Na falta de quem nos descreva hoje os caminhos para Fátima vazios de peregrinos,
ficam aqui uns fragmentos da excelente descrição saramaguiana. Vale a pena ler.
[Era o 12 de Maio de
1936. O Dr. Ricardo Reis resolve ir a Fátima «por curiosidade» - diz ele a
Lídia. O certo é que ia ver se encontrava Marcenda.]
«Na estação de Fátima o comboio
despejou-se. Houve empurrões de peregrinos a quem já dera no rosto o perfume do
sagrado, clamores de famílias subitamente divididas, o largo fronteiro parecia
um arraial militar em preparativos de combate. A maior parte destas pessoas
farão a pé a caminhada de vinte quilómetros até à Cova de Iria, outras correm
para as bichas das camionetas de carreira, são as de perna trôpega e fôlego
curto, que neste esforço acabam de estafar-se. O céu está limpo, o sol está
forte e quente. Ricardo Reis foi à procura de um lugar onde pudesse almoçar. Não
faltavam ambulantes a vender regueifas, queijadas, cavacas das Caldas, figos
secos, bilhas de água, frutas da época, e colares de pinhões, e amendoins, e
tremoços, mas de restaurantes nem um que merecesse tal nome, casas de pasto poucas
e a deitar por fora, tabernas onde nem entrar se pode, precisará de muita
paciência antes que alcance garfo, faca e prato cheio. (…)´
Uma camioneta buzinava roucamente
a chamar para os últimos lugares, Ricardo Reis deu uma corrida, conseguiu atingir
o assento, alçando a perna por cima dos cestos e dos atados de esteiras e
mantas, excessivo esforço para quem está em processo de digestão e afracado do
calor. Sacolejando muito, a camioneta arrancou, levantando nuvens de poeira da
castigada estrada de macadame. O motorista buzinava sem descanso para afastar
os grupos de peregrinos para as bermas, fazia molinetes com o volante para
evitar as covas da estrada, e de três em três minutos, cuspia fragosamente pela
janela aberta. O caminho era um formigueiro de gente, uma longa coluna de
pedestres mas também carroças e carros de bois, cada um com seu andamento,
algumas vezes passava roncando um automóvel de luxo com chauffeur fardado. (…)
A maior parte desta gente vai
descalça, algumas levam guarda-chuvas abertos para se defenderem do sol, são
pessoas delicadas da cabeça, que também as há no povo, sujeitas a esvaimentos e
delíquios. (…) as mulheres transportam à
cabeça cestos de comida, uma que outra dá de mamar ao filho enquanto vai
caminhando. (…) com o calor, os rostos ficam negros, mas as mulheres não tiram
os lenços da cabeça, nem os homens despem as jaquetas, os casacões de pano grosso,
não se desafogam as blusas, não se desapertam os colarinhos, este povo ainda
tem na memória inconsciente os costumes do deserto, continua a acreditar que o
que defende do frio defende do calor, por isso se cobre todo como se se
escondesse.
Este é o lugar. A camioneta para,
o escape dá os últimos estoiros, ferve o radiador como um caldeirão no inferno,
enquanto os passageiros descem. (…) Ricardo Reis junta-se ao fluxo dos
peregrinos. (…)
É um mar de gente. Ao redor da
grande esplanada côncava vêem-se centenas de toldos de lona, debaixo deles
acampam milhares de pessoas, há panelas ao lume, cães a guardar os haveres,
crianças que choram, moscas que tudo aproveitam. Ricardo Reis circula por entre
os toldos, fascinado por este pátio dos milagres que no tamanho parece uma
cidade, isto é, um acampamento de ciganos, nem faltam as carroças e as mulas, e
os burros cobertos de mataduras para consolo dos moscardos. (…)
(José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1985)
(imagens retiradas de https://restosdecoleccao.blogspot.com/2013/05/santuario-de-fatima.html )
Este ano será muito triste ver o Santuário de Fátima tão vazio de pessoas. Tão solitário que causa arrepio.
ResponderEliminarSabemos a razão. Aceitamos que assim seja. A saúde tem que estar primeiro que todas as peregrinações.
Confiemos que no próximo ano, esta data, voltará à normalidade, e o Santuário de encha de peregrinos como sempre aconteceu
Eu acredito.
.
Cumprimentos
Para os verdadeiros crentes é doloroso. Mas acho que a Igreja esteve muito bem com esta decisão de «fechamento» aos peregrinos.
EliminarBeijinho.
ResponderEliminarCada um vai com a fé que sente e demonstra-a como sente. Que os seus comportamentos de fé não estejam sujeitos a críticas.
Naturalmente, Catarina!!! Esta passagem de texto é apenas um bom pedaço de literatura!
EliminarEss´ano
ResponderEliminarfoi um ano
do catano
me assino
Rogério "O Saramaguiano"
Esse ano
Eliminare este ano
anos do catano!
Chapelada para a actuação da Igreja Católica neste processo.
ResponderEliminarBeijinhos
É verdade! Estiveram muito bem!! Seguindo o excelente exemplo de Francisco, o Papa.
EliminarBeijinhos