Fez ontem anos que nasceu Cesário Verde. Cento e cinquenta e sete, para
ser exata. São muitos anos, na verdade. E se calhar por isso está tão
esquecido do público em geral. O poeta do quotidiano "moderno" de
Lisboa, a sua cidade, que, enquanto pinta e compõe, critica.
E, por me parecer algo atual, deixo aqui um excerto do seu longo poema "Nós" no qual o poeta faz, como só ele soube, a comparação entre os países do norte da Europa - os países ditos trabalhadores - e o nosso belo país cheio de sol, de cor e de frescura. (Ideal talvez para o "nosso" primeiro Passos ler à senhora Merkel?...)
Sim! Europa do Norte, o que supões
Dos vergéis que abastecem teus banquetes,
Quando às docas, com frutas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!
Oh! As ricas primeurs da nossa terra
E as tuas frutas ácidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleumáticos farmers de Inglaterra!
Ó cidades fabris, industriais,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha
Com a fruta que sai de seus quintais?
Todos os anos, que frescor se exala!
Abundâncias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!
Uma alta parreira moscatel
Por doce não servia para embarque:
Palácios que rodejam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!
Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado,
Não as têm nas florestas em que há corças,
Nem em vós que dobrais as vossas forças,
Pradarias dum verde ilimitado!
Anglo-saxônios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparai convosco!
Aqui tudo espontâneo, alegre, tosco,
Facílimo, evidente, salutar!
Oponde às regiões que dão os vinhos
Vossos montes de escórias inda quentes!
E as febris oficinas estridentes
As nossas tecelagens e moinhos!
E ó condados mineiros! Extensões
Carboníferas! Fundas galerias!
Fábricas a vapor! Cutelarias!
E mecânicas, tristes fiações!
Bem sei que preparais corretamente
O aço e a seda, as lâminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que há de mais rijo e resistente!
Mas isso tudo é falso, é maquinal,
Sem vida, como um círculo ou um quadrado,
Com essa perfeição do fabricado,
Sem o ritmo do vivo e do real!
E cá o santo Sol, sobre isto tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosáceas belas e fruteiras
Nas searas de trigo palhagudo!
Uma aldeia daqui é mais feliz,
Londres sombria, em que cintila a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...
Ah! Que de glória, que de colorido,
Quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam "as maçãs de espelho"
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!
Para alguns são prosaicos, são banais
Estes versos de fibra suculenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigais!
Pois o que a boca trava com surpresas
Senão as frutas tónicas e puras!
Ah! Num jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão!...