Faria hoje 93 anos (como o meu pai) e foi uma das maiores e das mais interventivas poetas da atualidade. Para assinalar a sua passagem indelével pelas nossas Letras, transcrevo uma pequenina história (da Terra e do Mar).
«Vila d’Arcos fica no Norte, um
pouco para Leste, numa região de montanhas. É uma cidade de província e pequena
com ruas empedradas em torno da catedral enorme como um navio de eternas
viagens. As suas casas antigas – nobres mesmo quando pobres – são proporcionadas
com a justeza desde o degrau da escada ate ao quadrado da janela, desde a
balaustrada da varanda até à superfície da parede de granito sem reboco onde só
a pedra de armas com arruelas, grifos e leões é grande de mais sobre os ferros
e as madeiras desconjuntadas da porta; como se no mundo em que estamos nada
importasse, nem o frio do granito, nem a estreiteza sombria dos quartos, nem a pobreza
monótona dos dias, mas só importasse a nobreza que mostramos à luz e que é o
projecto da nossa alma.
É uma cidade antiga onde
estagnada se desagrega e se dissolve lentamente uma vida desvivida gesto por
gesto, sílaba por sílaba.
Os carros gemem ao longo das ruas
empedradas. Passam poucos homens e rápidas mulheres vestidas de preto e em Maio
as roseiras florescem nos muros que o Inverno cobriu de musgo. Por trás da
portada verde daa pequena janela da casa de esquina uma mulher de olhos agudos,
muito juntos e castanhos, vê tudo, sábia e arguta, terrivelmente atenta, como
se o seu olhar lesse e amparasse o desacontecer das coisas. Há jardins
imprevistos, mais subtis e complexos do que o imaginável, onde crescem altas
magnólias, com grandes flores brancas de pétalas profundas e largas, macias e
espessas e onde a água de prata que irrompe da boca dos golfinhos de pedra cai
nos pequenos tanques oitavados. Jardins de buxo, camélias e violetas perfumados
de contemplação e silêncio. Jardins docemente abandonados a uma solidão dançada
pelas brisas, enquanto um longo sussurro de adeus acena de folha em folha nos
ramos mais altos das árvores. Jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho
do qual jamais acordamos, um sonho onde irrompem aparições prodigiosas como o
lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se
transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde
reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a
unidade. E encontrar a unidade seria acordar.»
Sophia de Mello Breyner Andresen, 1972
Uma excelente metáfora do nosso Portugal de outros tempos que, poderá, sem que o desejemos, voltar mais cedo do que possamos esperar.
Uma belíssima homenagem a uma Mulher marcante em todos os sentidos!
ResponderEliminarAbraço
Nota: Estou a ouvir o discurso de Obama, não conseguia aguentar a incerteza e pouco dormi!
Atrevo-me a dizer, correndo o risco de me enganar, que nada será como dantes...
ResponderEliminarUma pequena homenagem à Sophia, que tanto aprecio.
ResponderEliminarNão sou madrugadora , mas hoje acordei cedo para saber o resultado das eleições americanas. Ainda bem.M.A.A.
ResponderEliminarSophia ( ainda com ph)... Sou uma saudosista!
Beijinho
Laura
Está cá tudo o que as minhas recordações de infância fazem lembrar as casas mais nobres dos mais pobres da minha aldeia natal.
ResponderEliminarBeijos
Tive o prazer de a conhecer, na inauguração da escola com o mesmo nome, onde leccionei. Bem merecida homenagem, sempre admirei essa senhora.
ResponderEliminarBjs
(Também estava bastante ansiosa com o resultado das eleições americanas... Ontem à noite também me custou a adormecer. Mas o resultado foi a contento! Ainda bem!)
ResponderEliminarRui, também concordo - nada será como dantes. E ainda bem!