Ontem foi a vez do escritor
António Lobo Antunes que veio falar do seu último livro “Não é meia noite quem quer”, o mais autobiográfico dos seus livros,
nas palavras do autor.
Obriguei-me a ir, que agora estou
cada vez mais preguiçosa para sair ao fim da tarde que já é noite, e apesar da
chuva e do vento. Além de que sabemos como Lobo Antunes não gosta de
entrevistas e nem sempre se mostra bem-disposto. Conhecemos bem o seu ar
macambúzio, o seu falar sonolento das entrevistas que passam na televisão. Mas como
ele é um enorme senhor da escrita que eu até gosto de ler, lá fui.
Sala habitual à cunha, a sala de
trabalho adjacente à cunha, gente pelas escadas abaixo. As condições físicas e
sonoras não são as melhores para estas “Conversas” que se habitualmente fazem
na Arquivo e, do lugar onde me sentei com uma amiga, apenas conseguia ver o
editor, amigo de longa data do escritor, que o trouxe “pelos cabelos”.
A conversa começou, “a frio” –
estas pessoas-artistas nestas situações, por muito experimentadas que sejam
nestas coisas, devem sentir-se um pouco como animais de exposição nos circos,
sei lá – naquele tom de voz baixo e roufenho que lhe é habitual iniciando de
chofre a falar (com alguma petulância, diga-se) de como começou a escrever e de
como se tornou famoso e de como teve de aprender a lidar com a fama que é uma
chatice. E eu que até sou lisboeta de nascimento e de alma e coração, pensei
muito baixinho para comigo: «Lá vem este lisboeta armado em bom a falar de alto
para provincianos… Um snob!» Mais um pouco e saía, como faço nos casamentos
pela Igreja quando o padre começa a perorar sobre a obediência que a mulher
deve ao homem e outros dislates obsoletos.
Mas não sei que clic se sentiu no ar que fez com que a conversa infletisse para o
lado da amizade e da cumplicidade que se desenvolveram entre o autor e outro
grande vulto das nossas letras que foi o José Cardoso Pires e aí o «snob»
amoleceu, humanizou-se e falou, falou, falou de tudo. Da beleza imensa da nossa
língua, de como gosta de ser português e de estar em Portugal – até “citou” o
Tony Carreira que, quando lhe perguntaram porque não escolhia ser francês,
disse que gostava mais de ser português que são ali só dez milhões… Falou de
como se sofre para escrever, do ato de criação literária (que é do que eu mais
gosto de ouvir os escritores a falarem). Falou de como viveu a sua infância; da
dureza da educação que os pais lhe impuseram e aos seus cinco irmãos; de como a
mãe, coitada, com 25 anos e cinco anos de casamento já tinha cinco filhos
enquanto pai ia e vinha da Alemanha; da sua avó alemã que falava português com
um horrível sotaque alemão; de como amou sempre o Benfica; de como se reaproximou
e reapaixonou da ex-mulher, mãe das filhas quando esta descobriu que lhe
restavam apenas três meses de vida… De como aprecia as pessoas e gosta das
sessões de autógrafos na Feira do Livro. Mas o belo, o importante foram as
histórias que contou a propósito de, as conclusões humaníssimas e de grande sabedoria
que deixou no ar, as frases poéticas que lhe saíram a par das expressões
apaixonadas ou vernáculas com que entusiasmou o público. A certa altura o José
Francisco, o editor que o trouxe, “este aqui” – como ele dizia com o olhar cheio de ternura
– queria terminar a Conversa, mas Lobo Antunes, muito para além da sua máscara,
não parava.
Penso que estaria ali a falar de
tudo até às três da manhã – e eu lá ficaria a ouvi-lo até às três da manhã. Aquele extraordinário
snob…
Adorei o relato que permitiu "conhecer" melhor esse escritor.
ResponderEliminarA mim, depois da agressão gratuita que lhe sofri e de tudo quanto sei dele, teriam que me pagar e muitissimo bem para ir ouvi-lo.
ResponderEliminarEmbora reconheça que a essa criatura por vezes lhe dá para tentar parecer ser pessoa.
E quanto a lê-lo , já me sobraram os três livros que li.
Beijinhos, Gracinha
Acho que fizeste muito bem em ir, nada de ser preguiçosa, mesmo que o lugar onde ficaste não fosse o desejado!
ResponderEliminarAdorei ler o texto, fizeste um relato que me deu a sensação de estar presente.
Resto de bom fim de semana
Beijinho e uma flor
Ora bolas! Deixei passar este acontecimento. Recebi um e-mail há dias, mas convenci-me que era hoje, o dia em que tínhamos cá este provável futuro português, Nobel da Literatura.
ResponderEliminarAté tinha aproveitado a oportunidade de andar pelo LeiriaShopping (levámos as nossas duas netas a lanchar, ao mesmo tempo que a mais velha foi comprar um telemóvel que o dela tinha dado o berro(??!!)) e lá comprei o "Não é meia noite quem quer" mais barato 10% do que o preço de capa. Daqui a uns dias há-de aparecer com outro desconto na FNAC, muito provavelmente.
Eu tenho uma relação de simpatia/remunguice com o ALA (acho que agora já raramente se usam as abreviaturas) mas tenho os livros quase todos. Faltam-me alguns porque não é economicamente viável comprar todos os livros de que se gosta ou cujo autor apreciamos.
Bem, vou-me ficar com a reportagem que fiz há dois anos, também na Arquivo. É, de facto, dos poucos sítios em Leiria, onde ainda se pode ter esse prazer, de ouvir e falar com bons escritores.
Já leu o ADEUS que o A Lobo Antunes escreveu há dias, salvo erro na Visão? Que chato, a ameaçar que este vai ser o seu último livro, que agora só se vai dar ao trabalho de juntar umas crónicas para as coligir num livro, talvez lhe chame o IV livro de crónicas, sei lá!
Espero bem que lhe passe essa maluqueira da cabeça!
Vamos lá a ver em quanto tempo vou conseguir ler este livro.
Há muitas maneiras de um sonâmbulo, letrado e charmoso, adormecer uma plateia. Uma, que me ocorre, nem é snob... chama-se converta da treta. É uma conversa tão convulsiva, que até parece viva...
ResponderEliminaras conversas são assim...
ResponderEliminarainda bem que existem "clicks". :)
abraço Graça
adoro
ResponderEliminarBjinhos
Paula
Acho que o teu texto retrata muitíssimo bem a conversa. Das duas vezes que assisti, em directo, na Arquivo, a conversas do Lobo Antunes, fiquei encantado. Pelos vistos, atentas algumas opiniões, tive sorte em encontrá-lo bem humorado...
ResponderEliminarHá poucos anos recomendaram-me “Os Cus de Judas”. Nunca tinha lido nada dele. Detestei profundamente as metáforas que usou. Não acabei o livro. E nunca mais lhe dei outra oportunidade... Talvez um dia.
ResponderEliminarDele só leio com gosto as crónicas mas este último quero ver se o compro!
ResponderEliminarTambém tinha agendado ir mas pôs-se aquele vendaval e eu com ensaio do coro não poderia ficar a ouvi-lo muito tempo...
Pensei que irias e que nos farias a "reportagem" e não me enganei!
Excelente relato...o homem é mesmo snob mas é um dos vultos importantes da nossa literatura por isso pode dar-se a esse luxo!:-))
Tenho pena de ainda não ter ido além das crónicas...
Abraço
ResponderEliminarPois eu, gosto de o ler e de o ouvir. Não lhe perdoo, no entanto, que, sendo ele uma voz com poder de intervenção, NÃO FALE, NÃO GRITE.
Afinal é sempre um candidato ao Nobel da Literatura.
Beijinho
Laura
Adoro o escritor, mas amo e admiro profundamente a sensibilidade deste Homem. Obrigada por teres partilhado, beijinhos.
ResponderEliminarNão é a primeira vez, nem será provavelmente a última, que ele fala do sofrimento quando escreve e "lhe caem em cima". Salvaguardando as devidas distâncias, o mesmo se passa com um cavador, um desportista, ou com qualquer outro dedicado e honesto trabalhador. Para muitos o simples ato de viver também não é fácil...
ResponderEliminarConcordo com a Graça, ele é mesmo um "extraordinário snob..."
Benditos são estes "clics", que nos permitem, de vez em vez, descobrir as pessoas por trás de suas carapaças.
ResponderEliminarBeijinhos
Excelente repórter, Graça.
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ResponderEliminarPolémicas à parte, insisto em tê-lo na estante dos melhores.
Acredito que um destes dias, ao passar junto dela possa surpreendê-lo à conversa com Saramago, Gonçalo M.Tavares, Virgílio Ferreira, Torga ou mesmo Alves Redol.
;)