terça-feira, 6 de novembro de 2012

Vila d'Arcos

Faria hoje 93 anos (como o meu pai) e foi uma das maiores e das mais interventivas poetas da atualidade. Para assinalar a sua passagem indelével pelas nossas Letras, transcrevo uma pequenina história (da Terra e do Mar).


«Vila d’Arcos fica no Norte, um pouco para Leste, numa região de montanhas. É uma cidade de província e pequena com ruas empedradas em torno da catedral enorme como um navio de eternas viagens. As suas casas antigas – nobres mesmo quando pobres – são proporcionadas com a justeza desde o degrau da escada ate ao quadrado da janela, desde a balaustrada da varanda até à superfície da parede de granito sem reboco onde só a pedra de armas com arruelas, grifos e leões é grande de mais sobre os ferros e as madeiras desconjuntadas da porta; como se no mundo em que estamos nada importasse, nem o frio do granito, nem a estreiteza sombria dos quartos, nem a pobreza monótona dos dias, mas só importasse a nobreza que mostramos à luz e que é o projecto da nossa alma.

É uma cidade antiga onde estagnada se desagrega e se dissolve lentamente uma vida desvivida gesto por gesto, sílaba por sílaba.

Os carros gemem ao longo das ruas empedradas. Passam poucos homens e rápidas mulheres vestidas de preto e em Maio as roseiras florescem nos muros que o Inverno cobriu de musgo. Por trás da portada verde daa pequena janela da casa de esquina uma mulher de olhos agudos, muito juntos e castanhos, vê tudo, sábia e arguta, terrivelmente atenta, como se o seu olhar lesse e amparasse o desacontecer das coisas. Há jardins imprevistos, mais subtis e complexos do que o imaginável, onde crescem altas magnólias, com grandes flores brancas de pétalas profundas e largas, macias e espessas e onde a água de prata que irrompe da boca dos golfinhos de pedra cai nos pequenos tanques oitavados. Jardins de buxo, camélias e violetas perfumados de contemplação e silêncio. Jardins docemente abandonados a uma solidão dançada pelas brisas, enquanto um longo sussurro de adeus acena de folha em folha nos ramos mais altos das árvores. Jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. E encontrar a unidade seria acordar.»
Sophia de Mello Breyner Andresen, 1972

Uma excelente metáfora do nosso Portugal de outros tempos que, poderá, sem que o desejemos, voltar mais cedo do que possamos esperar.

7 comentários:

  1. Uma belíssima homenagem a uma Mulher marcante em todos os sentidos!


    Abraço

    Nota: Estou a ouvir o discurso de Obama, não conseguia aguentar a incerteza e pouco dormi!

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  2. Atrevo-me a dizer, correndo o risco de me enganar, que nada será como dantes...

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  3. Uma pequena homenagem à Sophia, que tanto aprecio.
    Não sou madrugadora , mas hoje acordei cedo para saber o resultado das eleições americanas. Ainda bem.M.A.A.

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  4. Sophia ( ainda com ph)... Sou uma saudosista!

    Beijinho

    Laura

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  5. Está cá tudo o que as minhas recordações de infância fazem lembrar as casas mais nobres dos mais pobres da minha aldeia natal.

    Beijos

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  6. Tive o prazer de a conhecer, na inauguração da escola com o mesmo nome, onde leccionei. Bem merecida homenagem, sempre admirei essa senhora.
    Bjs

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  7. (Também estava bastante ansiosa com o resultado das eleições americanas... Ontem à noite também me custou a adormecer. Mas o resultado foi a contento! Ainda bem!)

    Rui, também concordo - nada será como dantes. E ainda bem!

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