sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Século XXI



A propósito do excelente programa documental  «2077 - 10 Segundos para o Futuro» que a RTP1 tem passado à terças-feiras, lembrei-me do poema «Século XXI» de Fernando Pinto do Amaral.


Falam de tudo como se a razão
lhes ensinasse desesperadamente
a mentir, a lançar
sem remorso nem asco um novo isco
à espera que alguém morda
e acredite nessa liturgia
cujos deuses são fáceis de adorar
e obedecem às leis do mercado.

Falam desse ludíbrio a que chamam
o futuro
como se ele existisse
e as suas palavras ecoam
em flatulentas frases
sempre a favor do vento que as agita
ao ritmo dos sorrisos ou das entrevistas
em que tudo se vende
por um preço acessível: emoções
&sexo&fama&outros prometidos
paraísos terrestres em horário nobre
- material reciclável
alimentando o altar do esquecimento.

O poder não existe, como sabes
demasiado bem-apenas uma
inútil recidiva biológica
de hormonas apressadas que procuram
ser fiéis ao comércio
dos sonhos sempre iguais, reproduzindo
sedutoras metástases do nada
nos códigos de barras ou nos cromossomas
de quem já pouco espera dos seus genes.


Fernando Pinto do Amaral
(in Luz da Madrugada)

10 comentários:

  1. Real e imaginário o poema em que se ilustra a adoração dos deuses que, consumimos, segundo nossos objetivos consumistas do poder.
    Abraço.

    ResponderEliminar
  2. Gostei muita da postagem!!

    Beijos. Bom fim de semana.

    ResponderEliminar
  3. Há poetas
    que pegam no verso
    como se fosse martelo
    e batem com força no futuro
    para verem por dentro
    o que o futuro tem

    Tenho pena dos poetas
    que ignoram o poder
    que o Poder tem

    Ainda que poemem bem

    ResponderEliminar
  4. Querida Gracinhamiga I

    Conheço o Prof Fernando Pinto do Amaral desde que ele era criança pois a sua família era vizinha da minha. é como agora se diz um Homem bué fixe. Os alunos de Letras dizem muito bem dele. O que aproveito quando nos encontramos para lhe meter umas "farpas". "Tal como o Adriano Moreira vais casar com uma tua aluna? :-))) Ele ri-se e costuma chamar-me bandido...

    A sua obra literária estende-se pelo romance, poesia, ensaios etc

    Este poema é um encadeado de ideias e de afirmações que entre elas se concatenam para o Poeta chegar ao Poder que não existe, singularmente utilizando vocábulos médicos. Excelente. Parabéns Fernando e parabéns Graça

    Qjs da Raquel e do teu velho amigo
    Henrique, o Leãozão

    Que pasa? Ainda não foste à NOSSA TRAVESSA talvez para saber se estou melhor ou pior. Não pensava isso de t. Mas agora...

    ResponderEliminar
  5. Excelente postagem como nos habituou a ler. Obrigada.

    Hoje, uma Pérola, do nosso amigo Gil António:- Amor, puro sentimento, relevante fascinação.
    -
    Bjos
    Sábado feliz.

    ResponderEliminar
  6. Texto atual e penso que se vai ler sempre atualizado! bj

    ResponderEliminar
  7. o "poder" é palpável!
    e cheira-se à distância..
    nem na melhor da minha boa vontade consigo vê-lo
    como "recidiva biológica" - nem sequer em eventual subtileza irónica!

    fora esse pequeno nada - tudo bem!

    beijo

    ResponderEliminar