(Ricardo Reis) |
«Alguns dias depois foi a vez de
Fernando Pessoa vir visitar Ricardo Reis. Apareceu era quase meia-noite, quando
a vizinhança já dormia, subiu a escada pé ante pé, usava sempre destas cautelas
porque nunca tinha a certeza de garantir a invisibilidade, acontecia encontrar
pessoas que olhavam através do seu corpo sem nada verem dele, percebia-se pela
ausência de expressão no rosto, mas outras, raras, viam-no, e fitavam-no com
insistência, achando nele qualquer coisa de estranho, mas incapazes de definir
o quê, se lhes dissessem que aquele homem de preto era um morto, o mais
provável seria não acreditarem, fomos habituados a impalpáveis lençóis brancos,
a ectoplasmas, ora, um morto, se não tem cuidado consigo, é o que há de mais
concreto neste mundo, por isso Fernando Pessoa subiu a escada devagarinho,
bateu na porta um combinado sinal, não estranhemos a prudência, imaginemos
antes o escândalo que aqui se daria se um tropeção violento trouxesse uma
vizinha estremunhada ao patamar, aos gritos, Acudam, que é ladrão, coitado do
Fernando Pessoa, ladrão, ele, a quem mais nada resta, nem a vida. Ricardo Reis
estava no escritório, a tentar compor uns versos, escrevera, Nós não vemos as
parcas acabarem-se, por isso as esqueçamos como se não houvessem, no grande
silêncio da casa ouviu o discreto bater, soube logo quem era, e foi abrir,
Felizes olhos o vejam, onde é que tem estado metido, as palavras, realmente, são
o diabo, estas de Ricardo Reis só seriam próprias numa conversa entre vivo e
vivo, neste caso parecem expressão de humor macabro, atroz mau gosto, Onde tem
estado metido, quando ele sabe, e nós sabemos donde Fernando Pessoa vem, daquele
ridículo casinhoto dos Prazeres, onde nem sequer vive sozinho, também lá mora a
feroz avó Dionísia que lhe exige contas miúdas das entradas e saídas, Tenho
andado por aí, isto lhe costuma responder o neto, secamente, como responde
agora a Ricardo Reis, mas sem a secura, são essas as melhores palavras, as que
nada dizem. Fernando Pessoa sentou-se no sofá com um movimento fatigado, levou
a mão à testa como se procurasse acalmar uma dor ou afastar uma nuvem, depois
os dedos desceram ao correr do rosto, errando indecisos sobre os olhos,
distendendo as comissuras da boca, acamando o bigode, tacteando o queixo
delgado, gestos que parecem querer recompor umas feições, restituí-las aos seus
lugares de nascença, refazer o desenho, mas o artista tomou a borracha em vez
do lápis, onde passou apagou, um lado da cara perdeu o contorno, é natural, vai
para seis meses que Fernando Pessoa morreu. Vejo-o cada vez menos, queixou-se
Ricardo Reis, Eu avisei-o logo no primeiro dia, com o passar do tempo vou-me
esquecendo, ainda agora, ali no Calhariz, tive de puxar pela memória para
encontrar o caminho da sua casa, (…) Ricardo Reis pegou numa folha de papel em
que estivera a escrever, Tenho aqui uns versos, não sei no que isto irá dar,
Leia lá, É apenas o princípio, ou pode ser que venha a começar de outra
maneira, Leia, Nós não vemos as parcas acabarem-se, por isso as esqueçamos como
se não houvessem, É bonito, mas você já o tinha dito mil vezes de mil outras
maneiras, que eu me lembre, antes de partir para o Brasil, (…) A propósito,
Fernando, você, no seu tempo, conheceu um tal António Ferro, um que é
secretário da propaganda nacional, Conheci, éramos amigos, devo-lhe a ele os
cinco contos de réis do prémio da Mensagem, por que é que pergunta, (…) o Ferro
é um tonto, achou que o Salazar era o destino português, O messias, nem isso, o
pároco que nis baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem,
Exactamente, em nome da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto
quanto me lembro, (…)» (pág, 279-281)
Um belíssimo texto para homenagear Saramago.
ResponderEliminarAmanhã espero lá estar...
Bom fds
O melhor livro é sempre aquele que ainda não foi lido... esse, será o meu preferido!
ResponderEliminarCada obra sua me surpreende...
Excelente homenagem a Saramago!
ResponderEliminarAo fim de quase um século e são tantas as frases ditas por ele tão bem se enquadram no presente, infelimente.
Bom fim de semana Graça
Beijinho e uma flor
Dizem que dos fracos não reza a história... mas os grandes não serão esquecidos!
ResponderEliminarBeijinhos Graça, bom fim e semana.
(^^)
Seu post de hoje é um chamado a conhecermos a intelectualidade de um país soberano como o seu!
ResponderEliminarBj. Célia.
Os meus parabéns foram-lhe dados, com um sorriso, quando ontem me olhei ao espelho e dei os parabéns a mim próprio.
ResponderEliminarLembrei-me da efeméride.
Obrigada, Célia, pela sua homenagem...
ResponderEliminar(E obrigada a todos pelos comentários) Os primeiros livros que li de Saramago foram os que me "encheram as medidas"... "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "A História do Cerco de Lisboa", "A Jangada de Pedra", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira" ... ...
Não digo que seja o meu preferido mas gostei muito de o ler!
ResponderEliminarAbraço
ResponderEliminarQue, pelo menos nas Letras, não esmoreça o nosso brilho.
Saramago e outros nunca o permitirão.
Um beijo