sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morreu José Saramago

  
Toda a gente já sabe, mas não posso deixar de registar isso aqui. Não vou dizer nada sobre o escritor porque nada de novo há para dizer. Ouvi na rádio que ele se apagou na sua casa, em Lanzarote, às 12.45, hora de Espanha. E que o jornalista João Céu Silva do DN foi o último a quem Saramago concedeu uma grande entrevista de cerca de 22 horas. Vamos esperar que o respectivo livro seja editado que deve bem valer a pena ser lido.

O primeiro texto literário do nosso Nobel com que tive contacto foi-me dado a conhecer através de uma selecta de textos que adoptei para a disciplina de Português para os meus alunos do 5º ano experimental (equivalente ao actual 9º) no ano lectivo de 75/76 (selecta essa muito contestada pelos pais aqui de Leiria junto do Conselho Directivo, porque incluía muitos textos de autores ligados ao Partido Comunista). O texto chamava-se “Carta para Josefa, minha avó”. Fragmento muito belo e muito emotivo que uma aluna (filha de uma família da classe chamada “média-alta” e nada ligada ao referido partido) decorou e quis declamar para a turma. Nunca mais me esqueci desse momento alto de poesia na sala de aula, pela qualidade do texto e pela emoção que a aluna (actual conhecida psicóloga da “praça”) pôs na forma como o disse.

É apenas este o meu tributo ao escritor, homem de letras e grande observador sócio-político da actualidade, por vezes tão mal compreendido e tão mal tratado na pátria e cuja crítica não vamos ouvir mais. Ficam os seus textos e os seus livros (de que tenho de destacar “O Ano da Morte de Ricardo Reis” o meu preferido) para o fazerem por ele.

Carta para Josefa, minha avó


Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira - sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.



Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e aos roubos dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.



Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Porque foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando, se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti - e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.



Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa, de que me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!"

É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.

José Saramago, "Deste mundo e do outro"
Publicado no jornal A Capital do dia 14/Março/1968

7 comentários:

  1. O texto que refere é lindíssimo, comparo-o ao do discurso de Saramago perante a real Academia Sueca “De como a Personagem foi Mestre e o Autor o seu Aprendiz”.

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  2. Lembro-me bem deste texto vir incluído nessa selecta...e de o ter lido vezes sem conta.
    Aliás fomos umas felizardas por termos sido participantes activas nessa "experiência"!

    Abraço

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  3. Numa das minhas fugas ao manual adoptado, descobri este belíssimo texto que serviu para apresentar Saramago aos alunos, no ano em que recebeu o Nobel.
    A "malta" da Biblioteca até ligou a TV do Polivalente para o "pessoal" poder acompanhar a entrega do prémio...
    Que boas recordações!
    Obrigada

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  4. Obrigada, Corvo, pela tua visita e pelo teu registo! As "maltas" das Bibliotecas todas vão ficando mais pobres com o desaparecimento destas figuras grandes das letras e dos livros! O que vale é que a renovação acontece e nós/vós estamos cá para ajudar a que isso aconteça!

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  5. Querida Carol,

    Obrigada por mais um pedaço de Saramago que não conhecia. Não tenho essa particularidade de ser Professora, sabes?
    Mas neste enriquecedor convívio blogueiro me vou instruindo com quem sabe e me sinto feliz.
    Hoje também adorei o discurso da Ministra da Cultura antes da saída do funeral de Saramago dos Paços do Concelho. Achei lindo, significativo e poético na voz de alguém que não era da cor política mas antes amante da cultura.

    Beijossssss

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  6. Obrigada, Tite. Isto de ser professor(a) não adianta muito; só se tem mais horas de leitura (alguns...)
    Bjinho.

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