quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ainda sobre o Manifesto Anti-Dantas



Encontrei, por acaso,  no livro "O que Darwin escreveu a Deus e outras cartas que nunca chegaram ao destino" de José Jorge Letria (2009) uma (hipotética) carta deliciosa de Júlio Dantas com uma  (hipotética) resposta a Almada Negreiros  a propósito do seu Manisfesto Anti-Dantas e que não resisti a transcrever:

      (Dr. Júlio Dantas) 

Ex.mo Senhor,


Como se atreveu o senhor, que é pintor, poeta, dramaturgo, cenógrafo, bailarino e muitas outras coisas mais, embora todas elas de menos, a achincalhar uma figura respeitável como a minha, tentando manchar e vilipendiar uma carreira, uma obra e um percurso cívico tão incomum neste país onde tão poucos são os que logram chegar tão alto e tão longe, com público e inigualável reconhecimento?

Como se atreveu o senhor a dizer que eu que tenho hálito de rosas cheiro mal da boca e que se eu for português o senhor prefere ser espanhol?

Como se atreveu o senhor a tentar fazer uma paródia de feira do meu drama sempre admirado e aplaudido que dá pelo título de A Ceia dos Cardeais?

Como se atreveu o senhor, artistazeco sem eira nem beira dessa tribo infectado Orpheu, onde pontificam loucos e pederastas, a querer transformar em motivo de chacota pública um escritor de dimensão nacional e internacional, que ainda por cima foi ministro e é académico de reconhecido mérito em Portugal e no Brasil? Razão tinha eu e o professor Egas Moniz, esse com algumas reticências que não compreendo, para vos querermos mandar internar.

Como se atreveu o senhor a insinuar que eu escrevo mal e que não tenho talento nem lugar na posteridade?

Como se atreveu o senhor a querer ganhar notoriedade à custa do meu nome honrado, consagrado e venerado, enquanto poestratos como esse senhor Fernando Pessoa, que nunca ninguém há-de ler, se embebedam ao balcão de tabernas da baixa lisboeta, e outros vanguardistas de idêntico calibre desafiam o bom-gosto e os bons costumes passeando pela trela no Chiado animais de capoeira em vestes circenses, depois de passarem muitos dias sem o mais básico convívio com a água e o sabão?

Creia o senhor que a História só não o julgará porque é nula a validade dos seus insultos e porque o manto do esquecimento o há-de amortalhar muito antes que alguém se atreva a ler em voz alta as reles aleivosias com que quis mimosear-me. Médico que sou, de bom grado assinaria a ordem de internamento para si e para a infecta horda de vândalos que consigo faz coro nesta escalada de vexames lançados contra os verdadeiros pilares da nossa vida cultural, tão celebrada aquém e além-mar, em África e no Brasil.

Pois fique o senhor sabendo que só não escrevo um Manifesto Antialmada por ser inútil esbanjamento de tempo e por temer que a boa gente da margem sul do Tejo se sentisse ofendida ao identificar o topónimo com o seu deslustrado e deslustrante apelido de artista menor.

Sem outro assunto de momento,
Júlio Dantas, académico

4 comentários:

  1. Apesar de nunca ter sido um bom aluno soube sempre distinguir um Óptimo professor(a). É verdade! Acredite que não lhe estou a “dar graxa”, é mesmo um prazer estar aqui nesta sala de aulas.
    Parabéns!

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  2. É sempre com profundo agrado que se revêm estes extraordinários textos/manifestos daqueles conturbados mas animados tempos da geração de Dantas, Almada Negreiros e Fernando Pessoa.
    E já não os lemos com tanta frequência como até se aconselharia, que muito teríamos a reaprender, com toda a certeza.

    Até me apetecia acabar com o termo de encerramento de algumas cartas que se usavam nesses e até em tempos mais próximos mas já de meados do séc. XX.

    Atto. Venerador e Mto Obrigado
    (por esta revisitação a Júlio Dantas)
    António N

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  3. Agradeço (um bocadinho babada) os elogios (exagerados, claro!) dos meus queridos amigos mais recentes. Vou tentar continuar neste registo e noutros mais de acordo com os picos da roseira brava...

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