sábado, 4 de abril de 2020

Da purificação




O sociólogo Boaventura de Sousa Santos escreveu um excelente texto no Jornal de Letras de 11 a 24 de março intitulado «Ensaio contra a purificação».

E diz ele: «A distinção entre o puro e o impuro parece ser uma constante de todas as culturas e de todos os tempos. (…) O puro é, em geral, concebido como o estado ideal, superior, tanto no domínio do profano como no domínio do sagrado, enquanto o impuro é concebido como o estado inferior ou a inclinação normal ou vulgar. (…)

O que designamos por cultura ocidental, cuja origem se atribui convencionalmente, sobretudo desde meados do século XIX, à Grécia antiga, segue dominantemente a ideia da separação absoluta entre o puro e o impuro. (…) todas as versões [filosóficas] convergem na ideia de que a purificação é essencial para o estabelecimento da ordem. A purificação permite diferenciar e hierarquizar entre o superior e o inferior, entre o normal e o excessivo, entre o governante e o governado, entre o que pertence e o que não pertence. (…)

O colonialismo histórico foi o campo privilegiado para a consolidação deste senso comum. Os conquistadores e os colonizadores depararam-se com um mundo novo (para eles), tão vasto e tão diferente que a magnitude das diferenças exigia um exercício contínuo de purificação. Os povos originários eram definitivamente inferiores, primitivos, selvagens, em suma, impuros. A sua purificação exigia uma separação particularmente violenta que podia ser exercida por extermínio ou desidentificação via evangelização e, mais tarde, educação. (…) Este senso comum foi um instrumento tão eficaz na violenta dominação colonial, do extermínio à evangelização e à escravatura, da ocupação territorial à expropriação e saque das riquezas naturais dos povos colonizados.

Esse senso comum prevalece até hoje, permanece vivo e está entre nós em múltiplas formas: racismo, extrema concentração de terra, expulsão violenta de camponeses e povos indígenas dos seus territórios, exploração sem precedentes dos recursos naturais, extermínio migratório do Mediterrâneo à fronteira sul dos EUA, persistência e mesmo incremento de trabalho escravo, zonas de sacrifício onde populações descartáveis são envenenadas pela poluição causada pelos complexos industriais, colonialismo tóxico quando as periferias pobres do sul global são convertidas em depósitos do lixo, muitas vezes tóxico, produzido no Norte global (afinal, a impureza é normal entre os impuros, lixo com lixo). (…)

A purificação é sempre a imposição da ordem contra um caos perigoso a ponto e a destruir ou desacreditar; a purificação por separação foi a mãe de todos os despotismos modernos.

Se em vez da conceção da natureza como uma entidade desprovida de dignidade vivente e inteiramente ao dispor dos humanos fosse adotada a conceção espinosista da natureza como principio vital, centro da vida da qual dependemos, certamente a respeitaríamos como a respeitaram sempre os povos originários. E se isso sucedesse, talvez não estivéssemos hoje mergulhados numa situação de catástrofe ecológica. (…)»

……..

E a mim, ninguém me tira da cabeça que – mesmo que tenha sido maldosamente encomendado a um qualquer laboratório chinês ou norte-americano – este Vírus que ora se abateu sobre o mundo (como se estivéssemos a viver dentro de um asfixiante filme de ficção científica) mais não é que um processo de purificação da Natureza contra nós, humanos, que estávamos/estamos a destruí-la.


6 comentários:

  1. E será que este covid-19 não foi inventado pela ciência humana na sua avidez de cada vez mais, estudar, estudar, estudar coisas e factos?

    Feliz fim de semana

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  2. Por deformação da minha formação (química)a purificação tem vários processos em que agentes externos reduzem todos os componentes estranhos à substância até esta se apresentar no seu estado puro. Na natureza raramente ocorre. Assim, vendo num vírus um agente purificador da humanidade só me pode causar hilaridade... tua parte final, a verde, faz-me pensar se o vírus não será obra divina mandada à Terra como castigo de desmandos humanos...

    Boaventura Sousa Santos é um filósofo inspirador de pensamentos místicos...

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    1. Se considerarmos a Natureza mística, então concordo... mas nunca como castigo divino. Sou mais panteísta que outra coisa...

      Mas aceito todas as opiniões, claro!

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  3. Gosto de Boaventura Sousa Santos e da forma como pensa. Acerca do vírus não quero pensar em teorias da conspiração e maldade mais pura. Mas gostaria que se apurasse como surgiu e não apenas o onde.

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  4. Eu concordo com Bea!!!
    A refletir... Bom domingo 🙏

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