Última aula de V. Nemésio em 9/12/1971
Eu vira a notícia no Jornal de Letras que o António Mega Ferreira, meu diário companheiro de comboio Sintra-Lisboa no tempo de Faculdade (ele entrava no Algueirão e sentava-se sistematicamente no assento frente ao que eu utilizava na carruagem de 1ª classe e que, por isso, ia mais vazia. Líamos, estudávamos no comboio, sabíamo-nos colegas, eu de Letras, ele meu vizinho de Direito. Nunca nos falámos, porém. Mais por timidez da parte de ambos do que por pretensa arrogância – da parte dele, claro!) ia promover uma homenagem ao Professor Vitorino Nemésio lá no (seu) Centro Cultural de Belém, no dia 18.
Logo anunciei que gostaria muito de assistir à comemoração que começaria por uma mesa redonda sobre o Homem e a sua Obra, onde iria participar o também meu professor igualmente açoriano António Machado Pires, à época assistente de Nemésio. Não vou esquecer nunca a sua figura magra, testa alta de pessoa inteligente, cabelo ondulado posto para trás algo despenteado e o olhar fixamente atento, na primeira fila do anfiteatro, perscrutando todas as palavras do Mestre que, quando se perdia no discurso das aulas teóricas – e isso acontecia não raramente – se virava para ele e dizia seguro da prontidão da resposta: «Ó Machado Pires, como se chamava aquele escritor....?» O Machado Pires (que era um querido de um professor mas a quem, não obstante, um grupinho de meninas tontas – eu incluída, naturalmente! – trataram de chamar por brincadeira por “carapau para o gato”) assegurava e bem! as aulas práticas da cadeira de História da Cultura Portuguesa que os alunos de Germânicas tinham no seu plano de estudos do 2º ano. E era ele, de facto, que “nos ensinava alguma coisa” e nos punha os limites da matéria que haveríamos de saber e de estudar para o exame porque o Mestre, nas aulas teóricas, fazia um pouco como no programa “se bem me lembro” que manteve durante anos na RTP, divagava dentro da sua extensíssima e variadíssima cultura.
A homenagem no CCB seguiria com a leitura do texto que serviu de base à última lição dada pelo Professor no habitual Anfiteatro I da minha Faculdade e que ocorreu no dia 9 de Dezembro de 1971, ano em que terminei a minha licenciatura, a que não assisti ao vivo por estar casada há meia dúzia de semanas e porque, na época, as notícias não corriam, como hoje, à velocidade dos e-mails ou do Facebook. Por fim, realizar-se-ia a projeção do documentário “Vitorino Nemésio – Viagem” sobre a vida e depoimentos sobre a vida do Professor, enquanto escritor, poeta e grande homem de cultura.
Um programa que, pensei, me encheria as medidas.
Acabei por não ir, facto que se deve – como me acontece amiúde – à provincialidade, termo que inventei agora mesmo por paralelo à insularidade de que gozam os habitantes das Ilhas, leia-se Regiões Autónomas. Só que estes tiveram sempre e têm, por enquanto, um subsídio que lhes cobre, ou pretende cobrir, a dita insularidade; enquanto nós, os que vivemos (contrariados) “na província” não auferimos de qualquer abono que nos subsidie as idas à capital...
Mas tive pena. E, em jeito de homenagem caseira ao Professor, relembrei a sua imensa bonomia – quando tive de fazer a prova oral (nesse tempo na Faculdade de Letras não havia lugar a dispensas das orais) de Cultura Portuguesa, umas orais antes da minha, estava a ser examinada uma colega não sei de que curso que, em plena sala de exame, se largou a chorar (episódio que acontecia muitas vezes nas orais dada não só a eventual falta de preparação dos alunos, mas muito mais pela imensa timidez de que sofríamos nesse tempo cinzento de fechadismo pessoal, cultural, social, moral e de toda a ordem). Perante a moça que se desfazia em lágrimas, o bom do Professor, também quase de lágrima no olho e com a voz trémula, tratou de dizer: «Vá-se lá embora que eu não posso ver ninguém a chorar.» E não a chumbou!
Lembrei-me de como foi ele que “me iniciou” na leitura de Fernando Pessoa partindo da Mensagem para o estudo dos símbolos e dos mitos nacionais, nomeadamente do sebastianismo, do messianismo e do saudosismo de que sofremos desde tempos imemoriais sem quase nos darmos conta.
Lembrei-me da loucura dos apontamentos que tínhamos de tirar nas aulas teóricas e que dificilmente tinham sequência dada a dispersão de pensamento do (grande) Professor que, sem que nos apercebêssemos estava a anos luz de nós em todos os sentidos. E dispersão por dispersão, dispersávamo-nos nós, tontas meninas, e acabávamos por brincar nas suas aulas. Por vezes, perante alguns comportamentos menos próprios de alunos já na casa dos 18, 19, 20 anos – o que naquele tempo deveria ser já idade para grandes responsabilidades – o Professor interrompia a sua peroração e dizia com muita graça: «Se não querem estar com atenção à aula, durmam, façam a tradução de latim escrevam uma carta à namorada, mas estejam calados!»
Quem disse que os alunos só agora se portam mal?
Página de apontamentos de aula "normal"
Carol
ResponderEliminarQuem não divagou, quem não rabiscou, quem não conversou?
Do Professor lembro-me do "se bem me lembro...", das suspensões das frases como se as palavras se lhe estivessem a tomar forma num pensamento que se avolumava e sobrepunha a outro pensamento. E cada suspensão era como o aguçar da imaginação de quem o ouvia...
Ouvi-lo era como comer cerejas.
Beijo
Nest post
ResponderEliminareu sou o aluno
a Carol a professora
(sem ironia)
PS: Que pena hoje em letras não serem obrigatórias as provas orais,
hoje em que há "lata" a mais...
Querida Carol
ResponderEliminarO meu plano de estudos não me facultou o privilégio de ter Vitorino Nemésio como professor mas lembro-me bem do comunicador por excelência que conheci no "Se bem me lembro..." que nos deixava sempre com vontade de continuarmos a ouvir as suas riquíssimas divagações!
"Mau Tempo no Canal" é um dos meus livros preferidos e embora tenha sempre dificuldade em fazer declarações destas não vacilo nada ao dizê-lo!
Quanto ao teu texto vê-se nele o reflexo do Mestre!
Abraço
Essa da provincialidade é aquilo a que eu chamo uma bucha bem metida...
ResponderEliminar:)
Adorei este relato, Carol.
ResponderEliminarquanto a Vitorino Nemésio, lembro-me bem de não pere nenhum dos seus programas na RTP ( ao domingo, "Se bem me lembro")
Querida Carol, ainda guarda os apontamentos dessas aulas? Onde já vão os meus apontamentos da faculdade. E tiravam-se folhas e folhas deles, por aula, que os grandes mestres eram mesmo assim: deambulavam pelos assuntos e no fim quando chegávamos a casa, era um 31 conseguir compilar aquilo tudo... Como será agora?
ResponderEliminarMas teve o privilégio de ter esse grande ícone, como mestre! :)
Era, de facto, um Homem de cultura, um Senhor, e um querido!
ResponderEliminarManuela, ainda guardo todos os cadernos de todas as cadeiras do curso - e foram 27! Naquele tempo as licenciaturas tinham cinco anos e muitas cadeiras. Agora... é diferente...
Obrigada, meus queridos amigos, pelas vossas palavras sempre tão simpáticas.
Beijinhos.
Estimada Amiga Carol,
ResponderEliminarTive o pregilegio de conhecer pessoalmente o Dr. Vitorimo de Nemesio, numa das vezes que fui a Faculdade de Letras em Lisboa.
A minha tia, era a bibliotecaria da Faculdade, chamava-se Felizarda.
Pois mais sei sobre esse digno Professor, mas pena foi nao ter podido assistir ao evento.
Um abraco amigo