quarta-feira, 14 de outubro de 2015

É assim que nós somos!

(Página de Diário, Quarta-feira, 28 de Julho de 1999)

«Não se lhe lê na cara nem no modo, bem ao contrário, mas o senhor Vargas é homem de meios. Com sussurros de admiração há quem diga que deve ser a pessoas mais rica da vila, talvez, mesmo do concelho.

Contava ele tempos atrás que começou a trabalhar aos doze anos como marçano e nunca mais parou. Sem festas nem divertimentos. Mesmo agora, a chegar aos setenta, não quer jornal nem televisão, nada o distrai tanto como depois da ceia conferir contas e recibos.

A sua fortuna começou com as camas de ferro. Os concorrentes não compreendiam que o seu preço fosse tão baixo, até que, tarde e más horas, descobriram que ele mandara a fábrica diminuir dez centímetros a todas as dimensões.

- Vendi milhares. Assim à vista ninguém dava conta da diferença, e aí estava o ganho.




Encontrei-o esta manhã, quando saía da esquadra da polícia, sombrio. Um rapazote seu empregado não resistiu à tentação e ontem roubou-lhe o Volvo, novinho em folha. Às tantas, talvez com o vinho, esbarrou-se com ele por uma ribanceira abaixo.

- O filho da puta nem um arranhão sofreu, mas o carro ficou sem conserto, vai para a sucata. E sabe o que lhe digo? A culpa nem é dele, deles, esses madraços que anda por aí à boa vida. A culpa é do governo! Hoje recebe-se sem trabalhar! Doem-te as costas, amiguinho? Aqui tens o subsídio. E assim é que o país vai por água abaixo!

Dou-lhe razão, mas em vez de o acalmar a minha concordância excita-o:

- Sabe o que era preciso? Era fazer como lá nas Arábias, e perdiam o vício! Roubaste? Mãozinha cortada!

Parado na borda do passeio, o senhor Vargas levanta o braço direito acima da cabeça, espalma a mão e, como se fosse um cutelo, «decepa» a outra pelo pulso.

Abano a cabeça que sim, e inesperadamente a cena tem um final burlesco. O senhor Lopes sai da loja de ferragens, caminha para o nosso lado, e ao ver o amigo com a mão sobre o pulso, pergunta contristado:

- Então, Vargas, esse reumatismo não passa?»


(In “Pó, Cinza e Recordações”, José Rentes de Carvalho, Quetzal, 2015)


7 comentários:

  1. Segue o blogue dele?
    Fica aqui a indicação just in case (http://tempocontado.blogspot.com/)
    Beijinhos

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    1. Às vezes passo por lá....

      Gosto muito de ler autores portugueses.

      Beijinhos

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  2. Pelos vistos os meus amigos bloggers não gostaram da crónica do Rentes de Carvalho. Porque terá sido?

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    1. Ontem estacamos todos no Pátio das Cantigas da Afrodite, Graça!!
      :))

      Janita

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    2. Claro! E ainda bem que assim foi, porque eu não tenho paciência nem apetência para esse tipo de divertimento. Que se há de fazer?!

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  3. E pronto, veio um final que não esperava e me fez soltar uma gargalhada!
    Bjs

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