Devia ter sido ontem, dia do aniversário do seu nascimento. Mas ontem foi dia de homenagear o nosso Santo lisboeta. E hoje, ainda vamos a tempo de falar um pouco sobre grande Fernando Pessoa. Para isso, deixo aqui uma descrição da sua natureza e maneira de ser, nas suas próprias palavras:
"É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou.
Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) — por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do auto-domínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinárias, inexpulsáveis associações de ideias cujo termo era o infinito. Não posso evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões, e não tenho força de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num só pensamento central em que se percam os pormenores sem importância mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; não são pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor música, mas nunca compus. Estranhas concepções em três artes, belos voos de imaginação acariciam-me o cérebro; mas deixo-os ali dormitar até que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.
O meu carácter é tal que detesto o começo e o fim das coisas, pois são pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma solução para os mais altos, mais nobres, problemas da ciência, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma solução para os males da sociedade, mesmo na sua concepção — enfurece-me. E, contudo, não sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difícil de conceber.
Embora tenha sido leitor voraz e ardente, não me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu próprio espírito, sonhos meus — mais, provocações de sonhos. A minha própria recordação de acontecimentos, de coisas externas, é vaga, mais do que incoerente. Estremeço ao pensar quão pouco resta no meu espírito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje é um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje."
1910?
(in "Fernando Pessoa Quando fui outro" por Luiz Ruffato, Alfaguara, Editora Objctiva, Lisboa, 2010)
E eu, que até fiz questão de referenciar expressamente, Fernando Pessoa, deixei passar o seu aniversário.
ResponderEliminarO que vale é que há sempre alguém que o faz e com este relevo.
Fernando Pessoa bem merece a nossa melhor atenção e gratidão pela extraordinária obra que nos legou.
had never heard of the guy.... :)now i know though
ResponderEliminarBut, Marlena, you have to read him (and about him, too!). He is translated into several languages. He is our best poet in the 20th century. His "master" (one of them) was the American Walt Whitman.
ResponderEliminarAmigo António, não se preocupe. Estamos sempre a tempo de homenagear o grande Pessoa!
ResponderEliminarÉ por ter lido estas coisas na juventude que não gostava de Fernando Pessoa. Autênticas charadas para a minha compreensão.
ResponderEliminarFelizmente que os Brasileiros me ensinaram a descobri-lo, a compreende-lo e a amá-lo.
Beijossssss
Para se falar de Pessoa, está-se sempre bem enquadrado na data.
ResponderEliminarEste texto tocou-me particularmente (até por coisas que tenho em mente...)
Não se preocupe com a data exata amiga, FPessoa é eterno e todo dia é dia de uma linda poesia!!!!!
ResponderEliminarComo dizem os mineiros (nascidos em Minas Gerais, explico): um abraço, um beijo e um queijo procê.
De facto, Tite, Fernando Pessoa dito pela Maria Bethânia é um verdadeiro espanto! Também gosto: é a mistura exacta de dois talentos. E aquela maneira doce dos brasileiros usarem a nossa língua é uma delícia. Não é, Chiquita? Um queijo também procê, quirida!
ResponderEliminarPois é! O pior é quando os Rogeritos Saramagos, Viriatos e outras coisas mais se põem a magicar... Sei lá o que pode sair dali!
Mas este texto, para quem gosta de Pessoa, é uma maravilha, não é?!
Abraços pessoanos!