As datas têm muita importância para mim. Todos as manhãs, ao pensar em que dia estamos, a minha memória automaticamente vasculha as minhas lembranças e me diz: “Faz hoje anos que...” ou: “Hoje faz anos esta ou aquela pessoa.” É assim. Não faço esforço.
Hoje, por exemplo, faria anos o meu pai. 91 e um anos se fosse vivo. Mas, infelizmente, já quase passou mais tempo morto que passou vivo. Era um minhoto muito alegre e muito inteligente. Um autodidacta. Um aventureiro. O pai dele, que era uma pessoa importante do governo da terra, morreu logo após os quarenta anos e deixou a minha avó viúva, com cinco filhos pequenos e sem qualquer reforma que os sustentasse – que naquele tempo a crise era contínua para grande, grandíssima parte da população e não havia pensões de coisa nenhuma. Assim, aos treze anos, o meu pai meteu-se no comboio para Lisboa, à aventura, sem dizer nada à mãe. Trabalhou nisto e naquilo, em tudo o que conseguiu; aprendeu inglês, francês e algumas frases de alemão com os refugiados da Segunda Guerra. Matriculou-se na Escola Comercial Veiga Beirão que frequentou apenas até ao 4º ano (actual 8º) tendo então sido expulso por estar conotado com o “reviralho”.
Um apaixonado por música especialmente música americana dos anos 40, juntou uma colecção de discos (daqueles muito pesados, de 78 rotações por minuto) que tocava num gramofone. Cantava e assobiava muito bem e sabia de cor imensas árias das óperas mais famosas. Parece-me que já aqui disse que o meu gosto musical nasceu a partir das preferências musicais do meu pai, do que ele cantava e do que ele escolhia para ouvir na rádio.
Quando comecei a ter os meus próprios gostos musicais, ele comprava-me os discos que eu lhe pedia e até o meu primeiro gira-discos foi montado por ele a partir de peças de outros gira-discos mais antigos. É escusado dizer, mas não é de mais lembrar que, nos anos 50/60, não havia a oferta de artefactos e maquinaria que há agora, nem o dinheiro que há agora, apesar de gritarmos e das televisões nos gritarem diariamente a crise aos ouvidos e aos olhos.
O primeiro LP que tive dos Beatles foi o meu pai que mo trouxe da Venezuela com algumas músicas que ainda não se tinham ouvido por cá – foi de gritos! E, das muitas vezes que se deslocava a Madrid, sempre me trazia singles de música inglesa (a minha favorita à época) que ele comprava “a olho”. Dizia ele que chegava às discotecas – chamavam-se assim as lojas onde se vendiam os discos – e pedia “o disco mais barulhento” ou “o último” editado.
O Álbum Branco dos Beatles foi o primeiro álbum duplo posto à venda em Lisboa. (Que saudades das atraentes e completíssimas discotecas da Rua do Carmo – a Sassetti e a Valentim de Carvalho!) Era caro e, por isso, nem pedi lá em casa que mo comprassem.
Pelo Carnaval de 1969, por altura de um “assalto” que alguns colegas meus da Faculdade fizeram lá a nossa casa em Sintra, recebi o desejado Álbum Branco, numerado, e com uma dedicatória que pretendia brincar com as línguas que ele sabia (e que eu estudava, porque estava no meu 3º ano de Germânicas) e que dizia assim:
“Sintrorum, fünfundzwanzig February, 1969
Ich habe lost my pinha al regalar questo disco to my filha. Pá ... si.... ência
Auf ... io de azeite.
For Posteritá.”
Morreu uns dias depois, de ataque cardíaco provocado pelo tremor de terra que assolou Lisboa e arredores em 28 de Fevereiro de 69.
História bonita, comovente, cheia de ternura e saudade!
ResponderEliminarEu estava grávida do meu filho mais velho quando se deu esse tremor de terra, nessa data tão fatídica para a tua família.
As histórias que me vieram à cabeça com esta tua evocação filial...
Abraço
Estava eu casada há 3 meses.
ResponderEliminarPaz à sua alma.
Gostei da tua história e devo dizer-te que a parte relativa ao teu Avô é igualzinha à do meu Avô materno. Morreu com 40 anos e deixou 5 filhos orfãos para a mulher criar... sem condições.
Mesmo assim chamo-te afortunada pois até casar poucas condições tive para comprar os meus discos favoritos.
Gostei de te ler uma vez mais.
Beijosssss
Obrigada, minhas queridas, pelos vossos comentários. São muito tocantes. Rosinha, se eu soubesse que essas histórias viriam à tua cabeça, não teria escrito este texto...
ResponderEliminarBeijinhos.
Não quero comentar por comentar, mas para te dizer que se visse uma senhora professora que eu conheci na nossa juventude e que era a Senhora tua mãe, eu ia logo falar-lhe, e, dar-lhe um beijinho porque a cara dela está ainda bem presente na minha memória.
ResponderEliminarO teu pai, que à época eu conhecia, embora só de vista, no meu disco rígido está tudo apagado, a cara dele foi-se embora completamente.
Ao comentares e, ao sentires essa saudade que quase nos sufoca, também eu a tenho pelo meu, parti para uma viagem de trabalho de 23 dias e quando cheguei já estava feito o funeral.
O meu herói, deixou-me sem lhe poder dar um beijo de despedida. Morreu com 62 anos!
Obrigada, Gato Preto, por te lembrares assim da minha mãe! Lembrares-te do meu pai será mais difícil porque ele trabalhava em Lisboa e só vinha para jantar.
ResponderEliminarLamento pela forma como o teu pai partiu sem estares presente.
Beijinho.