 26 de Abril de 1916, no seu quarto do Hotel de Nice em Paris.

Foi o programa “O Estranho Caso Do Mário De Sá-Carneiro” com comentários de estudiosos do Orpheu e dos seus poetas como Richard Zenith, Fernando Cabral Martins, Jerónimo Pizarro, Rui Afonso Santos e Eduardo Lourenço.

O poeta, diretor – com Fernando Pessoa – da bombástica revista Orpheu, cujos dois únicos números foram editados em 1915 a expensas do pai de Sá-Carneiro, era esperado em Portugal em Março de 1916, mas por essa altura já ele estava a considerar a hipótese de se suicidar tomando «uma forte dose de estricnina».

Em 31 de Março escreve uma carta ao seu amigo Fernando Pessoa em que diz:

Paris - 31 Março 1916

Meu Querido Amigo.

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas "cartas de despedida"... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro. [...]

Mário de Sá-Carneiro

Poucas semanas mais tarde, Mário de Sá-Carneiro encenará no hotel onde vive em Paris a sua trágica morte: com cinco frascos de arseniato de estricnina e um único espectador convidado – José Araújo – morrerá, depois de um enorme sofrimento, às oito horas e vinte minutos do dia 26 de Abril de 1916. Os haveres do poeta – uma mala com cartas recebidas dos seus amigos, nomeadamente de Fernando Pessoa – foram confiscados pelos donos do hotel como forma de pagamento das dívidas por falta de pagamento. Tinha apenas vinte e cinco anos.

«Vítima de uma doença moral terrível e, no fundo incapaz de atapetar a vida contra nós e contra o mundo» (Sá-Carneiro)

 «Ele tinha a doença de todos nós, o desalento crónico.»

Fernando Pessoa dirá dele:

«Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.»

(In Athena n.º 2, Lisboa, Novembro, 1924.)

10 comentários:

  1. Tão jovem na idade e com o desalento de um velho.
    Uma pena.
    Abraço

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  2. Talvez seja desta que coloco o Fernando a beber um tinto da Charneca em Cacilhas... como se adivinhasse o que se passava em Paris, nesse 26 de Abril...

    abraço

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  3. «São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe»

    Quem diz melhor?

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  4. Uma bela recordação do legado do poeta a propósito dos cem anos da sua morte / suicídio, que aconteceu em Paris a 26 de abril de 1916.

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  5. Mário Sá-Carneiro: uma vida e morte singulares.
    Ele próprio como a via (queria):

    Fim

    Quando eu morrer batam em latas,
    Rompam aos saltos e aos pinotes,
    Façam estalar no ar chicotes,
    Chamem palhaços e acrobatas!

    Que o meu caixão vá sobre um burro
    Ajaezado à andaluza...
    A um morto nada se recusa,
    Eu quero por força ir de burro.

    (M S-C)

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  6. "O Estranho Caso do Mário de Sá-Carneiro" também vi e também foi por acaso, estava a dar uma voltinha com o comando da TV, mas vejo muito RTP2, que por sinal dá programas muito interessantes.

    Beijinho

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  7. Obrigado Graça ! :( ... Não sabia dos pormenores ! ...
    Aos 25 anos, após passados os melhores quinze dias da sua vida, como sempre sonhou, nos quais teve tudo que sempre quis, pensando ainda que poderia ser feliz mais tempo, psicologicamente, às mil maravilhas, tomar uma decisão tão drástica, apenas por falta de dinheiro ...? ... Que coisa horrível ! ... Inacreditável, mas real ! :((( ... Nem as amizades lhe valeram ? ... :(((

    Um Abraço, triste, Graça !

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  8. "De tudo houve um começo... e tudo errou...
    - Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
    Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
    Asa que se elançou mas não voou..."

    Mário de Sá-Carneiro/Quási

    Eu assisti ao programa. Excelente!

    Um beijinho, Graça

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