quarta-feira, 8 de abril de 2015

Charlie 8



Alguém teve a ideia de recordar no facebook (abençoado facebook que é bem mais vivo e real que os jornais!) a efeméride da morte de Salgueiro Maia (há 23 anos em 4 de Abril) e aí lembrei-me do extraordinário capítulo XIV do excelente romance de Lídia Jorge «Os Memoráveis» que trata exatamente da brilhante intervenção de Charlie 8 – nome de combate de Salgueiro Maia – na epopeia do 25 de Abril.

Não fosse tão longo e tão completo, aqui estaria eu a transcrevê-lo completamente. Mas como isso não seria recomendável num espaço como é o de um blog, vou tentar limitar-me a passar para aqui parte da tentativa de explicação para o facto de lhe não ter sido atribuída (pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva) uma pensão “por serviços excepcionais e relevantes”.

«Quer dizer que o seu marido morreu de desgosto?» (…)«De modo nenhum, toda a gente sabe que ele morreu de doença prolongada.» (…) «Quer dizer que durante nove anos os militares não promoveram o seu marido, que o desterraram para lugares e ilhas onde nada tinha que fazer, que o nomearam carcereiro dos serviços prisionais, e ele, aquele que foi o rosto mais visível de todos quantos deram a liberdade ao pais, não morreu de desgosto?» Perguntou Margarida à viúva e foi lembrando episódios de que tinha tido conhecimento nos dias anteriores e que muito a tinham chocado. (…) A anémona quis, então, saber se o facto de, no mesmo dia em que tinham sido atribuídas pensões por serviços distintos a antigos membros da polícia política, e ao marido ter-lhe sido negada, se não era uma prova de que não havia sido obra do acaso. (…) A viúva tinha o micro na mão e assim o manteve. Olhou para a câmara. Disse - «Também não foi assim, nunca chegaram a negar a pensão ao meu marido. E é preciso dizer que, pela lei, os pides poderiam ser contemplados (…) Havia um enquadramento legal para a bravura dos pides, não havia artigo nenhum no qual coubesse a bravura do meu marido. (…)

«Ficámos a saber que tudo tinha começado quando o juiz do Tribunal Militar devolvera o requerimento feito por Charlie com uma grande cruz preta, sob o pretexto de que os seus actos de abnegação e coragem cívica não cabiam no artigo quatrocentos e quatro, barra, oitenta e dois, mas os actos dos torcionários ocorridos antes, segundo a lei, cabiam. (…) tendo sido chamado a intervir, o conselheiro tinha dito que se acaso fosse adiada, indefinidamente, a obtenção do parecer, não haveria como ter objecção. (…) Que se dissesse, pois, que a decisão seria breve, e seria nunca, porque seria amanhã. O conselheiro era um crente. Ora pro nobis. (…) «Pode Vossa Excelência decidir, descansado, o provimento dos primeiros, pois em relação a esses a lei não oferece dúvida alguma. Cumpriram o seu dever para com o Império, quando a nação era um Império. Já o rapaz dos tanques e das chaimites, não pode Vossa Excelência conceder a sua assinatura, uma vez que não pode confundir este com os primeiros. (…) É que os primeiros defenderam o Império, enquanto o rapaz desfez o Império. (…) Deste modo, houve o provimento dos pides e não o do rapaz dos tanques, autor daquelas conversações prolongadas no Largo do Carmo. Assim, Charlie 8 teve o seu requerimento adiado. O seu papel foi colocado no fundo de todos os papéis a que ia sendo colocada a data sine die.»


(Jorge, Lídia. «Os Memoráveis», D. Quixote, Lisboa, 2014 – pp 247 – 255)

22 comentários:

  1. Haja quem nos reavive as memórias adormecidas de algumas figuras que tiveram um papel preponderante na Revolução do 25 de Abril!
    Independentemente , do rumo que o país enveredou, é de louvar que nos tragas a injustiça feita ao Capitão Salgueiro Maia.
    Deduzo que esse excerto que nos trazes seja de uma entrevista à viúva do militar, transcrito do livro "Os Memoráveis" de Lídia Jorge.

    Gostei de ler e sabes que desconhecia esse pseudónimo de guerra Charlie 8 ?

    Sempre a aprender!

    Beijinhos e votos de noite tranquila!

    Janita

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    1. Isso mesmo, Janita! Uma entrevista "romanceada" à viúva de Charlie feita em «Os Memoráveis». Uma maravilha de romance!

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  2. Seu texto de hoje, para mim, um aprendizado! Obrigada!
    Abraço.

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    1. Fico feliz por isso, Célia! Lídia Jorge é uma das nossas melhores escritoras da atualidade.

      Beijinho.

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  3. Quando se tenta negar a História o resultado é sempre desastroso, Graça.
    Beijinhos

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    1. Assim é, Pedro!!

      Muito agradeço os seus comentários de lá tão longe... Beijinhos.

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  4. Não estava cá no 25 de Abril. Cheguei em Abril do ano seguinte. O que sei do 25 de Abril por cá foi o que me contaram quando cheguei, e o que vi em filmes sobre ele.
    Mas sempre me pareceu uma grande injustiça feita ao homem que na minha opinião foi o que mais se destacou, especialmente quando nessas longas conversações evitou um banho de sangue.
    Um abraço

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    1. Se tiveres paciência para ler o livro de Otelo sobre a Revolução, ficas mais por dentro do que qualquer um de nós que cá estávamos...

      Beijinho

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  5. Um livro que adorei! Boa escolha para homenagear Salgueiro Maia.

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  6. Grande Lídia Jorge! Minúsculo CS! Parabéns pela sua homenagem ao GRANDE Salgueiro Maia. Não dei conta que algum jornal ou TV tivesse assinalado a data . É uma pena!
    Abraço

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    1. Na conjuntura atual (esta maioria, este governo e este "pseudo"presidente) não é de bom tom os media referirem essa gritante injustiça, essa maldade vingativa perpetrada por uma mente vingativa... É, de facto, uma pena!

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  7. Há coisas neste país que só têm uma explicação: a hipocrisia vigente, ontem como hoje!

    Beijocas

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    1. A "nossa" mente global mesquinha, invejosa, hipócrita, vingativa, Teté...

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  8. "Havia um enquadramento legal para a bravura dos pides, não havia artigo nenhum no qual coubesse a bravura do meu marido. (…)"

    Foi há 23 anos, e não me espanto pois foram criadas as condições para esta "vingança", pois é disso que se trata!

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    1. Que é de vingança que se trata tudo o que estas luminárias têm feito. Vingança do 25 de Abril!!

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    2. Uma vingança de quem sempre este alinhado com o regime e porque continuam a votar nestes capangas, continuamos a viver naquele "Estado Novo"!

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  9. Mais uma injustiça neste país que desconhece os seus heróis.
    Excelente e oportuna estas sua mensagem amiga Graça.

    beijinho com carinho e amizade




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  10. Eu sou de 96 e sinto-me com vontade de chorar ao ouvir este depoimento... É uma injustiça tremenda e tenho pena que ninguém tenho coragem para alterar!
    Se o Sargento Salgueiro Maia destruiu um império, digo-vos eu que ao destruir um, construiu outro muito melhor! E se o facto de ter destruído um império não é algo memorável, eu tenho a certeza que o facto de ter construído um foi um ACTO HERÓICO!

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  11. Confesso: não sabia a data em que ele morreu; sei no entanto o que fez e também como foi destratado (humilhado) e abandonado por aqueles que chegaram onde chegaram devido ao que ele fez e como fez!
    Faltam-me palavras para exprimir o sentir do que sinto e que quanto mais sinto maior é a revolta.
    De entre todos os políticos mediocres que têm sido governo (inclusivé os ditos "esclarecidos" e democráticos, alguns que foram presos políticos) não houve nem há um que se levante e diga:
    -é por "culpa" do Salgueiro Maia que estamos aqui! Merece o nosso respeito, ele e a sua família!
    Admito que o meu entender esteja incorrecto mas em minha "defesa" só posso acrescentar: deve ser porque sou velho e digo o que me vem à cabeça!

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