quinta-feira, 9 de abril de 2020

Carta de Shaan Sahota

Faz já quatro semanas que não saio de casa senão para ir, muito espaçadamente, comprar pão e fazer algumas compras necessárias. 

Não me lembro de alguma vez ter estado tanto tempo fechada em casa e sem ocupação obrigatória.

Nos primeiros dias de solitário confinamento, pensei que não ia aguentar, que iria voltar a ter ataques de pânico e sei lá o que mais… Só que, face a tantos milhares de pessoas que estão a sofrer em termos de saúde, de falta de dinheiro e de aceitáveis condições de vida, não tenho, não temos de que nos queixar e que fazê-lo é mesmo uma arrogância enorme e uma enorme falta de compaixão por quem sofre.

A propósito, passo a transcrever a carta de Shaan Sahota, médico interno a trabalhar em Londres, publicada hoje no jornal The Guardian, (trad. Ana Brett) testemunho em 1ª pessoa do horror que muitos estão a passar que possa servir-nos de exemplo, de consolo pela vida que, apesar de tudo, conseguimos manter.

Que importa estarmos sozinhos e confinados? Que importa não nos juntarmos na Páscoa? Que importa não irmos de férias? Que importa se os miúdos não têm mais aulas ou se lhes dão passagem administrativa?  Estamos de saúde e, de certa forma, sossegados nas nossas vidas...

(Apesar de ser longa, vale a pena lerem!)

«Como médico de cuidados intensivos, consigo ver a crise a desenrolar-se, mas apenas uma pessoa de cada vez. Aqui segue o que vejo. 


A “zona Covid” improvisada do meu hospital é um mundo irreal onde os doentes estão deitados em silêncio e a equipa subdimensionada completa tarefas hercúleas.

Durante o último mês, a primeira onda de admissões relacionadas com a Covid-19 chegou a Londres e ao hospital onde trabalho como médico interno. Há vinte e um dias fui transferido da Cirurgia para os Cuidados Intensivos e treinado para tratar os doentes na nossa Unidade de Cuidados Intensivos em expansão.

Falamos a toda a hora acerca do coronavírus, mas é habitualmente em termos da sua imagem global. Tenho dificuldade em compreender essa imagem a partir da linha da frente. Numa crise desta escala, quero contar-vos a história que tenho visto - a história de uma pandemia que se desenrola uma pessoa de cada vez.

A Unidade de Cuidados Intensivos expandida é um mundo surreal. Coloco camadas de EPI sufocantes para entrar nas “zonas Covid” - tendas de plástico com entradas de fecho-éclair dentro das áreas hospitalares convertidas. Entro numa enfermaria cheia de doentes inconscientes. Não há conversas, apenas monitores a apitar sob o assobio rítmico do ar pressurizado. Passo cada turno de 12 horas a cuidar de dois ou três doentes. É um trabalho humilde, muitas vezes manual. Ajusto os seus agentes anestésicos e verifico o seu débito urinário a cada hora para equilibrar os seus fluídos. Coloco almofadas por baixo de pontos de pressão para que não sofram danos duradouros durante a sua paralisia. Aspiro secreções das suas vias aéreas.

Estou a trabalhar o máximo que consigo, adiando as pausas para casa-de-banho, por um doente que nunca vi abrir os olhos, muito menos respirar por si próprio. É um ambiente difícil para trabalhar.
Vasculho os diários médicos para encontrar os meus doentes antes de terem ficado paralisados, sedados e colocados num ventilador, para vislumbrar um pouco da pessoa que são. Tento conhecê-los através das jóias que costumavam usar, agora guardadas numa bandeja ao seu lado. Idealizo-os a partir dos detalhes dos seus diários clínicos passados.

História social: vive com a esposa e três crianças. Caminhadas regulares, gosta de correr. Nunca fumou.

Observações: frequência respiratória 42 – 48 – 55 – 61 – 61 …

Estes números crescentes, escritos num gráfico do diário clínico, significam que o doente estava com dificuldade em respirar. É uma história que termina com eles inconscientes e paralisados, com máquinas a substituir os seus órgãos em falência, sob os meus cuidados.

Estou a considerar como um desafio lidar com doentes que estão tão mal, porque gostaria que isto não lhes tivesse acontecido. Quando se está a prestar cuidados individuais, é difícil pensar que existem centenas de pessoas nesta mesma posição. Falamos de curvas e picos, mas nada tem a ver com a experiência vivida. Políticos e jornalistas falam agora com a perspectiva dos deuses. Têm uma visão geral da situação que eu simplesmente não consigo ter. Como médico, sinto-me como uma formiga ao lado de um elefante: mal consigo entender o que vejo e é difícil atirar o meu pequeno peso contra ele.

E onde estou, o recurso mais limitado não são os ventiladores, é a força de trabalho básica. Até 50% da nossa equipa habitual não está a trabalhar por doença, auto-isolamento ou medo. Olho em volta e vejo os esforços hercúleos dos meus colegas e isso comove-me.

É como se alguém tivesse dado criptonite aos meus super-heróis, mas eles ainda estão a tentar levantar o carro, porque o que mais podem fazer? Vejo o especialista em doenças infevciosas que lidera a nossa equipa, que silenciosamente retirou o seu turbante e, pela primeira vez na sua vida, cortou a sua barba que mantinha pela sua fé, removidos em nome do controlo de infecção. A sua estatura pode ser inferior, mas não está de forma alguma diminuído. Vejo uma médica interna encharcada em urina laranja brilhante pela rifampicina. Tinha tentado trocar pela primeira vez um cateter urinário, porque não havia mais ninguém para o fazer. Oito anos de educação não a tinham ensinado que é fácil abrir a bolsa, mas muito mais difícil fechá-la. Todos no hospital estão a fazer todo o possível para melhorar estes doentes. Vejo cirurgiões a trabalhar como internos nos Cuidados Intensivos, enquanto dentistas e fisioterapeutas ajudam a rolar os doentes, mudando-os de posição para não sofrerem lesões por pressão. Os meus doentes desconhecem tudo o que estamos a fazer por eles, e as suas famílias não os podem visitar – logo ninguém o vê, mas não estamos a refrear nada.

O nosso tratamento de resgate para os doentes criticamente mais graves é a pronação: colocar um doente entubado de barriga para baixo. Aumentar os cuidados nos casos mais graves é um acto tão humilde e poderoso quanto o simplesmente colocá-los de barriga para baixo.

Cuidar de um doente Covid+ gravemente doente não é o que se pode pensar. Estou tão próximo deles – a colocar colírio nas pálpebras à noite, porque seus olhos que não piscam não sequem. Talvez nunca os vá conhecer, mas vigio os traços de sua respiração à procura de sinais de que precisam da minha ajuda. Troco os lençóis por baixo deles.

Todos nós estamos longe das nossas casas. Somos tão poucos e a tentar tanto e sempre aqui. O meu país passou da fase em que aguardava pela imunidade de grupo - e aceitar a mortalidade que isso poderia causar - a aplicar tudo o que pode para minimizar a perda de vida, incluindo-me a mim. E é esse um pouco do sentido que posso extrair desta situação. Não cheguei a conhecer os meus doentes, mas o que lhes quero dizer, com toda a força dos meus cuidados, é: isto é tudo para vocês, tudo o que temos. A vossa vida importa.»




 Fiquem bem Fiquem em casa!

11 comentários:

  1. Pois que imposta... Não importa mesmo nada

    Estamos de Saúde. O resto é Fogo que arde sem se ver

    Uma Páscoa feliz.

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  2. Como uma amiga me diz com frequência (já a tenho mencionado muitas vezes) “we should count our blessings”

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  3. abraço

    cuida-te, amiga.
    tudo isto é surreal. e medonho.

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  4. O que nos havia de acontecer... Mas é isso, quem está na sua casa e ainda tem trabalho/rendimento, não se deveria queixar.

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  5. Uma realidade que supera qualquer pesadelo.
    Cuide-se minha amiga.
    Abraço

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  6. Não há nada mais importante que a saúde!
    Uma Páscoa Feliz dentro do possível, sei que não é fácil!

    Beijinhos minha querida Amiga

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  7. Londres? Inglaterra?
    Aquele país onde chegou a haver serviço nacional de saúde?

    «E onde estou, o recurso mais limitado não são os ventiladores, é a força de trabalho básica. Até 50% da nossa equipa habitual não está a trabalhar por doença, auto-isolamento ou medo. Olho em volta e vejo os esforços hercúleos dos meus colegas e isso comove-me.»

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  8. É o que nos toca viver. Esta limitação pelo menos está a permitir que ponha umas quantas coisas ao dia.
    está a ser uma Semana Santa rara e que vai dar lugar a uma Páscoa algo triste. Bom, Páscoa feliz, querida amiga.
    Abraços de vida

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  9. Tempos difíceis, estes que estamos a viver, e que são prenúncio de algo que, creio, será ainda mais difícil para a maioria da população mundial...

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