(Página de Diário, Quarta-feira, 28 de Julho de 1999)
«Não se lhe lê na cara nem no
modo, bem ao contrário, mas o senhor Vargas é homem de meios. Com sussurros de
admiração há quem diga que deve ser a pessoas mais rica da vila, talvez, mesmo
do concelho.
Contava ele tempos atrás que
começou a trabalhar aos doze anos como marçano e nunca mais parou. Sem festas
nem divertimentos. Mesmo agora, a chegar aos setenta, não quer jornal nem
televisão, nada o distrai tanto como depois da ceia conferir contas e recibos.
A sua fortuna começou com as
camas de ferro. Os concorrentes não compreendiam que o seu preço fosse tão
baixo, até que, tarde e más horas, descobriram que ele mandara a fábrica
diminuir dez centímetros a todas as dimensões.
- Vendi milhares. Assim à vista
ninguém dava conta da diferença, e aí estava o ganho.
Encontrei-o esta manhã, quando
saía da esquadra da polícia, sombrio. Um rapazote seu empregado não resistiu à
tentação e ontem roubou-lhe o Volvo, novinho em folha. Às tantas, talvez com o
vinho, esbarrou-se com ele por uma ribanceira abaixo.
- O filho da puta nem um arranhão
sofreu, mas o carro ficou sem conserto, vai para a sucata. E sabe o que lhe
digo? A culpa nem é dele, deles, esses madraços que anda por aí à boa vida. A
culpa é do governo! Hoje recebe-se sem trabalhar! Doem-te as costas, amiguinho?
Aqui tens o subsídio. E assim é que o país vai por água abaixo!
Dou-lhe razão, mas em vez de o
acalmar a minha concordância excita-o:
- Sabe o que era preciso? Era
fazer como lá nas Arábias, e perdiam o vício! Roubaste? Mãozinha cortada!
Parado na borda do passeio, o
senhor Vargas levanta o braço direito acima da cabeça, espalma a mão e, como se
fosse um cutelo, «decepa» a outra pelo pulso.
Abano a cabeça que sim, e
inesperadamente a cena tem um final burlesco. O senhor Lopes sai da loja de
ferragens, caminha para o nosso lado, e ao ver o amigo com a mão sobre o pulso,
pergunta contristado:
- Então, Vargas, esse reumatismo
não passa?»
(In “Pó, Cinza e Recordações”, José Rentes de Carvalho, Quetzal, 2015)
Segue o blogue dele?
ResponderEliminarFica aqui a indicação just in case (http://tempocontado.blogspot.com/)
Beijinhos
Às vezes passo por lá....
EliminarGosto muito de ler autores portugueses.
Beijinhos
Pelos vistos os meus amigos bloggers não gostaram da crónica do Rentes de Carvalho. Porque terá sido?
ResponderEliminarOntem estacamos todos no Pátio das Cantigas da Afrodite, Graça!!
Eliminar:))
Janita
Claro! E ainda bem que assim foi, porque eu não tenho paciência nem apetência para esse tipo de divertimento. Que se há de fazer?!
EliminarE pronto, veio um final que não esperava e me fez soltar uma gargalhada!
ResponderEliminarBjs
Ora ainda bem!!!
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